Perito Moreno e El Calafate: roteiro completo
Os glaciares Perito Moreno e Upsala e outros cenários gelados de um dos lugares mais impactantes do mundo
Geleiras, picos de neve eterna, icebergs, nada disso se via da janela. Enquanto o avião se preparava para pousar no aeroporto de El Calafate, o que se apresentava era uma terra árida, desértica, plana e seca. Aquilo tudo estava mais para o Atacama do que para a minha ideia de Patagônia.
Se eu tivesse me dado o trabalho de pesquisar sobre a estepe patagônica antes de sair de casa, saberia que boa parte dessa região é tomada por extensos tapetes vegetais e arbustos baixinhos de tons amarelados e escuros. Outra coisa que também me pegou de surpresa: apesar das temperaturas oscilarem de 1°C a 10°C em março, e que estava nos meus planos caminhar sobre o gelo, eu não passaria frio em nenhum momento.
Passar trabalho com temperaturas extremas, seja frio, seja calor, é coisa que azeda qualquer viagem. O clima seco da patagônia argentina é uma das razões e a outra, claro, foi estar com a roupa adequada.
El Calafate é uma cidade de 22 mil habitantes que tem todos os olhares voltados para a sua avenida principal, a Libertador San Martín. Para qualquer direção que se olhe, você encontra restaurantes, lojas de recuerdos, de equipamentos para esportes de aventura, de geleias, alguma cervejaria artesanal, cassino, bar de gelo e até um museu de brinquedos.
A San Martín é uma artéria fundamental para quem viaja para El Calafate, mas seu papel é mais funcional do que o de causar algum encantamento. Ao perambular, não há como ficar indiferente aos muitos cachorros de rua. Alguns são roliços, lanudos e, num primeiro momento, podem ser confundidos com uma ovelha; outros têm quase a altura de um pônei.
Nesse primeiro dia, fui jantar no Isabel Cocina al Disco, na Calle Gobernador Moyano, a mesma rua do hotel onde eu estava, o Los Álamos. Os pratos são preparados em um disco de arado e a carne vem se desmanchando.
Perito em embasbacar
No dia seguinte à chegada a El Calafate, um transfer passou às 8h da manhã no hotel e seguiu para a atração carro-chefe desse pedaço, a Geleira Perito Moreno (há também ônibus da Taqsa que sai da rodoviária). Até a entrada do Parque Nacional Los Glaciares são 70 quilômetros por uma estrada reta, magnífica, deserta, coberta pela tal estepe patagônica e ladeada pelo imenso Lago Argentino. Como é que geleiras poderiam vingar em uma paisagem assim continuava a ser um enigma.
Ao longo do caminho surgiam lebres que pareciam querer disputar corrida com o carro. Sim, lebres. Mas algo no senso de direção das bichinhas parece não funcionar bem e algumas simplesmente se jogaram no meio da estrada e o desfecho foi trágico. E nessa hora entrava em cena o carancho, um carcará que fica pousado em moirões na beira da rodovia só esperando a lebre virar foiegras.
Chegando ao parque nacional, paguei a entrada e seguimos por 10 quilômetros até chegar a um amplo estacionamento. Ali pegamos uma van, que nos deixou na entrada das passarelas. Uma chuva fina insistia sobre a gente, mas que perdeu a importância a partir do momento em que à frente se descortinava um continente branco e azul.
Um painel mostra que existem cinco circuitos de passarelas que totalizam quase quatro quilômetros. Você pode descer por rampas que são aptas para cadeirantes, em linha reta por escadarias ou de elevador.
Fui descendo o circuito inferior de passarelas até ficar de frente para a zona de ruptura, a parte em que o paredão de gelo faz fronteira com o canal do Lago Argentino, formando uma comissão de frente de seis quilômetros de geleira. De vez em quando era possível ouvir um trincar seguido por um estampido seco, como se fosse um tiro de canhão.
Eram blocos de gelo que desprendiam e despencavam de uma altura de 70 metros nas águas turquesa do lago. E como se ainda fosse possível melhorar o que já era sublime, a chuva que insistia em cair naquela tarde deu uma trégua e um facho de sol, antes encoberto por pesadas nuvens, passou a iluminar o extremo direito da geleira. E veio vindo, veio vindo, veio vindo e “acendendo” aquele imenso açude congelado.
Há quem passe uma única noite na cidade apenas para ver o Perito Moreno. Mas o ideal são no mínimo duas para incluir também a Geleira Upsala, que pode ser visitada no passeio à Estancia Cristina ou no tour chamado Ríos de Hielo, que também passa pela Geleira Spegazzini (não inclui o Perito Moreno). Outra opção seria fazer um passeio de caiaque pelos icebergs da Upsala. Com um dia a mais, você pode incluir o passeio chamado Balcón de El Calafate a bordo de um 4×4, que reserva panorâmicas lindas da cidade, e, na volta, é possível dar um pulo no Glaciarium, um centro interpretativo das geleiras, com direito a um bar de gelo. Se você gosta de caminhadas, inclua no seu roteiro El Chaltén, o paraíso do trekking que fica a duas horas de El Calafate – considere aí duas noites a mais ou mesmo uma semana.
Um upgrade nessa experiência é o minitrekking sobre o Perito Moreno que é operado pela Hielo y Aventura. O porto de onde sai o passeio fica dentro do parque nacional, a sete quilômetros das passarelas. Pegamos um barco até a outra margem do Lago Rico e lá fomos divididos em grupos menores. Pegamos uma trilha e logo estávamos vendo a geleira ao nível do chão, em uma prainha. E foi ali que a explicação do nosso guia fez sentido para entender todo aquele gelo em um lugar tão árido.
O fenômeno tem início a uns 70 quilômetros na direção do fundo da geleira, na chamada zona de acumulação, em que a precipitação em forma de neve é constante. A neve vai sendo compactada pelo próprio peso e depois de uns 15 anos de compressão ela se transforma em gelo glaciar. Chega a um ponto em que as geleiras transbordam, começam a deslizar e contam ainda com o empurrãozinho de um rio que corre por debaixo. É um ciclo dinâmico e incessante, razão pela qual não se trata de uma geleira milenar.
Depois dessa breve aula, andamos um pouco mais e paramos em um abrigo de madeira para amarrar às botas os grampones, um acessório que aumenta o atrito nas passadas. Dali em diante, cada grupo foi pegando uma direção e a cena de pessoinhas subindo ao longe em fila indiana sobre aquele mundo branco foi das coisas mais lindas. O percurso é um sobe e desce passando por corredores, fendas, sumidouros.
Partes da geleira são de um azul de difícil definição e que atingem essa tonalidade porque o gelo é compacto, sem bolhas de ar e, segundo explicou o guia, a luz branca que penetra não absorve por completo a cor azul, que bate no fundo da geleira e volta plena, irradiante, irreal. Foi um passeio que exigiu esforço mínimo e a recompensa foi máxima.
Só existe uma coisa ruim no minitrekking, que durou coisa de cinco horas: o preço. É fundamental fazer? É uma experiência e tanto, mas, se o bolso não permitir, não faça e vá embora tranquilo: as passarelas entregam o ouro.
Dos pratos típicos, o cordeiro patagônico se destaca. As peças costumam ser assadas em um braseiro no chão, com o espeto em formato de cruz pousado na vertical. Quem assistir no Netflix ao episódio sobre o cozinheiro argentino Francis Mallmann, na série Chef ‘s Table, poderá ver como se faz isso ao ar livre. Em El Calafate, você pode escolher entre casas mais formais como o Casimiro Biguá e até o simplérrimo Estilo Campo, de uma família de chineses que cobra um fixo para comer cordeiro e parrilla à vontade. As empanadas também podem ser encontradas em diversas portinhas a coisa de 6 reais a unidade.
Um azul inventado
No dia seguinte, peguei a mesma estrada como se voltasse ao Perito Moreno, mas, quando chegamos a uma bifurcação, dobramos à direita e seguimos até o Puerto Punta Banderas. O destino do dia era a Estancia Cristina, tour que sai às 8h30 e retorna por volta das 7 da noite. Zarpamos em um barco confortável e nossa primeira parada, cansativas três horas depois, foi próximo à Geleira Upsala.
Não tivemos a visão massiva do conjunto como foi o caso do Perito Moreno, mas, quando o barco alcançou um canal relativamente estreito, começamos a enxergar icebergs. Quanto mais avançávamos, mais eles surgiam, e a turma foi tomada por um frenesi. O afã é justificável: os icebergs são de um azul eletrizante e ficam ainda mais radiantes com a incidência do sol (se estiver chovendo e ventoso, a experiência toda pode ser frustrante).
Seguimos pelo Lago Argentino até a Estancia Cristina e ao pisar em terra vem a certeza de que estamos em um dos lugares mais longínquos do planeta. A família Masters, da Inglaterra, se fixou na área, que ocupa o equivalente a 30 campos do Maracanã, em 1912. A motivação era criar ovelhas. Andamos por um descampado por 20 minutos até chegar ao restaurante. O aconchego e o conforto impressionam, ainda mais levando em conta quão isolados estávamos. O menu de três pratos é correto e nada mais. Os Masters tiveram filhos, mas não netos, o que encurtou a saga familiar. A Estancia Cristina hoje tem 20 quartos muito confortáveis distribuídos em cinco cabanas pelo vastíssimo terreno.
A experiência Robson Crusoé de pernoitar deve ser bem mais interessante do que passar o dia. Quem fica tem acesso a trilhas e passeios mais extensos. Os guias da estância são muito gentis, incrivelmente versados na história dos Masters, mas essa qualificação toda faz o lugar perder um pouco a espontaneidade. A visita monitorada pela propriedade vira praticamente uma versão patagônica de O Tempo e o Vento e se estende por eterna hora e meia com um guia contando minúcias que eu esquecia um segundo depois.
O passeio vale, na verdade, para o que está reservado no final: embarcar em uma caminhonete tracionada e sacolejar 10 quilômetros por picadas na montanha para termos uma panorâmica da Upsala. Após pegarmos uma trilha, vimos a geleira a léguas de distância. Ainda assim, o lugar transmite um clima de solitude e apequenamento que chega a comover.
Um passeio bucólico para se fazer em El Calafate é caminhar da Avenida San Martín até a Laguna Nimez, um santuário de aves. Muitas delas não vivem ali o ano inteiro, mas usam a lagoa como refúgio antes de migrarem para outras patagônias. A reserva possui 2,5 quilômetros de trilhas e mirantes para observação da fauna e da flora.
É possível ver também arbustos de calafate, que acabaram dando nome à cidade. Seu frutinho roxo é a base de geleias, chocolates e sorvetes, mas o sabor é zero marcante. Das quase 50 espécies de ave que batem ponto ali, umas das mais cobiçadas é o flamingo. Ter um binóculo torna a experiência mais interessante.
Onde ficar?
A um pulo do Avenida Libertador, o Posada Los Álamos tem os quartos de um lado da rua e, atravessando-a, ficam a ampla área de lazer e o restaurante. Próximos dali, o Patagônia Queen e o Calafate Parque têm jacuzzis nos quartos. O Design Suites está afastado do Centro e tem vistas lindas do lago.
Onde comer?
No excelente Isabel Cocina al Disco, as receitas são preparadas no disco de arado. O Kau Kaleshen serve ótimos risotos. O Casimiro Biguá possui duas unidades na Avenida del Libertador (números 963 e 993) e serve de merluza-negra à tradicional parrilla. No La Zaina, o cordeiro no malbec arranca elogios.
Passeios
A Hielo y Aventura é a única agência autorizada a fazer os trekkings pelo Perito Moreno, de agosto a maio. A mesma empresa também opera passeios de barco para avistar o Perito.
A Estancia Cristina funciona de outubro a abril e os passeios incluem navegação e visita histórica e podem ter adicionais como o Mirante Upsala ou um trekking. A Solo Patagonia organiza passeios em catamarã para avistar as geleiras Upsala e Spegazzini.
A Upsala Kayak Experience leva a passeios de caiaque entre os icebergs da Upsala. As atividades até aqui mencionadas têm adicional de entrada para o parque nacional. O Glaciarium é um museu que fica na saída da cidade, detalha aspectos dos glaciares e tem também um bar de gelo. Há ônibus gratuito que sai do Centro. A loja A Barraca (Emilio Amado, 833) aluga bota de trekking e calça impermeável.
Quando ir?
O verão e o outono são as melhores estações para ir para El Calafate. De dezembro a fevereiro os termômetros alcançam os 20°C, mas os dias costumam ser ventosos e os passeios no Perito Moreno ficam mais cheios.
Dinheiro
Peso argentino. Dólares são aceitos nas agências de passeios, mas não na entrada dos parques nacionais. Muitos lugares não aceitam cartões.
Esticadas
É comum combinar El Calafate com Torres del Paine, no Chile. A viagem até Puerto Natales, porta de entrada, leva cinco horas nos ônibus da Bus Sur. Evite fazer bate-e-volta porque você vai passar mais tempo dentro do ônibus do que aproveitando o lugar. E, na verdade, você precisa de alguns dias para conhecer de verdade Torres del Paine. Outra combinação possível é embarcar em um cruzeiro de três noites da armadora Australis que vai de Ushuaia até Punta Arenas e de lá seguir por terra até Puerto Natales.
O que vestir?
Brasileiro não tem know-how de verão patagônico. Em linhas gerais, encare como se você estivesse indo para o inverno na Europa. Ceroulas, meias com boa quantidade de lã, blusa segunda pele (que só cumpre a função térmica se estiver bem aderida ao corpo), fleece, casaco corta-vento, gorro e luvas são itens a serem colocados na mala.
Busque hospedagem em Buenos Aires