Roteiro gastronômico na Sardenha, do norte ao sul da ilha
Um zigue-zague pela boa mesa da ilha, provando delícias como o tagliatelle nero di seppia com aspargos, vôngole, ovas de bottarga, semifreddo e muito mais
Parece coisa de quem esquece que existem estações do ano, mas conheci a Sardenha no inverno. Afinal, quem vai a uma ilha paradisíaca que não seja para veranear? Só um apaixonado por comida como eu. Fiz um roteiro gastronômico de A a Z. Ou melhor, de O a C, da portuária Olbia, ao norte, à capital Cagliari, no sul. Passei duas semanas inesquecíveis em janeiro no mais espanhol dos territórios italianos – a ilha foi dominada em quatro séculos por catalães que deixaram influências notáveis na arquitetura, na língua e na culinária. Do continente, parti de ferryboat de Livorno, com um carro alugado.
Lugar de chegada, Olbia não tem grandes atrações além do centrinho histórico, que pode ser visto em meia hora de caminhada. É nesse pedaço que fica o Officina del Gusto no qual receitas tradicionais ganham sopro de novidade. Celebra-se a cozinha do mar, que caiu nas graças dos sardos nas últimas décadas – antes, eles se dedicavam a uma culinária rural, com carne e leite de ovelha como estrelas.
O tagliatelle nero di seppia com aspargos, vôngole e fios de lula é prova disso. Na finalização, recebe ovas de bottarga, orgulho local proveniente da cidade litorânea de Cabras. Recheado de amêndoas crocantes, o semifreddo com calda de chocolate é obrigatório na sobremesa.
De Olbia, chega-se facilmente ao Arquipélago Maddalena, que tem um charme que lembra Paraty. Não fazia frio nessa cidade solar da Costa Esmeralda, por onde andei em mangas de camisa e fui apresentado à panada. O salgado que lembra a nossa empada é uma versão da empanada catalã e pode ganhar recheios de carne ou só de vegetais. Mais espanhola impossível. A primeira da série que provei foi na Casa del Formaggio (Via Italia, 18).
Segui para Nuoro, a cidade mais fria do meu trajeto. No topo da montanha, tem como atração o moderno e bem montado Museu Etnográfico – centros culturais não são o forte da Sardenha. O percurso descreve a história da ilha e seus habitantes. O mais interessante por lá são os pães feitos como obras de arte para batizados, casamentos, funerais e dias santos.
Acabei trazendo um desses na bagagem de mão. Perto do museu fica o melhor restaurante da cidade, o Il Rifugio. Nessa trattoria, impera tradição. Por lá, a cabra vira matéria-prima para um presunto cru servido com o pão da casa, ricota de ovelha e mel de castanha. Na continuação, prove uma receita típica: o culurgiones, um ravióli grandalhão recheado de queijo pecorino fresco e batata com fios de casca de laranja.
De alma catalã, a litorânea Alghero fica no extremo norte da ilha, de frente para um Mediterrâneo sem praias mas tão deslumbrante quanto o da Costa Esmeralda. Daquele mar em que milionários deslizam suas lanchas vem boa parte da matéria-prima do Il Pavone. O menu degustação elaborado sob a supervisão do proprietário Domenico Caria reúne pequenas delícias, como a polpetta de peixe com cebola empanada e creme de grão-de-bico, além do duo de peixes, composto de corvina com alcachofra frita e na forma de purê, em parceria com o rombo com espinafre selvagem e pecorino.
Minha casa“Nunca falei em italiano com meus pais na vida, pois, em Olmedo, a 7 km de Alghero, usamos o dialeto logudorês, uma variante da língua sarda. Recomendo, em Alghero, um passeio no centro histórico: a arquitetura conservada da época medieval é incrível. Vá à Torre di Porta Terra, à Chiesa di San Francesco e ao Mercato Cívico, que tem degustações de pescados frescos e iguarias típicas.” Augusto Piras, Chef Sardo Radicado em SP |
Mais sofisticada das cidades da Sardenha e centro político de onde saíram dois presidentes da República, Sassari é encantadora, boa para fazer paradas em cafés e lojas de vinho. Mas é tímida em número de restaurantes. De simplicidade comovente, o L’Assassino conquista clientes brasileiros pela simpatia de seu chef e dono. Carmelo Neddu morou no Brasil e adora falar português. De sua cozinha rústica, sai um menu degustação para paladares cheios de apetites, receitas do campo como favas no molho de tomate com orelha de porco, caracóis (parentes dos escargots que ficam mais suaves e adocicados no frio) e bucho de cordeiro recheado.
Desprovida de charme, Porto Torres reserva uma surpresa à beira da estrada. O Li Lioni (Strada Statale, 131) faz o melhor pane carasau da ilha. O pão tem este nome, “carta de música”, porque a massa finíssima de sêmola e trigo de grão duro faz um barulhinho bom a cada mordida. Além da versão com azeite, há o pane fratau. Umedecido em brodo, ele ganha molho de tomate e ovo pochê. Come-se enrolado, como um wrap.
No meu zigue-zague de norte a sul da Sardenha num cenário muito verde e ao mesmo tempo árido e rochoso -, encontrei o mais obrigatório dos pit stop gastronômicos: o povoado de Siddi, com menos de 800 habitantes, a 20 minutos de carro da ruína de Su Nuraxi di Barumini, a mais grandiosa da civilização nurágica. Ali mora e trabalha o chef Roberto Petza, no ótimo S’Apposentu, que desde 2012 é premiado com uma estrela no Guia Michelin.
No restaurante, não adianta fazer economia. Há ótimos e caros menus degustação. No devotado ao mar, encontram-se lulinhas baby chapeadas com nhoque de ervas amargas ao molho de ouriço e peixe defumado sobre sorvete de cebola. A versão terra traz a casca de laranja recheada de creme de galinha, como um foie gras light, e a bochecha de boi cozida no vinho tinto com creme de batata com cogumelo.
Brava cucina“Nasci na Sardenha e um evento gastronômico que indico é o Girotonno, em Carloforte, na Ilha de San Pietro. O lugar é lindo e essa antiga festa anual celebra a cultura da pesca com receitas de atum. Já o Jaddhu, em Arzachena, é um restaurante de alta qualidade com agriturismo: os hóspedes acompanham a produção de queijos, azeites e salames e o cultivo de verduras e frutas. O restaurante autoral do chef Cristiano Andreini, Al Refettorio, em Alghero, tem produtos da região e muita técnica de preparo, frutos do mar…” Salvatore Loi, Chef do restaurante Mondo, em São Paulo |
Minha última parada foi na encantadora e no stress Cagliari. Dá prazer caminhar por suas ruas e praças, perfumadas de alecrim. Nos paredões naturais da centro antigo, alcaparras nascem agarradas às pedras. O lugar tem ótimas lojas de vinhos, com tintos das uvas cannonau e brancos de vermentino. E os restaurantes multiplicam-se por ruas e becos. Dos que provei nos poucos dias em que passei num charmoso apartamento da Via Sassari, trago na memória as sugestões clássicas, como o malloredus, um nhoquete de sêmola preparado com linguiça, e a crema catalana da Antica Hostaria. E o filindeu, massa delicada como cabelo de anjo esticada nas mãos, e a fregola, macarrão em forma de grão cozido num caldo ao vôngole, do Su Tzilleri ‘e su Doge.
A degustação de almoço do Sa Domu Sarda, relê os clássicos e preços em conta. Inclua no combo o carpaccio de cavalo em bifões altos e seadas, típicos pastéis de queijo fritos e regados com mel.
Para a cozinha contemporânea sarda, vá ao Luigi Pomata. O chef que dá nome à casa acerta em propostas como a sobremesa que mimetiza um limão verdinho recheado de semifreddo com licor limoncino, sorvete de limão, geleia de grapefruit e coalhada.
E, na gastronomia que namora a vanguarda, Perluigi Fais é a promessa. O jovem brilhante planta-se na pequena cozinha aberta do Josto e faz criações como a redução de camarão vermelho com o crustáceo cru e mexilhão, mais a seleção de grãos com lentilha, grão-de-bico, feijão e arroz negro.
O chef também comanda a melhor pizzaria da ilha, a Framento. A margherita é feita com requintes como só colocar o manjericão na cobertura depois de retirá-la do forno. Com tantas opções de boa mesa, garanto que a Sardenha pode ser visitada em qualquer época do ano – para quem quer comer bem.