Lima: comi no Maido, melhor restaurante da América Latina
Aclamada por críticos e foodies, Lima não é só um ceviche gostosinho a caminho de Machu Picchu. Conheça a cena culinária mais empolgante da atualidade
Ao planejar meus contados sete dias de viagem pelo Peru, Lima seria uma escala rápida para quatro ou cinco dias em Cusco e Machu Picchu – bom, na matemática dos amigos que consultei, não na minha. Se o limite do saudável é fazer apenas três refeições diárias, como se contentar com meia dúzia de migalhas na nova capital gastronômica da América Latina?
Lima não merecia essa desfeita, pelo menos a julgar pelos badalados rankings da revista britânica Restaurant. Em 2019, são dez endereços limenhos entre os 50 melhores latino-americanos, três deles no top 10 (inclusive o campeão, o restaurante Maido) e dois entre os 50 da lista global, incluindo o número 6 do mundo e segundo da América Latina, o Central, e o 10º – e o mais bem colocado das Américas -, novamente o Maido. Na edição de 2020 do Latin America’s 50 Best Restaurants o Maido ficou em segundo lugar, atrás do Don Julio, de Buenos Aires; leia aqui a reportagem).
Mariscos com melão andino do restaurante Central (foto: Divulgação)
Com esses dados em mãos, ocupei a agenda com almoços e jantares em todos os ranqueados da Restaurant, preenchi os intervalos com refeições extras e reservei uma tarde livre para as comidas de rua, numa maratona gastronômica à altura da capital peruana. Cusco, Machu Picchu e minha dieta que esperassem mais um pouco.
Viagens com foco em comida têm uma lógica diversa da de trips convencionais. Isso significa, por exemplo, trocar o city tour do primeiro dia por visitas aos grandes mercados. Num destino repleto de ingredientes muito próprios, só uma pesquisa assim pode evitar a repetida situação de perguntar sobre quase tudo nos restaurantes.
Em Lima, as duas referências mais famosas são o Mercado Central (Jirón Ucayali, 615, Barrio Chino) e o Mercado de Surquillo (Avenida Paseo de la Republica, Surquillo). Eles não exibem a beleza do Mercadão paulistano ou o clima aconchegante do Mercado de BH, mas vendem uma variedade impressionante de produtos típicos que você vai cansar de ver nos pratos da cidade.
As principais matérias-primas são milhos (há mais de cinquenta tipos no país), batatas (cerca de 3500) e ajíes, pimentas do gênero Capsicum, encontradas às dezenas em solo peruano. Nas barracas de frutas, a lúcuma – uma espécie andina de casca verde com polpa alaranjada seca e bem doce – não funciona in natura, mas rende ótimos sorvetes e sobremesas, principalmente quando servidas com chocolate.
Argila (sim, argila) com chocolate e lúcuma, sobremesa do Central (foto: Divulgação)
A peruana chirimoya, muito similar à fruta-do-conde, a granadilha, que lembra um maracujá mais açucarado, o azedo e amazônico camu-camu e a pitaia, fruto exótico de várias espécies de cactos, também se transformam em maravilhas nas mãos dos chefs locais.
Para entender por que esse é o país do ceviche, basta visitar as bancas de pescados. Dono de uma faixa litorânea marcada pelo encontro de uma corrente fria (Humboldt) com águas quentes, o Peru tirou a sorte grande: são cerca de 700 espécies de peixes e 400 de mariscos.
Das barracas para as mesas, que dia, senhores: almoço no Astrid y Gastón, jantar no Central, respectivamente terceiro e primeiro colocados na lista latino-americana 2015 da Restaurant (e em 2019, 13ª e 2ª posição). Não foi o único embate consecutivo da viagem, mas o mais memorável – não só pelo renome dos chefs e de suas cozinhas, mas também pela coincidência das refeições no mesmo dia, efeito de um complexo encaixe de reservas.
Apesar do crime nutricional hediondo, com 30 pratos acumulados nos dois endereços, a experiência foi conclusiva.
Cartão de visita de Gastón Acurio, o maior embaixador da cozinha peruana no mundo, o Astrid y Gastón de Lima é a estrela de um império com oito marcas distribuídas por quase cinquenta estabelecimentos no Peru e em outros onze países. Desde 2014 na Casa Moreyra, um lindo casarão branco do século 18 no bairro de San Isidro, a matriz promove ingredientes peruanos ancestrais com técnicas modernas e uma roupagem bem contemporânea.
Embaixador e imperador da cozinha peruana, o chef Gastón Acurio, do Astrid y Gastón (foto: Divulgação)
Minha visita pegou o lugar num momento de perigosa transição. No fim de janeiro, o chef Diego Muñoz deixou o comando da cozinha. Acurio então foi obrigado a voltar às panelas para liderar uma brigada de 40 cozinheiros.
Parece que o retorno do general fez muito bem à comida.
Vão permanecer na lembrança o ceviche mais belo e delicado da viagem, acrescido de flores, talos de maçã verde e espuma de limão; os pedaços de cuy (porquinho-da-índia) confitados com aparência de leitão assado; e uma sobremesa com texturas e temperaturas diferentes de chocolate, balanceada por sorvete de limão e surpreendentes croûtons de orégano.
Os deslizes foram mínimos: um polvo com consistência mais resistente do que a ideal e um par forçado entre lagosta e bochecha de porco. Acurio não estava no dia, e, pela sua movimentada agenda internacional, não estará em muitos outros. Mas o resultado à mesa demonstrou quão eficiente é a retaguarda que ele formou.
(Para saber a antecedência desejável para fazer as reservas nos restaurantes desta reportagem, vá até o fim do texto).
O ceviche moderno do Astrid y Gastón (foto: Divulgação)
Após um almoço de gala no segundo melhor endereço de Lima em 2015 pela Restaurant latino-americana, eu estava certo de que atingiria o nirvana no jantar do campeão. Não foi bem assim.
A experiência no Central, dirigido pelo chef Virgilio Martinez, tem início numa casa de fachada discreta, menor e menos espetaculosa que a do Astrid. Esse acanhamento desaparece no salão, de onde se observa uma ampla cozinha envidraçada. Também não existe lugar-comum no menu Alturas Mater, o maior da casa.
A proposta é uma viagem por dezessete receitas cujos principais ingredientes são oriundos de altitudes variadas, dos 20 metros negativos até os 3900 metros dos Andes. Inovadora, a sequência revela a enorme diversidade de matérias-primas culinárias do Peru. A degustação teve dois momentos tocantes.
No primeiro, a mescla de almejas, pepino melón (melão-andino no Brasil) e limão foi marcada pelo frescor dos mariscos e pelo equilíbrio entre acidez e doçura. O segundo trouxe quinoa em diferentes cores e texturas (inclusive líquida), acompanhada de uma costela bovina bem macia.
O chef Virgilio Martinez, do Central, n° 6 do mundo e 2º da América Latina pelo ranking de 2019 da Restaurant (foto: Divulgação)
Nos demais preparos, tudo chegou muito bom, mas nada excelente, com um erro de cozimento aqui, um excesso de molho ali. As belas amarrações teóricas e o visual impactante dos pratos (nem todos apetitosos) sobressaíram, em prejuízo da busca por uma sucessão primorosa de sabores. Menos, aqui, seria mais.
Depois de 6 horas à mesa, a jornada gourmet do dia terminou com posições invertidas no meu ranking: Astrid em primeiro, Central em… Calma lá.
Nenhuma refeição que precedeu ou sucedeu o Astrid e o Central superou essas casas. Mas eu fico tentado a colocar dois outros endereços no patamar do Central, criando um tríplice empate na segunda colocação.
Presunção não é o forte do Maido, que lembra apenas mais um restaurante japonês moderninho. Essa sensação de déjà-vu, no entanto, vai embora no cardápio do chef Mitsuharu Tsumura, o Micha.
O toque criativo salta aos olhos na fusão do receituário japonês com produtos peruanos, chamada de cozinha nikkei. Seus preceitos aparecem com clareza, por exemplo, no niguiri de barriga de salmão, emulsão de ají amarelo defumado e leite de tigre e no de vieiras com emulsão de maca (tubérculo andino), cushuro (numa definição possível, esferas aquosas formadas por colônias de uma bactéria comestível) e chalaca (mescla de cebola, tomate e coentro).
O número de elementos assusta, mas os niguiris chegaram com pescados fresquíssimos, um bolinho de arroz de primeira e sabores equilibrados. A passagem para os principais manteve o nível celestial.
Cozido à perfeição, o bacalhau marinado em missô veio acompanhado de um creme aveludado à base de batata-doce e “terra” de maíz morado, o mesmo milho roxo da bebida chicha morada.
A seguir, a pancetta crocante com redução de lámen, folhas verdes e purê de batata-doce trouxe mais felicidade à boca. O grand finale ficou com uma curiosa versão doce de ceviche, na qual sorvete de limão, macarons de ají, crocante de camote (batata-doce) e terra de maíz chulpi (outro tipo de milho) substituem os ingredientes usuais.
Pancetta do Maido, restaurante hi-low que foi eleito em 2019 como 10° melhor do mundo (foto: Divulgação)
Não por acaso, no ranking global 2016 da Restaurant, o Maido saltou da 44ª colocação, em 2015, para o 13ª e, agora em 2019, é o 10º melhor restaurante do mundo. O restaurante nikkei superou o Astrid y Gastón, que desde 2014 vem caindo no ranking: caiu do 14° para o 30° lugar em 2016, e neste ano despencou para o 67ª posição. O terceiro peruano da lista, o Central, manteve, em 2016, seu destacado 4° lugar entre todas as cozinhas do planeta. Atualmente, no ranking mais recente, ocupa o posto de 6º melhor restaurante do mundo.
Sobre o Rafael, se alguém elaborar um rol com as grandes injustiças no ranking dos 50 melhores da América Latina, que considere o meu voto para o lanterna da lista. Minha refeição lá ficou no top 5 da viagem, mas o restaurante ocupa, em 2019, a 19ª posição latino-americana.
Uma possibilidade: o cardápio contemporâneo do chef Rafael Osterlig aborda o Peru com menos densidade e respira influências internacionais, sobretudo mediterrâneas. Na seção AbreBocas, a linda salada de atum, polvo, aioli de amêndoa e batata já empolga.
Adiante, experimente um dos mais saborosos peixes da costa peruana, o mero (pescado nobre de carne branquinha, firme e saborosa), ali preparado com camarão, vieira e arroz em tinta de lula.
Como não sou homem de um prato só, ocupei um espaço ainda ocioso do meu estômago com um típico lomo saltado (carne bovina com tomate, ají, coentro, vinagre e shoyu salteados na frigideira ou na wok), receita cotidiana do Peru que, no Rafael, ganha aromas de pisco e chicha de jora (bebida de milho fermentado).
Para a sobremesa, entregue-se aos prazeres da cheesecake de plátano (o “irmão” maior e menos doce da banana), mascarpone e chocolate.
Pouco abaixo do “quarteto fantástico”, o La Mar (26º lugar da lista da América Latina em 2019) tem águas tranquilas para quem busca receitas peruanas clássicas à base de pescados. Se comparada à filial de São Paulo, a matriz da rede – by Gastón Acurio – tem clima mais despojado e praiano, menu ampliado, um tom de pimenta mais acentuado e uma compreensível pitada extra de qualidade.
Suspiro limenho do La Mar (foto: Divulgação)
Provados e aprovados, o trio de ceviches, as causas (bolinhos de batata amassada com diversas coberturas) e o tacu tacu (mexido de arroz e feijão prensado e frito) com saltado marinho são executados com correção.
Obrigatório, o suspiro limenho (creme de doce de leite e gemas coberto por merengue com vinho do Porto), grande hit entre as sobremesas, vale cada caloria.
+ Uma pirâmide no meio da metrópole
O La Picantería, que em 2015 ocupava o número 36 do ranking (e em 2019 não figura mais na lista), e o Osso Carnicería y Salumeria, que subiu 25 posições na lista latino-americana da Restaurant desde 2015 e agora é 9º lugar, não atingem o refinamento das cinco casas já citadas. Mas encabeçam a minha seleção de melhor custo/benefício da cidade.
O primeiro, a três quadras do Mercado de Surquillo, reproduz o clima informal das tradicionais picanterías. Nesse contexto de resgate do passado, o cliente bate na porta para ser atendido e se acomoda num salão com mesas coletivas enormes, bandeirinhas coloridas no teto, uma bancada repleta de pescados frescos e lousas que anunciam os pratos do dia.
Optei por um peixe chamado chita, vendido inteiro no balcão. Cobrado pelo peso, ele deu origem a três pratos: um ceviche, um sudado (ensopado com peixes frescos inteiros) e um gostoso caldo preparado com cabeça, espinha e rabo. Conta da refeição para duas pessoas, com pisco sour, suco, uma sobremesa e 10% de serviço: 173 novos sóis, ou cerca de 178 reais.
A informalidade do La Picantería, restaurante com boa relação custo/benefício (foto: Divulgação)
Ao contrário do La Picantería, o Osso está deslocado do eixo turístico tanto em localização (a 18 quilômetros de Miraflores) quanto em conceito: na terra dos ceviches, ele foca em cortes bovinos e suínos assados na parrilla.
Seria apenas mais uma churrascaria acanhada, dividindo espaço com um açougue-butique, não fossem a formação e a ousadia do chef Renzo Garibaldi. Não contente com o curso do mestre-açougueiro Ryan Farr, em San Francisco, ele ampliou seus conhecimentos durante três anos nos Estados Unidos e na França.
O bom resultado fica evidente nas linguiças saborizadas da casa (prove a de maple) e nas carnes de ótima qualidade com cozimento acertado. Experimentei e referendo com louvor a chuleta de porco desconstruída.
Chuleta desconstruída do Osso Carnicería (foto: Divulgação)
Meu périplo em Lima termina com as duas refeições menos empolgantes da lista latino-americana 2015 da Restaurant.
No Malabar, o salão sisudo com decoração sem vida e clima de restaurante de flat parece sinalizar que a casa não vive seus melhores dias.
No Fiesta, a experiência ruim incluiu um atendimento distraído e uma vibe caída, com poucas mesas ocupadas. Tomando emprestada a máxima de Bela Gil, você pode substituir esses dois integrantes pelo IK e pelo Pescados Capitales, ambos em Miraflores.
+ Museo Banco Central de Reserva del Peru
+ Igreja e Monastério de San Francisco, em Lima
No IK, comi um menu degustação criativo, assistido por um dos serviços mais simpáticos e eficientes de Lima.
No Pescados Capitales, interessante ponto de peregrinação para fanáticos por ceviche, a receita ganha louváveis ousadias, como no mix de pescado do dia, lula e lagostim, escoltado por curry, pêssego e chutney de manga.
Ainda não se convenceu a dedicar vários dias a Lima em sua viagem ao Peru? Pois saiba que a cidade tem parques, construções históricas, museus, walking tours e vida noturna suficientes para ocupar seus intervalos à mesa.
Com um excesso de bagagem corporal de 1 quilo e meio, embarquei no avião de volta com uma promessa para “São Andino”: na minha próxima temporada peruana, juro que vou me reconciliar com a balança numa caminhada até as ruínas de Machu Picchu.
Ceviche clássico do Astrid y Gastón (foto: Divulgação)
Tempo de antecedência desejável para fazer as reservas:O Astrid y Gastón (reservar um mês antes) serve pratos à la carte, mas opte pelos menus degustação com 9 ou 13 fases para não se arrepender depois. No Central (reservar dois meses antes), a escolha deve recair sobre um dos quatro menus, com 12 ou 17 passos. Na sequência da lista sul-americana 2015 da Restaurant vêm o Maido (reservar), o Rafael (recomendável reservar), La Mar (só almoço; não aceita reservas), La Picantería (só almoço; não aceita reservas), Osso Carnicería y Salumeria (desejável reservar), Malabar (desejável reservar) e Fiesta (desejável reservar). Fora do ranking da Restaurant, valem a refeição o IK (desejável reservar) e o Pescados Capitales (desejável reservar). |
Observação: a reportagem foi atualizada com os dados mais recentes do ranking da revista Restaurant
+ Guia de Viagem: Machu Picchu