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Guia retrata a Buenos Aires de Borges, Cortázar e outros imortais

O escritor e fotógrafo João Correia Filho faz um inventário afetivo-literário dos lugares onde viveram grandes autores portenhos – e seus personagens

Por Da Redação
Atualizado em 22 abr 2022, 20h00 - Publicado em 10 set 2019, 19h24
Rua Julio Cortazar, Agronomia, Buenos Aires, Argentina
 (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)
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Ganhador do Prêmio Jabuti 2012 na Categoria Turismo com o livro Lisboa em Pessoa – Guia Turístico Literário da Capital Portuguesa, o jornalista João Correia Filho lançou seu quarto guia focado na urbanidade poética de grandes cidades. Desta vez, ele faz uma reverência a escritores argentinos no Buenos Aires, Livro Aberto – A Capital Argentina nas Pegadas de Borges, Cortázar e cia, que saiu nos formatos impresso e de livro eletrônico.

João assina tanto o texto quanto as fotos em preto e branco e nos leva a uma viagem pelas casas, cafés e praças onde viveram e se inspiraram os grandes autores do país vizinho. O livro é composto por sete roteiros que passam pelos oito principais bairros da cidade, dos mais centrais e turísticos ao distante Agronomía, onde o escritor Julio Cortázar passou parte de sua juventude.

O autor selecionou, especialmente para a VT, locais inspiradores dessa Buenos Aires poética, um de cada região, para que você possa descobrir ou redescobrir por inteiro esta que é uma das cidades mais charmosas e literárias do mundo. 

Montserrat

Interior do Edifício Barolo, Montserrat, Buenos Aires, Argentina
O interior monumental e poético do Palácio Barolo. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Montserrat é o primeiro bairro a se formar na capital argentina e um ponto de convergência da grande maioria dos que visitam a cidade. Ali estão a Plaza e a Avenida de Mayo, locais de grande importância na vida dos portenhos e, consequentemente, de seus escritores. E é justamente na Avenida de Mayo que encontramos um local pouco conhecido dos turistas e que mantém uma curiosa relação com a literatura, o Palacio Barolo. Construído pelo empresário Luis Barolo, em 1923, o edifício foi inspirado na obra de Dante Alighieri e está repleto de analogias e referências ao épico A Divina Comédia, um poema monumental escrito no século XIV e que continua pungente, inspirador.

O congresso visto do alto do Edifício Barolo, Montserrat, Buenos Aires, Argentina
O Congresso Argentino visto do alto do Palácio Barolo. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Durante o passeio, você descobre algumas simbologias ocultas na gigantesca estrutura de concreto, como a divisão em três partes que norteia a obra de Dante: Inferno (térreo e subsolo), Purgatório (primeiro ao décimo quarto andar) e Paraíso (do décimo quarto ao vigésimo segundo). A estrutura toda, por sua vez, possui cem metros de altura e um total de 24 andares, o que corresponde respectivamente ao número de cantos e de estrofes do poema. O ponto alto da visita é a chegada ao paradisíaco terraço, que permite uma visão panorâmica da cidade e onde há um farol, que ilumina as noites da cidade. 

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San Nicolás

Interior da Galeria Güemes, Retiro, Buenos Aires, Argentina
Interior da Galeria Güemes, passagem que transportou personagem de Cortázar até Paris. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

O bairro preserva hoje o requinte portenho do início do século 20, materializado nas fachadas de cafés, livrarias, lojas e galerias. E em suas ruas. Afinal, é nesse bairro que fica uma das calles mais famosas da cidade, a Florida, e uma das galerias mais tradicionais da capital, a Güemes, inaugurada em 1915. Majestosa, figura na obra de Julio Cortázar, mais especificamente no conto “O outro céu”, lançado em 1966, no livro Todos os fogos o fogo. Nele, o personagem principal entra na Güemes e sai na Galerie Vivienne, no bairro parisiense de Opéra. O texto, um dos mais conhecidos do escritor argentino, deixa evidente sua forte atração por lugares fechados, por galerias e passagens. A Galeria Güemes também foi morada de ninguém menos que o francês Antoine de Saint-Exupéry, que viveu ali entre 1929 e 1930, período que trabalhou como aviador para a Compagnei Générale Aéropostale. Foi ali que escreveu Voo noturno, publicado em 1931, um ano depois de lançar o clássico O Pequeno Príncipe. O apartamento em que viveu o escritor pode ser visitado. 

San Telmo

Parque Lezama, San Telmo, Buenos Aires, Argentina
Um dos bancos do Parque Lezama foi cenário para os devaneios interiores de um personagem de Ernesto Sábato. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Conhecido por sua vida noturna e por sua feira de antiguidades aos domingos, San Telmo atrai gente do mundo todo. A verve literária do bairro pode ser apreciada num local frequentado predominantemente por portenhos, o Parque Lezama, seguindo rumo ao sul da cidade. 

É ali, num dos bancos dessa grande área verde, que algumas das principais cenas de Sobre Heróis e Tumbas, obra de Ernesto Sábato, se desenrola. Logo nos primeiros parágrafos você descobre que um dos personagens, Bruno, está buscando refúgio próximo a uma estátua da deusa da agricultura. “Sentou-se num banco, perto da estátua de Ceres, e ficou imóvel, entregue a seus pensamentos”, diz o narrador. O Parque Lezama foi inaugurado no início do século 20, e teve como último proprietário Gregorio Lezama. Fica próximo ao Bar Británico (Av. Brasil 399), que foi muito frequentado por Sábato.

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La Boca

Interior de La Perla, La Boca, Buenos Aires, Argentina
As paredes do La Perla exibem sutilezas há mais de um século. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Uma vez às margens do rio Riachuelo, que corta o bairro, fugimos do burburinho turístico do Caminito e nos abrigamos num dos mais tradicionais cafés portenhos, o La Perla (Av. Don Pedro De Mendoza 1899), fundado em 1882. O lugar carrega mais de um século de poesia, a começar pelos detalhes dos móveis que nos remetem a uma embarcação. E não estamos falando de decoração temática, exagerada, mas de sutilezas, como pequenas placas de metal espalhadas pelo balcão e mesas, que determinam nossa posição dentro da nau — tripulante, capitán… Literatura pura. Se tiver tempo, vale um passeio na vizinha Fundación Proa, que, além de arte contemporânea, tem uma ótima livraria. 

Livraria da Fundação Proa, La Boca, Buenos Aires, Argentina
A encantadora livraria da Fundação Proa, a um pulo do Caminito. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Retiro

Retiro, Buenos Aires, Argentina
“Quantas solidões haveria só naquele arranha-céu”, escreveu Ernesto Sábato sobre o imponente edifício Kavanagh, na Plaza General San Martín.Crédito:quantas solidões haveria só naquele arranha-céuquantas solidões haveria só naquele arranha-céu (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

A Plaza General San Martín, epicentro do bairro do Retiro, nos mantém ligados a Ernesto Sábato. Seu entorno repleto de edifícios e monumentos também serve de cenário à trama de Sobre heróis e Tumbas, como é  o caso da Torre de los Ingleses e do edifício Kavanagh. “Martín contemplava a Torre de los Ingleses, que marcava o avanço do tempo. Mais atrás destacava-se o complexo da Companhia de Eletricidade, com suas chaminés grandes rechonchudas, e o Puerto Nuevo, com seus elevadores e guindastes: abstratos animais antediluvianos, com seus bicos de aço e cabeças de pássaros gigantescos inclinadas para baixo, como para bicar os barcos”, descreve Sábato. 

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Em outro trecho, o imponente edifício de concreto revela-se em reflexões do personagem: “Contemplou o Kavanagh, cujas janelas começavam a ser iluminadas. Também lá no alto, no trigésimo quinto andar, talvez num quartinho um homem solitário também acendesse uma luz. Quantos desentendimentos iguais aos deles, quantas solidões haveria só naquele arranha-céu!”, indaga Martín. 

Placa na casa de Jorge Luis Borges na rua Maipú, Retiro, Buenos Aires, Argentina
Aqui viveu o mestre. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Vale lembrar que na Calle Maipú, 994, a poucos metros da praça, ficava a casa de Jorge Luis Borges, na qual viveu mais de quarenta anos, de 1944 a 1985, um ano antes de sua morte. Foram quatro décadas gloriosas na vida do escritor, período que escreveu obras importantes como O Aleph, O ouro dos tigres, O livro dos seres imaginários e História da noite.

Recoleta 

Livraria El Ateneu Gran Splendid, Recoleta, Buenos Aires, Argentina
El Ateneo Grand Splendid se tornou personagem de uma cidade que ama os livros. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Trata-se do bairro do mais famoso cemitério da capital argentina. Mas é também local de uma das mais belas livrarias do mundo, a El Ateneo Grand Splendid. E isso sem exagero algum. A Grand Splendid ocupa o que já foi o Teatro Norte, inaugurado em 1903, que se tornaria, em 1919, o El Splendid Theater, dando origem ao nome que carrega ainda hoje. Em 2000, a rede de livrarias El Ateneo o comprou, restaurou e adaptou o lugar para ser uma das mais imponentes bookstores do mundo, sem perder sua marca arquitetônica: a majestosa cúpula, os detalhes do palco, as pinturas. Onde havia cadeiras para o público há estantes com livros, CDS e DVDS. No palco há um café cujas mesas podem ser vistas através da abertura da cortina, como se estivéssemos diante de uma plateia formada por livros e pessoas. 

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Da Grand Splendid, sugiro uma visita a Fundación Internacional Jorge Luis Borges, dirigida por Maria Kodama, companheira do escritor. O local nos ajuda a entender um pouco mais a trajetória e a dimensão de sua obra no mapa da literatura universal e exibe alguns pertences – a biblioteca particular, manuscritos, quadros inspiradas em seus livros, a coleção de bengalas e alguns objetos curiosos, como o mapa astral feito pelo pintor e amigo Xul Solar. Aliás, outro museu interessante para se conhecer.

Palermo

Corredor do Paseo el Rosedal, Palermo, Buenos Aires
Em meio às milhares de roseiras no Jardín de los Poetas, estátuas de Lorca, Dante, Shakespeare e, claro, Borges. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Palermo é o bairro por excelência do escritor Jorge Borges Luis Borges, o que já o torna um ponto de interesse para os apaixonados por livros. Sugiro começar o passeio em um lugar inusitado, o Jardín de los Poetas, que fica no Parque 3 de Febrero. É onde a literatura se apresenta imortalizada em bronze – ali estão dispostas 26 estátuas de escritores de várias partes do mundo, entre eles o espanhol Federico García Lorca, o cubano José Martí, o inglês William Shakespeare, o italiano Dante Alighieri e os argentinos Enrique Larreta, Alfonsina Storni e, claro, Borges, ao lado de Lorca. Estão todos rodeados por rosas de várias cores que formam o Paseo del Rosedal, lugar encantador que exibe canteiros que somam mais de 18 mil roseiras de várias espécies, ladeados por caminhos de pedra que formam figuras geométricas e compõem um belo cenário com pérgolas de madeira, lagos com patos e jardins bem cuidados. Tudo muito inspirador.

Agronomía 

Interiror da casa onde viveu Julio Cortazar, Agronomia, Buenos Aires, argentina
Saguão do edifício onde viveu Julio Cortázar. Crédito: (João Correia Filho/Editora Mireveja/Divulgação)

Trata-se de um bairro mais distante do centro e dos principais pontos turísticos de Buenos Aires. Mas é o bairro onde o escritor Julio Cortázar viveu parte de sua infância e que ajuda a desvendar alguns pontos de sua obra, principalmente de livros como La otra orilla, Os reis e Bestiário, lançados no período em que viveu ali com sua família. Afinal, foi ele mesmo quem disse em uma entrevista que “os verdadeiros escritores são como caracóis — carregamos a nossa casa nas costas”. No caso, estamos falando de um conjunto de casas e edifícios construídos no início do século XX, para trabalhadores de baixa renda, conhecido como bairro Rawson, mas que fica oficialmente no bairro de Agronomía. Ali, no número 3.246 da Calle General José Gervasio Artigas, está o edifício de quatro andares onde Julio Cortázar passou parte de sua vida, entre 1931 e 1951. O apartamento do terceiro andar não está aberto à visitação, mas uma placa colocada na fachada do prédio no ano de 2000 pela prefeitura de Buenos Aires indica de forma concisa o quanto o local foi marcante para o escritor: “O clima do bairro Rawson e Agronomía está presente em vários de seus contos”. A Calle Artigas é cortada pela Calle Julio Cortázar, homenagem ao escritor.

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Aos que se deslocaram até ali, além de toda essa atmosfera, há outras recompensas – na esquina da casa de Cortázar, na Artigas 3199, está o Rayuela Bar, um local simpático, cujo nome é referência a uma das principais obras do argentino, O jogo da amarelinha (Rayuela, em espanhol). Com flores na janela e nas mesas, cardápio com ótimas opções e boa música ambiente é um ótimo lugar para sentar, ler e ouvir um delicado jazz, gênero musical preferido do escritor. 

João Correia Filho é fotógrafo e escritor. É autor de Lisboa em Pessoa, À luz de Paris São Paulo, literalmente. Seu mais recente livro e tema desta reportagem, Buenos Aires, Livro Aberto – A Capital Argentina nas Pegadas de Borges, Cortázar e cia, foi lançado em versão digital e impressa.

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