Com seus mais de 800 quilômetros de extensão, o Caminho de Santiago de Compostela fascina peregrinos desde o século IX. A partir de então, milhões de pessoas já encararam as curvas e os desvios do norte da Espanha para chegar à tumba do apóstolo Santiago, em uma jornada transformadora que ultrapassa barreiras físicas e psicológicas. Uma dessas barreiras é a da idade, como mostra o documentário Caminho da Superação, disponível neste site.
O filme acompanha seis peregrinos da Nova Zelândia e da Austrália, todos entre 50 e 80 anos, que buscam respostas pela vida ao longo do Caminho Francês. A história e as motivações de cada andarilho é única, mas a vontade de superar traumas – como a morte de um filho ou uma doença degenerativa – é a força motriz comum de todos eles para encarar o percurso.
Uma das seis peregrinas do filme (e a mais experiente do grupo quando o assunto é o Caminho) é Claude Tranchant. A jornada registrada no documentário, quando ela tinha 72 anos, não foi a sua primeira peregrinação até Santiago. Aos 64, a francesa, que há décadas mora na Austrália, percorreu sozinha uma rota ainda mais extensa: de Vézelay (na Borgonha) até a cidade espanhola de Muxía, para além de Santiago da Compostela. O resultado foram 2.500 quilômetros de andanças em 100 dias, uma transformação pessoal e um livro para narrar a história.
Em conversa com a VT, Claude conta as motivações, os aprendizados e as alegrias e dificuldades da sua trajetória pelo Caminho de Santiago, além de dar dicas preciosas para quem pensa em fazer essa jornada algum dia. Confira:
O que te levou a fazer o Caminho da primeira vez?
Com 58 anos, comecei a trabalhar em um mercado onde conheci muitos peregrinos. Eles eram clientes e estavam sempre me contando sobre o Caminho. O tempo todo. Acho que não teria ouvido falar sobre ele se não tivesse trabalhado nessa loja. Quando fui visitar o meu pai na França, antes de ele falecer, mencionei para minha irmã que estava pensando em fazer a peregrinação e ela deu uma boa risada, porque eu não estou acostumada a caminhar. Na manhã seguinte, havia uma revista em cima da mesa da cozinha e quando abri vi que ela falava sobre o Caminho francês. Foi um sinal. Pensei que deveria ter alguma razão maior, que eu ainda não entendia, para passar por essa jornada. Só senti um desejo e uma necessidade muito grande de fazer isso, mesmo sem saber o porquê. Meus filhos todos acharam que eu estava louca, mas resolvi escutar os sinais. Às vezes as pessoas preferem ignorar os indícios, mas acreditei e disse pra mim mesma: “Faça. O pior que pode acontecer é você falhar. E daí? Você não vai se arrepender”.
Como foi essa experiência, tanto no aspecto psicológico quanto no físico?
Comecei a jornada no meu aniversário de 64 anos, cruzando a França. Existem quatro rotas para chegar até os Pirineus, mas eu não sabia qual queria fazer. Por algum motivo, escolhi andar por Vézelay, que é um caminho que poucas pessoas fazem – em 300 quilômetros de caminhada, não vi um único peregrino. Demorei oito semanas para alcançar a base dos Pirineus e, depois de chegar até Santiago, decidi ir além, até Finisterra e Muxía. Todo o percurso deve ter levado uns cem dias. Nesse meio tempo, me perdi muito. Eu tenho um senso bem ruim de direção e não sei ler mapas, então passei por vários sufocos.
Mas foi uma benção disfarçada, porque caminhar sozinha o tempo todo, me perdendo e com medo me obrigou a revisitar a minha vida, os aspectos bons e os ruins. Todas essas emoções afloram e o choro vem – e não tem ninguém por perto. Você chora para tentar curar o seu coração e isso não é nada fácil. Em oito semanas, devo ter visto cerca de 20 pessoas. Foi muito solitário, mas bom. Não entendi muito bem na época, mas depois percebi que isso me ajudou a ser mais aberta aos meus companheiros de caminhada e eu me tornei uma espécie de confidente quando eles precisaram de mim. Essa foi a minha jornada emocional.
Fisicamente, foi complicado. Passei por dores horríveis e as pessoas ao longo do caminho, inclusive médicos, falavam pra eu parar e eu nem ouvi. Isso me fez descobrir o quanto sou teimosa.
Mas você chegou a se preparar antes de começar? O quão importante você considera esse preparo?
Para a primeira vez não. Eu não tinha nem ideia o que era caminhar de verdade, nunca tinha treinado e achava que era só colocar um pé na frente do outro e seguir em frente. Depois, comecei a me exercitar e fiz outras caminhadas quando voltei, inclusive a mais difícil da Austrália, no centro do país. Para voltar para Santiago com 72 anos, eu sabia que deveria treinar mais ainda.
Acho muito importante esse preparo. Tem trechos do Caminho (especialmente das Mesetas) que você precisa andar cerca de 25 quilômetros sem parar antes de achar um alojamento, então tem que ter resistência. Eu aconselharia as pessoas que não estão acostumadas a caminhar a separar pelo menos uns três meses para se preparar pro Caminho. Dá para começar devagar, andando 5 ou 6 quilômetros por dia com uma mochila pequena, e toda semana aumentar essa distância. É interessante também adicionar descidas e subidas nas caminhadas, e também cada mais peso na mochila.
Alguns peregrinos do grupo haviam recentemente vivenciado uma tragédia ou trauma e encararam o Caminho como um processo de cura. Essa experiência foi sobre cura para você também? De que maneira?
Foi uma grande cura, porque eu precisava muito abrir mão do passado. No primeiro dia de caminhada, eu não queria focar nesses pensamentos. Só pensava “Me deixa em paz! Vão embora”, mas não tem como fugir. Tive que lidar com meus sentimentos e foi um passo muito importante para curar o meu coração.
Quando andava, eu costumava procurar pequenas pedras no formato de um coração no chão e as guardava. Algumas eu dava para outros peregrinos quando nos despedíamos e dizia “Se algum dia você se sentir triste, olhe para esse coração e lembre que um amigo está com você”. Mas uma delas, que eu achei durante a minha primeira caminhada sozinha na França, foi especial – depois disso, muita coisa aconteceu e precisei aprender a me perdoar e a perdoar os outros. Isso foi algo muito grandioso. Então guardei o pequeno coração até chegar ao Monte Corpiño, na Muxía, que foi a minha última escalada. Deixei enterrado debaixo de um arbusto lá no topo e pensei comigo mesma: “Pequeno arbusto, proteja esse coração da mesma forma como eu quero ser protegida a partir de agora”. Depois de gravar o documentário, oito anos depois, voltei no mesmo lugar e não consegui achar a pedra, mas o arbusto estava enorme! Então acho que isso significa que ela ficou bem protegida no final das contas.
Como o grupo foi reunido e como você se envolveu com o projeto do documentário?
Eu já conhecia o diretor do filme, o Fergus, de outros eventos sobre o Caminho de Santiago. Em 2017, ele entrou em contato comigo com o convite e aceitei. Foi totalmente inesperado, mas mesmo assim eu disse sim. Na Nova Zelândia, acredito que a equipe do filme divulgou o projeto nas rádios e em revistas e selecionou os peregrinos entre aqueles que tinham mostrado interesse.
Nós não nos conhecíamos. O grupo só foi reunido um dia antes das gravações, já em Saint-Jean-Pied-de-Port. Dividimos uma refeição juntos e logo depois já começamos a andar. Foi quando caiu a ficha e eu só pensava: “Meu Deus, no que foi que me meti?”. Mas na hora da caminhada com o grupo, não demorou muito para começarmos a compartilhar as nossas histórias e conversar – você até esquece que tudo está sendo gravado.
De que forma passar por essa experiência em grupo, além da equipe de filmagem, fez diferença para você? Quais foram os pontos positivos e negativos de ter essa companhia?
Foi diferente. Andar em grupo, especialmente quando você não conhece as pessoas e existem diferentes personalidades juntas, é outra experiência. Mas não foi um problema para mim. Assim como da primeira vez, quando os outros peregrinos precisavam, eu estava ali do lado deles para ouvir, conversar e ajudar. Era ótimo no fim do dia, quando nós seis conseguíamos nos juntar para conversar e nos aproximar. E nas vezes em que precisei ficar sozinha, a equipe do filme era compreensiva e me permitia fazer outro caminho desacompanhada.
O lado negativo foi que existia um cronograma fixo e os lugares que deveríamos começar e terminar os dias estavam todos definidos. Então mesmo que você esteja cansado ou não queira caminhar, você precisa ir. Isso foi difícil para mim em certos momentos. Às noites, eu estava obviamente muito cansada e precisava do meu descanso. Talvez eu tivesse parado se não fosse pelo filme… No fim, foi um outro jeito de percorrer o Caminho, mas foi bom. Uma mistura de sentimentos. E uma das coisas que mais gostei foi não precisar me preocupar em achar alojamento!
De todos os lugares e paisagens diferentes que você passou pelo caminho, qual delas mais te marcou?
Quando comecei a peregrinação da primeira vez, comprei duas cruzes, uma para o meu pai e outra para minha mãe, e decidi que iria deixá-las em algum lugar ao longo do Caminho – mas não sabia onde. As circunstâncias me levaram a parar na Ermita de San Nicolás, uma pequena igreja que também é um albergue para os peregrinos e nem eletricidade tem. Eu nem pretendia passar a noite ali, mas a energia desse lugar era tão forte que decidi ficar. Houve uma missa e depois perguntei se poderia deixar aquelas duas cruzes ali e pedi para o padre abençoá-las. Ele disse: “Não, Claude. Todos nós iremos fazer isso”. E todo mundo que estava ali as abençoou no altar. Foi muito emocionante. Senti que precisava estar ali naquele momento. Quando alguns amigos australianos foram andar o Caminho quatro anos depois, pedi para eles conferirem se as minhas cruzes ainda estavam lá na igrejinha – e elas estavam! Já em 2018, quando eu estava com o grupo, voltei na Ermita para ver as cruzes mais uma vez, mas procurei em todo lugar e não consegui achá-las. Foi um momento bem emotivo para mim.
Sobre os cenários, eles variam muito. Eu aprendi a apreciar a natureza, não importa qual seja o tipo. Quando você passa muitos e muitos dias só caminhando no meio da natureza, você passa a vê-la com outros olhos. Comecei a realmente prestar atenção nela como deveríamos fazer sempre, porque estamos acostumados só a olhar e nada além disso. A coisa mais bonita que vi foi quando subi no Monte Corpiño para procurar aquela pedra em formato de coração que havia escondido aos 64 anos. Não consegui achá-la, mas tudo bem.
Muitas pessoas dizem que você não faz o Caminho, ele que faz você. Como ele te afetou? E de que forma você acredita que a idade influencia a jornada?
Você descobre o seu verdadeiro “eu”. Essa jornada me fez perceber o quanto sou forte. Sempre vivi protegida em um ambiente familiar e rodeada de pessoas, mas ali sozinha… Foi uma grande oportunidade para me conhecer. Quando voltei da primeira vez, meus amigos disseram que eu parecia 20 anos mais nova. Foi o melhor elogio que eu poderia receber! É uma experiência que te muda para sempre.
Eu acho a idade irrelevante. Claro que uma pessoa mais nova vai caminhar bem mais rápido que uma mais velha, mas a transformação pode ser igualmente profunda em qualquer idade. Conheci dois peregrinos de 20 e poucos anos que tinham acabado de começar a faculdade, e decidiram fazer o Caminho para “se encontrarem”– assim como aconteceu comigo, mas de forma não intencional. Dez anos depois, ainda tenho contato com eles e suas vidas mudaram! Eles descobriram quem eles realmente eram e o que queriam fazer da vida, e não precisaram esperar até os 60 anos de idade para saber isso. Alguém mais velho talvez tenha mais bagagem emocional e problemas para lidar durante o Caminho, mas os jovens podem chegar às mesmas conclusões – de quem eles são, o que querem fazer, qual o seu propósito de vida – e aproveitar essas descobertas por ainda mais tempo. Tudo isso pode acontecer se você se entregar ao Caminho, e não fazer a caminhada só para se gabar depois e riscar da sua lista de desejos.
Você acha que todo mundo deveria ter uma experiência dessas pelo menos uma vez na vida?
Sim! Seria ótimo. E não importa que tipo de vida a pessoa tem ou como ela é, acredito que essa experiência é enriquecedora para qualquer um e seria algo marcante, para se lembrar para o resto da vida. Acho muito difícil o Caminho não te mudar de alguma forma e pode ser uma transformação que você não perceba logo que terminar a caminhada, mas mais tarde sim. Você sai transformado. É um privilégio! E essa é a razão das pessoas continuarem voltando e voltando e voltando para o Caminho. Alguém uma vez me questionou: “Por que você não caminha aqui mesmo na Austrália?”. É diferente. Esse é um caminho especial, milhões de peregrinos por mais de dez séculos já fizeram esse trajeto e eles deixaram a sua marca. Quando você estiver cansado, a energia dos que já passaram por ali te dá forças. A caminhada pode ser diferente para cada um, mas tudo é um grande aprendizado.
O que você diria para alguém que tem interesse em percorrer o Caminho?
Primeiro, diria que, se isso é um desejo do fundo do seu coração, só faça! Se você observar sinais assim como os que tive, não os ignore. Não é preciso ter medo. Depois, tente se preparar fisicamente antes de começar – mas saiba que você nunca conseguirá estar 100% pronto até chegar lá. E então ande o Caminho com o seu coração, e não com o cérebro. Não faz diferença se você conseguir completar ou não. O importante é tentar.
Também não importa quantos anos você tem! Claro que é melhor fazer o percurso completo, porque são mais desafios e chances de transformação, mas quem não tem tanta aptidão física pode percorrer só os últimos 100 quilômetros do caminho.
Que itens você considera indispensáveis para levar na peregrinação?
Quando eu me mudei para a Austrália, a minha mãe me deu uma medalha muito especial de uma santa. Essa medalha tinha um significado importante de proteção para mim, então eu a carreguei por todo o Caminho, das duas vezes. Então se existe algum objeto com um significado especial para você, leve em sua caminhada. Também é uma tradição levar uma pedra da região onde você mora e deixá-la na Cruz de Ferro, um dos lugares mais simbólicos do Caminho Francês, e fazer um pedido.
Leve muita água na sua mochila! Dependendo do trecho, especialmente na Espanha, pode ser muito quente e você irá precisar de bastante água para não ficar desidratado rápido. É melhor carregar mais do que faltar. Uma amiga que estava fazendo o Caminho encontrou nas Mesetas uma jovem peregrina muito desidratada, a ponto de desmaiar. Como ela tinha água sobrando, dividiu com a menina e salvou a sua vida. Ela quase morreu por falta de água! Uma certa quantidade pode ser suficiente pra você, mas levar um pouco a mais pode até ajudar outra pessoa.
Agora, se você decidir carregar uma mochila, tenha certeza que ela te serve perfeitamente. Experimente quantos modelos puder e teste antes de comprar, ande pela loja e veja qual realmente é a mais confortável. Pela minha idade, também precisei de bastões de trekking para me ajudar com as subidas e descidas – e não acho que teria conseguido sem eles. Esse é o equipamento que eu aconselharia. E um chapéu!
O documentário Caminho da Superação está disponível no portal exclusivo do filme. Veja o trailer: