Antes de ser reconhecida e amada pelos brasileiros como um dos principais destinos de esqui do Hemisfério Sul, a cidade mais austral do planeta guarda uma história tão trágica quanto fascinante. Porta de entrada para o continente antártico e fundada em 1844, por anos a fio Ushuaia não passou de um lugarejo perdido que só foi colocado no mapa porque a Argentina precisou construir um presídio.
Por não haver mão de obra para a empreitada, quem ergueu o cárcere foram os próprios detentos, que logo na chegada viviam meio que “livres”, até porque em uma eventual tentativa de fuga não haveria como sobreviver em uma terra gélida e indomada. Cortar lenha ou fazer qualquer outro trabalho braçal eram chances que os presos tinham de se esquentar. Uma visita ao Museu del Presidio de Ushuaia é fundamental para entender como a história do lugar e da ocupação da cidade se confundem.
O Centro de Ushuaia, a um pulo do museu, foi crescendo aos poucos e não é exatamente bonito ou charmoso (a neve do inverno tende a dar um ar um pouco mais alpino). Parece haver nas ruas e vitrines uma espécie de estética do fim do mundo, que, mesmo tendo surgido de maneira involuntária, acaba imprimindo uma marca. Na avenida principal, a San Martín, por exemplo, as lojas de suvenires, que são muitas, vendem aqueles pratinhos de louça desbotados com desenhos de pinguim e cara de vó, bem como camisetas largas de malha grossa que se usava nos anos 1980.
E não se trata de moda retrô, as coisas é que são naturalmente vintage. Há exceções, como a Atlántico Sur, com itens de free shop, e a excelente Popper, com absolutamente tudo para esportes de aventura. A San Martín tem ainda vários restaurantes, alguns com aquários na vitrine que exibem as centollas, um caranguejo gigante com patas que chegam a ter 20 centímetros.
No mínimo três dias inteiros. Quatro seria o ideal para não virar uma maratona. Um para o passeio de 4×4 pelos lagos Fagnano e Escondido, que pode ser emendado com uma visita ao presídio; um para a navegação pelo Canal de Beagle para ver pinguins na Ilha Martillo (apenas entre novembro e março – nos demais meses, o passeio vai à ilha dos lobos-marinhos e ao farol); um para o Parque Nacional Tierra del Fuego; e um para a trilha até a Laguna Esmeralda. Sempre que achar uma brecha na agenda, vale dar uma volta no centrinho. No inverno, um dia pode ser dedicado ao esqui no Cerro Castor e outro para passeios de trenó no Tierra Mayor.
Castores e pinguins
O que a cidade entrega com propriedade são os passeios na natureza. Um deles é o de 4×4 que muitas agências de turismo oferecem. No meu caso, fiz o passeios Lagos Off Road com a Antartur. Primeiro, fizemos uma parada no Centro Invernal Tierra Mayor, que no inverno realiza passeios com raquetas, um tipo de prancha que permite andar sobre a neve com algum conforto, e também patinação no gelo e passeios em motos de neve. Por ter visitado o lugar em março, no verão, o cenário era de um gigantesco tapete verde à beira das montanhas e o que se faz mais nessa época são as cavalgadas.
Seguimos dali pela Ruta 3 e paramos em um mirante com um belo visual dos lagos Escondido e, mais ao fundo, Fagnano, nossos próximos destinos. O 4×4 pegou então uma picada esburacada até chegar à beira d’água. Seguimos sacolejando mais um longo pedaço e passamos por uma castoreira, que é identificável por clareiras e um amontado de troncos mutilados, resultado do trabalho laborioso dos castores de arrasar trechos do bosque para construir diques.
Esses mamíferos de hábitos noturnos foram trazidos do Canadá e viraram uma praga por não terem predadores. Já passava da hora do almoço e no retorno à cidade estacionamos à beira da rodovia e, depois de uma trilha curta, chegamos a uma cabana das mais aconchegantes – era o refúgio Nunatak. E foi ali que o nosso motorista e guia, Cristian, mostrou mais uma habilidade: a de assador. O ojo de bife que ele serviu estava uma manteiga de tão macio e suculento.
Outro passeio que é um trademark é a visita aos pinguins da Ilha Martillo e que só acontece de novembro a março. Em frente ao porto e atrás do excelente escritório de informações turísticas, várias agências de passeio sediadas em casinhas de madeira vendem o tour. Os catamarãs que partem dali passam pela ilha dos lobos-marinhos, pelo Farol Les Eclaireurs e seguem pelo Canal de Beagle até a ilha onde os pinguins-de-magalhães e de-papua passam o verão.
Mas chegando lá você só dá tchauzinho e tira foto, ninguém desce do barco, o que é pouco frustrante porque afinal são cinco horas de navegação ao todo. A única empresa que tem autorização para descer na ilha é a Piratour e o acesso é feito por terra até a Estancia Harberton seguida de dez minutos de lancha até a ilha. E vale muito a pena para ficar pertinho deles, ainda que seja mais caro. O melhor é reservar antes de chegar a Ushuaia porque há limite de 100 pessoas por dia.
Tierra del Fuego
O Parque Nacional Tierra del Fuego é outro atrativo muito buscado, sendo um dos motivos principais o passeio de trem que remete ao tempo em que os presos derrubavam madeira para abastecer a cidade. É um parque interessante, guarda uma agência postal mais ao sul do mundo, na Enseada Zaratiegui, há quatro trilhas demarcadas em que se vê a vegetação típica, como a lenga, o canelo, o guindo e o ñire, mas está longe exibir algo da envergadura de um Perito Moreno, em El Calafate.
O parque é enorme, as trilhas chegam a ter 8 quilômetros e não existe transporte de um ponto ao outro. Não é fundamental ir com agência de passeio, mas sem dúvida facilita. A Ushuaia Outdoors, por exemplo, tem uma base lá, com botes infláveis para navegação e guias para conduzir pelas trilhas. Muitas pessoas optam por contratar um taxista para o passeio que pode durar cerca de 5 horas.
Arakur, o melhor hotel do fim do mundo
A cidade ganhou em 2014 um incremento digno de nota na hotelaria, o Arakur Ushuaia Resort & Spa, uma construção imponente a 5 quilômetros do Centro, incrustada no alto de uma montanha. Foi ali que Leonardo DiCaprio se hospedou quando esteve na cidade para rodar parte do filme O Regresso.
Os quartos têm umas firulas que a gente aproveita com um sorriso meio besta, como ajustar um relógio na parede para que o blecaute da janela se erga automaticamente na hora programada. Na piscina aquecida, com a água pelando como deve ser, um janelão parece delimitar o fim dela, mas aí você mergulha e ela continua no lado externo com um visual e tanto para a cidade. O lado “ruim” do hotel é que sair dele para os passeios pode dar uma enorme preguiça. O hotel disponibiliza uma van que leva você até o ponto onde existe a famosa placa do fim do mundo e dali você caminha para o centrinho.
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Abastecida pelo derretimento da Geleira Ojo del Albino, a Laguna Esmeralda reserva um espelho-d’água lindíssimo. É possível tanto contratar um passeio guiado quanto ir por conta própria. No verão, as vans saem das 9h às 16h, a cada hora cheia, de um bolsão na Avenida Maipú e deixam você no início da trilha. O percurso só de ida dura cerca de duas horas, mas tem um porém: no caminho há trechos de muita lama e por isso ter galocha ou bota de cano alto é fundamental. Por esse motivo também há quem prefira ir com algum guia, que consegue desviar um pouco do lodaçal. Nas idas à tarde, a chance de ver castores no caminho é maior.
Onde ficar
Encrustado no alto de uma colina, o Arakur é a opção luxuosa, com piscinas aquecidas e hot tubs ao ar livre. A paisagem também é o forte do Las Hayas, cujos quartos têm vista para um bosque. O Albatros fica no coração do Centro e de frente para o Canal de Beagle. Um pouco mais afastado, o Los Cauquenes Resort Spa também fica em frente ao canal Beagle e o transfer até o centrinho está incluso na diária.
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No Centro, o Las Lengas ocupa um edifício de pedra, com janelões de vidro. O Oshovia é um hostel muito organizado e aconchegante que fica a cerca de 20 minutos de caminhada do Centro. Muito funcional e perto do centrinho é o Aves del Sur, que prima pelo atendimento. A oferta de apartamento de temporada no Ushuaia via Airbnb é muito farta e variada.
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Onde comer
O restaurante do Arakur, o La Cravia, recebe não hóspedes para o jantar mediante reserva. Vale muito para comer parilla, provavelmente a melhor da cidade, só carne de primeira. O Kaupé é especializado em frutos do mar e tem centolla de entrada, assim como o La Cantina de Freddy. O Bodegón Fueguino é uma boa opção para comer o cordeiro patagônico.
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Passeios
A Ushuaia Outdoors leva para um dia de trilha e canoagem no parque nacional. O passeio de 4×4 da Antartur com churrasco no refúgio Nunatak é imperdível. Só com a Piratour é possível pisar na ilha dos pinguins. Os catamarãs da Tolkeyen navegam no Canal de Beagle.
Vale a pena conhecer o Museu do Presídio durante a visita guiada e fazer o passeio do Trem do Fim do Mundo.
A Jumping aluga botas e calças impermeáveis e tudo de esqui, inclusive traslados. A agência Brasileiros em Ushuaia é referência em passeios ali, e o atendimento é feito por brasileiros.
Quando ir?
A temporada de esqui em Ushuaia vai de junho a outubro; muitos dos passeios ao ar livre continuam acontecendo, mas o frio é sacrificante – melhor deixar para ir no verão.
Dinheiro
Saiba mais sobre o câmbio na Argentina.
O que vestir?
Brasileiro não tem know-how de verão patagônico. Em linhas gerais, encare como se você estivesse indo para o inverno na Europa. Ceroulas, meias com boa quantidade de lã, blusa segunda pele (que só cumpre a função térmica se estiver bem aderida ao corpo), fleece, casaco corta-vento, gorro e luvas são itens a serem colocados na mala. Na Patagônia, você pode alugar calça impermeável corta-vento e bota de trekking, fundamentais na hora de andar sobre o gelo e fazer trilhas se você for do time dos friorentos.
Você pode combinar Ushuaia com El Calafate e também com El Chaltén.