Venerado à voz miúda por quem preza comer e beber bem, o Piemonte é a terra da preciosa trufa branca e do Barolo, um dos vinhos mais nobres da Itália.
Entre os Alpes e a Ligúria, na fronteira com a França e a Suíça, a região tem uma sofisticação nata. Tanto na cozinha (influenciada pela francesa) como no trato – herança dos tempos em que foi o QG da família real italiana, a Casa de Savoia.
Mas, a despeito do pedigree, é um lugar de prazeres simples. Colinas verdejantes protegidas por uma eterna bruma escondem vilarejos minúsculos com sobrados em tons pastel e telhadinhos terracota.
Serralunga d’Alba e La Morra estão entre as mais belas. Mas não existe rota clássica a seguir nem grandes atrações obrigatórias.
Essencialmente rural, à exceção da vibrante Turim, capital italiana da arte contemporânea, o Piemonte tem um charme discreto, que vai se revelando em pequenos bocados.
Ao transitar pelas estradas sinuosas, são inevitáveis as paradinhas nos mirantes que se abrem para vinhedos em forma de anfiteatro – a imagem mais impactante da paisagem piemontesa.
As refeições costumam durar horas, assim como as degustações de vinhos. Não à toa, o movimento slow food, que defende a qualidade das refeições e dos produtos, foi fundado aqui. A viagem certa, a um lugar assim, precisa mesmo ser devagar.
Piemonte tem vinhedos tombados como Patrimônios da Unesco
Para não desperdiçar nenhum amanhecer em meio aos vinhedos, alojar-se em um hotel rural, ou dentro de uma vinícola, é a melhor pedida. Se a viagem for curta, vale focar na montanhosa Langhe, uma região vitivinicultora de fronteiras difusas dentro da província de Cuneo.
No pedacinho mais emblemático do Piemonte, algumas cidadezinhas pitorescas convidam a zanzar sem mapa na mão, como Grinzane Cavour (onde há um castelo) e La Morra.
Maiorzinha, com 30 mil habitantes, Alba é cheia de vida e de restaurantes épicos, como o Piazza Duomo, do chef Enrico Crippa, com três estrelas no Michelin.
Ao seu redor estão as fofíssimas Serralunga d’Alba e Monforte d’Alba. Também é indispensável dar uma passada em Barolo, em cujo centro histórico há ótimas enotecas e algumas vinícolas clássicas, como a Marchesi di Barolo, com mais de 200 anos de história.
Mas o grande trunfo do Langhe está no caminho entre uma e outra. Os vinhedos tombados como Patrimônio Universal pela Unesco, em 2014, acompanham o relevo abrupto e formam anfiteatros espetaculares.
Ali está a matéria-prima para os poderosos Barolo e Barbaresco, tintos produzidos a partir da uva nebbiolo, que têm a neblina (nebbia) piemontesa até no nome.
Muitas vinícolas da região podem ser visitadas sem hora marcada. E você raramente coincidirá com grupos numerosos de turistas – nem no auge do verão.
A história do vinho Barolo (um bafão enológico)
O Langhe entrou no mapa enológico mundial depois de uma pendenga entre gerações, uma briga mercurial e italianíssima sobre o que fazer com as tradições locais.
Ao caso: o Barolo tradicional é um tinto de longa guarda, ou seja, precisa envelhecer para ficar bom. Em um passado não muito distante, chegava a demandar mais de uma década para “arredondar”.
Cansados de esperar tanto e de não obter lucros com a sua produção, a partir dos anos 1980, os chamados Barolo Boys trocaram os velhos botti (grandes tonéis de carvalho eslovenos) por barricas francesas e reformularam o método de produção – tudo para acelerar o processo.
Reza a lenda que um dos membros do grupo, Elio Altare, foi deserdado pelo pai depois de massacrar os tonéis da família com uma serra elétrica. Com vinhos mais fáceis e rápidos, os “barolistas modernistas” chamaram a atenção de críticos como o americano Robert Parker e explodiram nos Estados Unidos. A briga deu tanto o que falar que o vinho “mitou”. A região, idem.
Desde então, as técnicas tradicionais também foram modernizadas e ambas as vertentes encontraram o seu lugar ao sol. Na santa paz. E o bafão rendeu o premiado documentário Barolo Boys – The Story of a Revolution, lançado em 2014.
Qualquer um que se interesse minimamente por vinho tem uma vaga ideia do que acontece entre o momento em que fruta é retirada do pé e o solene instante em que a bebida desliza pela sua garganta.
Mas nada se compara a ver de perto o milagre começar a ocorrer, em um lugar tão especial. A uva colhida sob o olhar atento do próprio enólogo; os cachos chegando à vinícola; a prensa entrando em ação; os primeiros aromas da fermentação…
No Piemonte, é possível conhecer a rotina das vinícolas
“A cada estação do ano os ciclos da natureza se expressam não só na paisagem mas também nos vinhos e na gastronomia”, diz Patrícia Kozmann, brasileira radicada na Itália que trabalha na indústria enológica e organiza roteiros personalizados pelo norte do país.
Foi através dela que cheguei à Villa Sparina, na região de Gavi, famosa por seus brancos. Circulei pelos vinhedos na companhia do proprietário Massimo Moccagatta, enquanto ele falava apaixonadamente sobre “sentir a espinha dorsal do vinho”.
Acompanhei seu pai, Mario, uma força da natureza, de enxada nas mãos, descarregando um trator de uvas. Os aromas da primeira fermentação invadiam até o belíssimo hotel localizado dentro da vinícola, onde funciona o restaurante estrelado La Gallina.
Igualmente inesquecível foi acompanhar a colheita da uva barbera nos domínios de Clementina Cossetti, a charmosa proprietária da vinícola que leva o seu sobrenome na região de Monferrato, entre as províncias de Asti e Alexandria.
Anexo à vinícola, o hotel Relais 23 ocupa um casarão neoclássico com apenas dez quartos cercados por um jardim enorme e um silêncio absoluto. O restaurante, pilotado pela jovem chef Barbara Pastura, foi uma das boas surpresas da viagem.
“Caçar” a caríssima trufa branca é uma das atrações imperdíveis
Entre um vinho e outro, você provavelmente topará com as melhores tábuas de frios da sua vida. A carne da raça piemontese (ou fassone) também é digna de arrancar lágrimas.
Mas a cozinha piemontesa, delicada e com influência francesa, também se vale da proximidade com o Mediterrâneo e da qualidade dos produtos da terra para compor riquíssimas combinações “mar e montanha”. Mariscos e cogumelos, por exemplo, podem tranquilamente habitar o mesmo prato.
Mas o ingrediente mais venerado da região é a trufa banca. A cada temporada (do final de outubro a meados de novembro), chefs, comilões e traders do mundo gastronômico salivam pelo tartufo bianco, iguaria cujo preço pode chegar a 5 000 euros o quilo.
Há um bom número de passeios que levam turistas para “caçar” trufas. Com ajuda da bem recomendada Casa del Trifulau, segui morro acima o imparável Natale Romagnolo, integrante de uma família com várias gerações de tradição no ramo.
Mas, no bosque nos arredores de Costigliole d’Asti, a 25 quilômetros de Alba, quem ditava as regras era o cão Brio. A habilidade do trifulau (o caçador) consiste em controlar a empolgação do quadrúpede para que o animal encontre, mas não devore, o troféu.
Escandalosamente aromática, a trufa exerce o poder de um Everest de bacon sobre o apetite do cachorro. Ao detectar a iguaria, ele dispara a cavar. “Piano! Piano!” (Devagar! Devagar!), grita Natale.
Quando finalmente a trufa é desenterrada, resta ao Brio um inescrupuloso biscoitinho…
Diamante comestível
A trufa é um fungo subterrâneo que se desenvolve na trama formada pelas raízes de árvores como o carvalho e a nogueira. As brancas são tão valiosas porque crescem apenas no solo calcário argiloso do Piemonte e, em menor quantidade, na Toscana e na Croácia. Ao contrário do que se possa imaginar, ela não faz parte de receitas sofisticadas. Basta ralar algumas lasquinhas sobre ovos mexidos, por exemplo, ou sobre um prato simples de massa. A danada se basta. |
Capital de uma região contemplativa, Turim é cosmopolita, mexida, criativa
Menos de 100 quilômetros separam o Piemonte do aeroporto de Milão, que recebe voos diretos do Brasil. Mas quem vier de outras partes também pode aterrissar em Turim, a simpática capital piemontesa.
Industrial e tristonha até o fim do século passado, Turim selou a sua virada para receber os Jogos Olímpicos de Inverno de 2006. Nas últimas décadas, também cavou o seu espaço como epicentro da arte contemporânea na Itália.
Além de ter vários museus especializados, a cidade também é a sede da Artissima, a feira de arte mais importante em solo italiano que vem ganhando relevância internacional e, em novembro de 2016, recebeu 193 galerias de 34 países.
E, caso restasse alguma dúvida sobre a vocação de Turim, em 2014 foi incluída na Rede de Cidades Criativas da Unesco, ao lado de Seul, Montreal, Budapeste e Curitiba, entre outras.
Cosmopolita e vibrante, a quarta maior urbe da Itália, com 900 mil habitantes, é turbinada por praças decoradas por artistas renomados e bairros inteiros forrados de bares e restaurantes, animados pela numerosa comunidade de estudantes locais.
Para completar, na vizinha Rivoli está o célebre castelo do século 17 que abriga o Museo d’Arte Contemporânea Castello di Rivoli. Nas salas que hoje abrigam obras do canadense Frank Gehry e do britânico Ed Atkins viveram os membros da dinastia Savoia, uma das famílias reais mais antigas da Europa, que governou o extinto Reino da Itália até 1946, quando o país passou a ser uma república.
Texto publicado na edição 255 da revista Viagem e Turismo (janeiro/2017)
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