Quando decidi morar na Espanha, 17 anos atrás, escolhi Barcelona de olhos fechados e tenho certeza de que fiz a opção certa. Mas Madri tem duas coisas que jamais deixarei de invejar: o Mercado del Rastro e a capacidade dos madrilenos de prestigiá-lo.
Por mais que mercadinhos interessantes tenham brotado em Barcelona nos últimos anos, não temos nada nem remotamente parecido. Não se trata apenas de um mercado. É um acontecimento, um estado de espírito. Madri não tem praia. Tem o Rastro. É quase tão simples assim: há mais de 400 anos, nas manhãs de domingo, os madrilenos se congregam nas ruas de La Latina. E continuam a curtir esse ritual com o mesmo fervor de sempre, democraticamente misturados a milhares de turistas.
Várias ruas nos arredores do Mercado de la Cevada se enchem de barraquinhas onde é possível encontrar de tudo: roupas novas e usadas, antiguidades, vinis, leques, bijouterias, quadros, plantas, livros e mais uma quantidade indescritível de bugigangas. Mas não se trata apenas de comprar – consumir, aliás, muitas vezes e a última intenção de quem circula por lá. O que importa é celebrar a cidade, ver gente, curtir um showzinho de jazz no meio da rua, outro de flamenco… no maior espírito “vida leva eu”. É deixar o corpo mole e fluir com a multidão.
E na medida que os ponteiros roçam o meio-dia, as mesas nas calçadas e os balcões dos infinitos bares de tapas La Latina vivem uma catarse que invade a tarde de domingo. Com seu jeitão desencanado, serviço péssimo e um ambiente irresistível, o terracinho no topo do bar El Viajero converte-se no metro quadrado mais disputado da capital. As tortillas do Juana la Loca fazem a terra tremer. E quem quiser agito, pero no mucho, também pode tentar a sorte em algum lugarzinho da guapísima Plaça de la Paja – meu achado mais recente aqui é o excelente Naia Bistro.
Mas o madrileno raiz é o que faz questão de comer uns caracoles (escargot) da Casa Amadeo, cujo dono continua dando expediente, firme e forte, aos 80 anos. É o que vai de cabeça nos ovos com batatas do igualmente lendário Lucio (que, aos 83 anos, vigia de perto o salão). Algumas coisas em Madri não mudam nunca. E a gente agradece.
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