Sucesso da Netflix, a série Chef’s Table, que retrata em cada episódio um cozinheiro de renome da gastronomia internacional, chegou à segunda temporada na última sexta-feira, dia 27 de maio, com um atrativo a mais para o público brasileiro: o segundo dos cinco novos programas é dedicado ao cultuado chef Alex Atala, do restaurante paulistano D.O.M.
“O chef aventureiro Alex Atala lança mão de seu espírito selvagem e do amor pela Amazônia para provar como uma mente aberta é capaz de produzir iguarias deliciosas”, diz a sinopse do episódio, que tem duração de 51’30”.
Camiseta preta com o slogan Death Happens (A Morte Acontece), Alex Atala avisa que talvez terá dificuldade de se expressar com precisão em inglês. A seguir, começa a contar sua história de forma ora pausada, ora claudicante, num inglês esforçado e compreensível.
Em agosto de 2013, já consagrado, Atala “causou” ao matar uma galinha no palco do MAD, importante simpósio sobre gastronomia contemporânea em Copenhague. Exibidos em Chef’s Table, o abate de uma ave na Amazônia e a camiseta Death Happens revelam não só a fixação de Atala pelo tema comida x morte-da-comida, mas também um cruzamento de marketing e espetáculo, como foi visto no encerramento apoteótico de sua apresentação na Dinamarca.
Mostrado quase sempre sozinho em Chef’s Table, só eventualmente acompanhado por um guia na mata ou um ribeirinho da Amazônia, mas nunca ao lado de um sous chef, Atala é construído como um Paulo Coelho da cozinha, um mago de profundidade variável que concebe teorias e alimenta seu público com comida brasileira de vanguarda, um discurso de vida sedutor e uma doutrina de sustentabilidade.
Tudo está a seu favor em Chef’s Table – a edição caprichada, o microfone à disposição e a claque do chef americano David Chang, que chega a elogiar até o gosto das formigas. Tratado como um símbolo da valorização amazônica no programa, o prosaico inseto, de fato, incrementa visualmente a receita de suspiro do D.O.M., já que vem todo “pintado de ouro”, mas pouco (ou nada) acrescenta de sabor e deixa incômodas perninhhas sobrando nas gengivas. (Ou alguém que já tenha provado a ‘iguaria’ acha sinceramente que aquele bicho é pra “comer de joelhos”???).
A relação do chef com a comida, os primeiros passos na profissão, o momento mais crítico da carreira e o turning point – o fator que alçou o cozinheiro ao estrelato – repetem a fórmula dos demais episódios de Chef’s Table, que é seguida à risca, como uma receita de bolo. Um bolo, é verdade, de apresentação apetitosa e tecnicamente elogiável, daqueles que você come e repete, até acabar, sem se preocupar com a dieta.
No episódio de Atala, belos takes da Amazônia são alternados com imagens até econômicas do restaurante D.O.M. e panorâmicas de uma São Paulo grandiosa, toda grafitada e menos opressora – a simpática metrópole latino-americana do punk das selvas.
O roteiro é feliz ao deixar para o final a imagem da tattoo com a equação punk revoltado + panela no fogão = chef sorridente. Um sorriso, aliás, do qual Atala é mais do que merecedor, assim como o seu episódio em Chef’s Table – não só pelo fato do brasileiro estar no top 10 da gastronomia mundial há 5 anos, por ser o mentor do único duas-estrelas Michelin do Brasil ou por ter atraído a atenção da crítica internacional para chefs como Helena Rizzo, Roberta Sudbrack e Rodrigo Oliveira. Mas, também, por ter convencido o seu público a comer até formigas.
Apertamos o play para quem quiser conhecer em detalhes o Chef’s Table do chef paulistano (ATENÇÃO: contém muitos spoilers!!!).
Logo no início, Atala lembra que, durante os “tempos sombrios” de sua fase punk, tomou um ácido tão forte que o fez entender o sentido da vida. Terminada a “viagem”, porém, a epifania desapareceu sem deixar rastros na memória. Tempos depois, esse sentido da vida se apresentou num sonho metafórico sobre o ciclo de uma planta, que dá flores e frutos – os quais, com suas sementes, germinam novas plantas. O momento que nós vivemos seria o da flor, “o mais bonito” deles.
Convidado do documentário, o crítico Luiz Américo Camargo, que por 11 anos escreveu para o caderno Paladar (O Estado de São Paulo), situa a importância de Atala no contexto histórico da gastronomia brasileira, desconhecida de boa parte da audiência internacional da Netflix.
Américo se recorda que, há 20 anos, comer fora em São Paulo era sinônimo de ir a um restaurante francês ou italiano, e um luxo restrito às pessoas mais endinheiradas, que saíam para saborear pratos bem diferentes de seu dia a dia. Atala surgiu como a possibilidade desse público aceitar e apreciar uma cozinha brasileira mais moderna – e dentro de um restaurante.
A outra participação especial no documentário é de David Chang, chef e fundador do Momofuku, noodle bar de Nova York que se tornou o embrião de uma badalada rede internacional de restaurantes. Sobre Atala, Chang diz: “Ser chef é somente uma parte de quem ele é”.
Em novembro de 2013, Atala e Chang dividiram a capa da Time com outro chef de prestígio, o dinamarquês René Redzepi, do multipremiado Noma. Na chamada da icônica revista, a trinca levou o título de Os Deuses da Comida. “Atala é uma espécie de novo e estranho homem da Renascença deste milênio”, define Chang no episódio da Netflix.
Atala, então, é mostrado apertando sua faixa de jiu-jitsu numa academia, cena tirada de seu lifestyle na metrópole. A seguir, o crítico Luiz Américo afirma que o chef – como caçador, pescador e um cara habituado ao mato – percebeu na Amazônia um repertório diferente daquilo que as pessoas conheciam no Brasil e no exterior.
A próxima sequência é na região da tribo Baniwa, no Amazonas. Atala segura uma ave pela asa enquanto um ribeirinho abate o animal com duas pancadas na cabeça. A seguir, o chef corta o pescoço do bicho para sangrá-lo, fazendo esguichar sangue até a barra de sua calça. “Por trás de cada prato existe a morte. Mas as pessoas preferem fechar os olhos para isso”, diz Atala, após depenar e preparar o animal numa bancada rústica ao ar livre.
Atala conta que, na infância, costumava viajar com o pai para caçar e pescar no Amazonas, no Pantanal e na Mata Atlântica. Tudo o que matavam, segundo a regra familiar, era necessariamente comido. Essa teria sido a primeira relação de Atala com a comida.
O chef continua na selva, agora numa trilha pela Mata Atlântica de Paraty, na qual conhece uma espécie diferente de hortelã e identifica uma palmeira juçara. “Você nunca vai ouvir Alex dizer ‘você tem de comer no meu restaurante’. É sempre: ‘Vamos nos divertir no mato’. Acho que o Alex quer salvar a floresta tropical”, diz David Chang.
Após sobrevoar a floresta, falar de preservação e fazer um rápido passeio pelo mercado de peixes de Manaus, Atala está de volta ao restaurante e diz que o fato do caviar ser tratado como um ingrediente chique, e o tucupi, não, é por causa de uma convenção, de uma interpretação cultural dos sabores.
Então, o episódio mostra o chef dourando as formigas que vão coroar pequenos suspiros. “Se você fechar os olhos, o sabor é delicioso”, diz Chang, sobre os insetos amazônicos do D.O.M. “Tem gosto de capim-limão”, afirma.
Atala começa a falar de suas origens num bairro operário de São Paulo. Identificado com o movimento punk, ele decidiu sair de casa para viver de forma independente e sem limites. “Drogas não são proibidas por serem ruins, e sim porque são boas. Mas te fodem”, lembra. Nesse exato momento, com a Avenida Paulista de fundo, a câmara focaliza o chef tragando um cigarro artesanal.
A cronologia dá um salto até 2003, época em que o chef comprou uma fazenda no Amazonas para ajudar a comunidade a comercializar, em São Paulo, o tucupi produzido na localidade. Dessa experiência surgiu o Projeto Ata, que processa pimentas secas, gera renda e divulga a cultura da região na capital paulista.
Atala volta a falar de sua vida de punk, agora na Europa, onde ganhava a vida como pintor de paredes. Preocupado em obter o visto, ele soube que um colega de trabalho fazia aulas de culinária para conseguir a permanência, e se animou em tentar essa possibilidade para si. “Eu não decidi ser um chef. Meu visto me levou a ser chef”, diz.
Quando se tornou pai e resolveu deixar Milão, onde morava, porque queria ter um filho brasileiro (“não um italiano”), Atala sentia vergonha de suas tatuagens. Na cozinha do chef Érick Jacquin (hoje jurado do reality MasterChef), em São Paulo, o aprendiz de cozinheiro ouviu do veterano francês: “Você é um grande chef, mas nunca fará comida francesa como eu”, recorda-se. “Fui pra casa, tirei a camisa e pensei: sou um homem tatuado, sou diferente, sou brasileiro”. Se Atala não podia preparar receitas francesas como um chef francês, calculou, ninguém poderia fazer uma comida brasileira como ele.
Assim, Atala abriu o D.O.M., hoje o restaurante número 9 do mundo pela revista britânica Restaurant. E começou a reinventar a cozinha brasileira. O crítico Luiz Américo lembra que o menu passou a tratar o produto brasileiro como iguaria – no episódio da Netflix, o worker’s food (menu executivo) é alardeado como “a” sugestão do chef para o almoço desde o primeiro dia do restaurante.
“É quase subversivo fazer a elite comer arroz e feijão”, diz Américo. “Mas, num contexto de sofisticação, as pessoas se sentiram autorizadas a gostar daquilo, não precisava ter vergonha”.
Atala lembra que o começo não foi fácil, até que, em 2005, a sorte lhe sorriu no Madrid Fusión, encontro anual com os principais chefs do mundo. Em sua apresentação, o mestre-cuca do D.O.M. decidiu mostrar aos espectadores um conceito que ele chama de terroir amazônico. Ao pegar um tronco bruto de palmeira e limpá-lo com facão até chegar ao palmito branquinho, Atala reivindicava algo brasileiro. Ferran Adrià, o papa da gastronomia contemporânea, não resistiu em subir ao palco para conhecer de perto as ideias do jovem chef dos trópicos. Era a chancela definitiva para o sucesso de Atala e seu restaurante.
Quase em forma de clipe, um vídeo com fundo musical mostra as criações amazônicas de Atala para o D.O.M., intercaladas por falas do chef nas quais ele afirma que a gastronomia brasileira é um sonho possível. Em seu braço, uma equação com três tatuagens mostra a soma de um punk irritado com uma panela em fogo alto. O resultado é um chef feliz. “Esse é o círculo. Essa é a minha vida”, ele diz, perto do fim do episódio.