Alexandra Loras fala sobre viajar sozinha, racismo e mais
A ativista e ex-consulesa da França no Brasil conhece mais de 50 países e compartilha seu lugar predileto e como foi fazer o Caminho de Santiago na pandemia
Além de jornalista, ex-consulesa da França no Brasil, palestrante e uma das mais influentes ativistas na luta pela igualdade racial e pelo empoderamento feminino, Alexandra Loras é uma viajante nata. Apaixonada por conhecer novas culturas e pessoas, a francesa oriunda de Paris já percorreu mais de 50 países de todos os continentes (alguns por mais de vinte vezes, como a Tailândia) e morou em oito deles – sendo o Brasil a sua casa pelos últimos oito anos.
Para Alexandra, viajar faz parte de sua essência. Essa é uma parte tão significativa de sua vida que ela revela ter feito um pacto consigo mesma: reservar ao menos quatro meses do ano para suas viagens. Em conversa com a VT, a jornalista e ex-consulesa compartilhou algumas de suas experiências pelo mundo, deu dicas de como viajar de forma mais acessível e falou sobre a realidade racial no Brasil e no mundo do turismo. Confira:
Entre os 50 países que visitou, em qual lugar você se sente mais em casa?
Na Tailândia! É engraçado que toda a periferia da França vai passar suas férias por lá, é um lugar em que nos sentimos bem. O país nunca foi colonizado e os tailandeses sabem respeitar seres humanos de outra forma, é uma convivência muito de igual para igual. Eles não enxergam os turistas como superiores, nem inferiores, porque não existe essa “síndrome do colonizado”.
Uma das suas viagens mais recentes foi o Caminho de Santiago. O que você levou dessa experiência?
Comecei o Caminho em 2017 e voltei agora para fazer outro trecho. Já andei 600 quilômetros. Mas meu objetivo não é terminar um trajeto, e sim fazer todos os Caminhos, porque tem muitos. É um percurso muito sagrado e muito bom quando você está passando por um momento de transição. Eu adoro porque ali você está canalizando a melhor versão de si mesma e refletindo. Passando sete horas por dia sozinha, analisando a sua vida, ouvindo a música que mais gosta e andando, andando e andando sem parar. A única tarefa é andar.
E é lindo ir devagar, passando por tantos vilarejos e lugares que de carro você não conseguiria alcançar. Foi muito gostoso. Me fez aprender que preciso passar mais tempo na natureza e que precisamos de pouca coisa, na verdade. Passar um mês com pouquíssima roupa e só quatro quilos de bagagem te faz perceber as futilidades. A nossa vida se vai muito rápido e, por isso, a pandemia me fez fazer um pacto comigo mesma: tomar sempre quatro meses do ano para viajar.
Como a pandemia afetou o seu percurso?
Normalmente é entendido que você não reserva o lugar onde vai parar, não é preciso. Esse é o sagrado e o místico do Caminho: ao chegar, sempre irá achar um lugar para te acolher. Mas com a pandemia foi complicado, eu precisava saber onde iria parar. Havia menos lugares para se hospedar, já que alguns albergues fecharam, mas com muita gente! O Caminho estava mais vazio que o normal, mas eu achava que haveria ninguém. Teve dias em que eu não pude andar 20 quilômetros porque precisei parar antes, senão não encontraria onde dormir. E quando chegava, todo mundo de máscara, com álcool em gel, separado… sendo que esses lugares servem justamente para encontrar pessoas, conversar.
Nos últimos anos, as mulheres fazem cada vez mais viagens solo. Você mesma disse que fez o Caminho de Santiago sozinha. Como você encara esse tipo de viagem?
Eu adoro! Para quase todos os lugares do mundo eu viajo sozinha. Quando você viaja com seu esposo ou com o seu filho, você não encontra ninguém, porque as pessoas não vão abordar um casal ou uma família. Mas quando está sozinha, você encontra gente pelo caminho em todos os lugares. Viajei muito como mochileira e adorava ficar em hostels e albergues porque dentro desses lugares dá para conhecer muito mais pessoas do que nos hotéis, e algumas viram até parceiras de viagem. Eu não gosto de roteirizar as minhas viagens. Tenho uma vida já muito roteirizada, então, quando viajo, deixo a espontaneidade acontecer.
Quais lugares você mais gostou de ter viajado sozinha?
Vou ter que falar de novo: a Tailândia! Já fui mais de 20 vezes pra lá. Mas as minhas melhores viagens sozinha também foram na África. Nos países africanos, as pessoas gostam de te trazer pra dentro de casa, para conhecer e participar de festas, casamentos e coisas assim – e eu gosto muito disso. Outra viagem incrível foi para a Guatemala, uma das melhores da minha vida.
Agora, um lugar de que não gostei foi a Índia. Foi um destino muito difícil pra uma mulher sozinha. Achavam que eu era indiana e uma indiana não viaja sozinha por lá.. .então para eles foi muito estranho. Uma vez parei em uma pequena cidade e tinha 15 homens me secando, me olhando como se eu fosse um animal. Tem países em que realmente é desafiador viajar sendo mulher.
Você viaja muito dentro do Brasil? Pra onde gosta de ir?
Eu viajo bastante pelo Brasil. Gosto de lugares de luxo e tem vários que adoro ir no país: a Pousada Picinguaba e a Pousada do Sandi, em Paraty; o Txai, na Bahia, a Fazenda Catuçaba, em São Paulo… O Castelo de Saint Andrews, em Gramado, é sensacional. E tem também uma casa de luxo para alugar em Itacaré, a Fazenda Caranha, que acho espetacular.
Você considera o turismo nacional acessível?
O imaginário coletivo do brasileiro é achar que é mais barato viajar dentro do país, mas viajar pelo Brasil é caríssimo! Os preços de passagens de avião aqui são altos demais. Custa quase o mesmo preço de ir para o exterior. Se você se organizar bem, dá pra viajar quase de graça, porque tem aplicativos e várias formas de dormir na casa das pessoas sem pagar nada. Os brasileiros não sabem dessas coisas.
Eu já usei Couchsurfing na Europa, no Japão. Tem o WWOOF também, em que o viajante vai morar com estrangeiros e fica semanas ou até meses trabalhando pra eles, aprendendo o idioma e vivendo a cultura local. De graça! Você trabalha algumas horas por dia, com atividades muito bacanas do cotidiano daquelas pessoas, como colher uvas para fazer vinho. Em troca, o anfitrião te acolhe em sua casa ou fazenda. Você ganha hospedagem e comida, só precisa bancar a passagem. Outro aplicativo nessa linha é o Workaway. Precisamos divulgar essas coisas para os brasileiros, porque quem tem menos poder aquisitivo não sabe como sair do país.
Nas suas viagens pelo mundo, como você já se sentiu discriminada?
Estava hospedada no Convento do Carmo, em Salvador, e quando quis entrar no hotel para encontrar meu namorado, o segurança não permitiu. Ele barrou com a mão. Foi só quando comecei a falar e ele viu que eu era gringa que me deixou entrar. Mas foi ali que percebi: se eu fosse brasileira, não poderia entrar naquele lugar.
Outra vez em Paraty, estava em um barco com um amigo francês e uma mulher falou que, quando me viu, achou que eu fosse brasileira e pensou: “Essa brasileira foi esperta! Casou com um francês, aprendeu o idioma”, como se eu fosse uma golpista. O preconceito dela era que uma negra só poderia ascender socialmente golpeando um turista. Quando ela soube que eu era europeia, virei superior. Mas antes, ela me enxergava como uma mulher de poucos valores, que conseguiu subir de posição social casando com um gringo. São micro-humilhações, microagressões cordiais.
Como é a sua relação com o Brasil? Quais foram os motivos para você permanecer no país?
O Brasil é um lugar que me fascina, por muitas questões: a sua beleza, a natureza, a culinária. Mas permaneci porque enxerguei um apartheid, uma segregação cordial tão forte no país, que senti que precisava ficar aqui para desmantelar isso. Há um genocídio da juventude negra e ninguém está falando sobre isso. É assustador. Houve 17 vezes mais mortes de negros pela polícia aqui no Brasil do que nos Estados Unidos em 2019, mas todo mundo olha pros EUA como se o problema fosse apenas lá. Aqui, foi criado o Diaspora.Black, uma espécie de Airbnb para negros, por causa de casos de racismo na plataforma. Você não vê isso em nenhum outro lugar do mundo. No Brasil, foi necessário.
Os protestos de Vidas Negras Importam colocaram em revisão monumentos que homenageiam figuras conhecidamente escravocratas ou racistas – alguns deles, inclusive, foram derrubados ou danificados por manifestantes. Do seu ponto de vista, até que ponto atrações turísticas com um passado de exploração e sofrimento negro são uma maneira de aprender com a história ou de menosprezar essa dor?
Acho que esse pensamento de “não podemos derrubar essas estátuas porque não podemos esquecer a nossa história” segue a lógica de homenagear o Hitler e colocar estátuas dele por toda a Alemanha, Polônia, Israel para nos lembrar do que aconteceu. Realmente precisamos? Precisamos homenagear esses homens, dar estátuas de bronze, nomear estradas e ruas com ditadores? Pra mim, temos que ter uma revisão total da nossa história e como ela fere, como ela machuca.