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A Galícia para além de Santiago de Compostela

A região ao norte da Espanha tem cidades pacatas, praias e os frutos do mar mais esquisitos, surreais e deliciosos que se tem notícia

Por Adriana Setti
Atualizado em 4 ago 2022, 12h42 - Publicado em 2 ago 2019, 16h17

Você pode ser católico, médium, ateu. Mas, quando o botafumeiro da Catedral de Santiago de Compostela passar voando sobre sua cabeça, meu amigo, você vai tremer nas bases. Para que o colossal incensário badale 17 vezes pendendo do altar-mor, é necessário o vigor de oito sujeitos, os tiraboleiros, que também se encarregam de recheá-lo de carvão e incenso para purificar o ambiente.

A Catedral de Santiago de Compostela
A Catedral de Santiago de Compostela (Mark Hill/Alamy/Latinstock/Reprodução)

O espetáculo é o ápice de quem se abala para um dos locais de peregrinação mais famosos do mundo, na capital da Galícia, região a noroeste da Espanha. Mas é raro. Isso porque ele só acontece durante a catártica Missa do Peregrino nos dias santos (por exemplo, o do apóstolo Santiago, em 25 de julho) ou sob encomenda de algum fiel disposto a desembolsar algumas centenas de euros. Caso você não dê sorte, releve. A própria visão da catedral de fachada barroca reinando soberana na Praza do Obradoiro, fazendo jogo com o imponente Hostal dos Reis Católicos, hospital convertido em hotel de luxo, garante o nó na garganta.

O conjunto é apenas a comissão de frente de um novelo de ruelas forradas de pedras que, guiam pelo riquíssimo centro medieval mais de 200 mil peregrinos por ano – além da minha própria pessoa e de outros milhares de visitantes. A maioria dos andarilhos arrasta seus cajados de madeira desde a fronteira com a França, cruzando a Galícia de leste a oeste, na etapa final do Caminho de Santiago.

Santiago de Compostela , Galicia, Espanha
Santiago de Compostela , Galicia, Espanha (MadrugadaVerde/Reprodução)

Se a ideia, entretanto, é desgarrar-se do rebanho, nada melhor do que tomar outro rumo a partir da cidade santa, em direção ao sul, e peregrinar pela rota dos prazeres mundanos galegos, curtindo a santa paz de suas suas divinas praias e vilas, além da gastronomia celestial.

Enquanto multidões se espremem nas calientes areias mediterrâneas, a região das Rías Baixas, ao sul de Santiago de Compostela até a fronteira de Portugal, descortina praias que não cabem numa viagem só. Grande parte delas mantém-se na mais plena tranquilidade, com poucos turistas acomodados em suas areias fininhas, até mesmo no auge do verão. O milagre é obra de outro santo, São Pedro. Enquanto o Mediterrâneo é garantia de sol, o norte da Espanha é mais temperamental, recebendo algumas frentes frias e chuvosas mesmo nos meses mais quentes, entre junho e setembro, o que garante seu semblante verde a contrastar com a aridez do resto do território ibérico.

Litoral da cidadezinha de Pontevedra, na região de Rías Baixas
Litoral da cidadezinha de Pontevedra, na região de Rías Baixas (Volkswagen España/Flickr)

“Como aqui o tempo pode não ajudar, a gente fisga o turista com a gastronomia”, disse-me o sábio Manuel, um senhor gentil que sorri com os cantinhos dos olhos, proprietário do hotel Liñares, um achado escondido dos problemas do mundo entre vinhedos e milharais, nos arredores da bonita cidade de Pontevedra. Com vista para uma das rías (braços de mar que avançam ao interior) que justificam o nome da região, o hotel ocupa um terreno florido, com piscina, no alto de uma colina.

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A paisagem de Porto e Pontevedra
A paisagem de Porto e Pontevedra (Juan José Pascual/Keystone/Reprodução)

Ainda que existam boas pedidas de acomodação nos povoados dessa região da Galícia (como o Parador de Pontevedra, instalado num palácio renascentista do século 16), a verdadeira vocação das Rías Baixas é o turismo rural. O melhor a fazer é hospedar-se num lugar de charme nos arredores de uma cidadezinha simpática e ter um carro à mão para circular.

Orujo & bivalves

Seu Manuel sabe o que diz sobre utilizar a gastronomia como arma letal. Só ali no seu pedaço há dois magníficos restaurantes. Um deles é o superelegante O Eirado das Margaridas, onde derramei lágrimas por um prato de camarões e rape (um peixe de carne densa e saborosa) grelhados. O outro é A Nova Cepa, no qual fui praticamente obrigada pelo garçom a provar o melhor fideo (massa fininha cortada em pedaços curtinhos) com amêijoas dos meus 37 anos de existência. 

Chova ou faça sol, tudo o que chegue ao seu estômago deve vir acompanhado de fartos goles do vinho branco produzido da uva albariño, cultivada apenas nas Rías Baixas. Outra regra: toda e qualquer refeição será arrematada por doses de orujo, a demoníaca aguardente galega, servida sempre como cortesia da casa, cujas versões adocicadas (com ervas e até mesmo chocolate) podem fazer com que a manhã do dia seguinte seja bastante conturbada. Use com moderação.

Se o seu repertório de bivalves se resume a vôngole e mexilhão, prepare-se para adentrar o maravilhoso mundo da tropa de elite dos frutos do mar, sem ir à falência. Não só a Galícia é a principal região produtora de ostras da Espanha como também de outras dezenas de bichinhos vendidos a preço de ouro no resto do país – principalmente quando se trata dos percebes.

No topo da aristocracia dos crustáceos, eles são extraídos com dificuldade de rochas banhadas pelo mar bravio da costa galega. De perto, parecem dedos negros de unhas brancas, o que não provoca água na boca à primeira vista. Mas, por dentro, a carne é macia e adocicada, diferente de tudo o que você já provou.

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Outra rainha local é a vieira, que habita a concha-símbolo do Caminho de Santiago, com sua carne branquinha e voluptuosa, além da zamburiña, que é como uma minivieira (ainda que os locais jurem que uma coisa não tem nada a ver com a outra). De sabor pungente e concha áspera, os berberechos são um belo cura-ressaca, em caso de uma derrapada com o orujo. 

Você também não pode ir embora sem traçar uma navaja, concha em forma de navalha cuja carne tem consistência parecida com a da lula. Bastaria, claro. Mas ainda haverá caranguejos colossais, peixes nobres fresquíssimos e o golpe de misericórdia: polvo à feira (conhecido no resto da Espanha como pulpo a gallega), servido com batatas cozidas, páprica e um bom banho de azeite de oliva.

Navajas, estrela entre os frutos do mar da Galícia
Navajas, estrela entre os frutos do mar da Galícia (Caillaut/Keystone/Reprodução)

Lanzada, O Grove, Islas Cíes

Longe da mesa, a pedida é degustar as Rías Baixas em pequenas porções. Saltando de vilarejo em vilarejo, é uma delícia percorrer as estradas curvilíneas e vazias, garimpando os melhores mirantes, paisagens e praias do pedaço. Ah… As praias. Minha eleita foi a de Lanzada, nos arredores da cidadezinha pesqueira de O Grove: areia alvíssima, pouca gente, nenhuma construção, água cristalina (e eletricamente gelada) e uma barraquinha de madeira servindo Estrella Galícia, a melhor cerveja industrial da Espanha, na companhia de frutos do mar perfeitos. O que mais eu haveria de querer? Ah, sim, a brisa fresca do Atlântico Norte batendo no rosto.

Vigo, a maior cidade das Rías Baixas, não é digna de nota. Mas seu porto é a base de lançamento para as Islas Cíes, um parque nacional intocado, com as praias mais perfeitas do norte da Espanha. Antes ou depois de visitar o arquipélago, até vale dar uma voltinha pelo centro histórico da cidade. Mas, fora isso, o foco deve ser sempre os vilarejos parados no tempo.

Parque Nacional das Islas Cíes
Parque Nacional das Islas Cíes (xindilo/Flickr)

Combarro, Tui, Valença e Baiona

Dentre os povoados das Rías Baixas, Combarro (a 7,5 quilômetros de Pontevedra), é o mais pitoresco. O centro histórico se resume a um corredor estreito e irregular, com degraus que sobem e descem, espremidinhos entre construções de pedra que se debruçam sobre um braço de mar (a Ría de Pontevedra). Há hórreos (os típicos celeiros de pedra enfeitados com cruzes celtas que caracterizam a arquitetura rural galega) intactos por todos os lados, alguns deles soterrados por frondosas trepadeiras floridas.

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Casinhas de pedra nas vielas de Combarro
Casinhas de pedra nas vielas de Combarro (Marcos Veiga/Keystone/Reprodução)

A expressão “lugarzinho”, aqui, vale ao pé da letra. Minúsculas construções medievais abrigam bares de vinho, lojinhas e restaurantes charmosíssimos. As ruas cheiram a empanada galega (uma espécie de torta de atum), orujo e peixe assado. E os frutos do mar quase pulam diretamente ao prato em restaurantes matadores, como O Peirao de Rial, onde besugos, doradas e rodaballos ardem na brasa a poucos metros das mesas ao ar livre pegadas ao Atlântico. Completando o visual, uma marina forrada de veleiros.

Outra joia discreta das Rías Baixas é Tui. Na fronteira com Portugal, numa Europa que parece ter sido esquecida, eis que surge uma catedral românica do século 12, coroando um centro medieval que escorre por uma encosta até encontrar o Rio Miño (ou Minho, em português). De Pontevedra (52,5 quilômetros ao norte), esse lugarejo de 17 mil habitantes pode ser alcançado num agradável passeio de um dia, com paradas em outros pequenos deleites galegos.

Valença, do lado lusitano do Minho, é um pedacinho de Portugal profundo. Cercado por uma muralha, o centro histórico tem bonitas igrejas barrocas e as ruínas de um castelo. Também tem bacalhau, vinho verde, poucos turistas e incontáveis lojas de toalha (?!). De volta à Espanha e seguindo por mais 28 quilômetros, A Guarda é um portinho pesqueiro de 10 mil habitantes. O negócio aqui é subir, subir e subir, até conquistar o Monte de Santa Trega, onde há ruínas de uma civilização ancestral que ocupou a região, e uma vista gloriosa para as Rías Baixas.

Ruínas no Monte de Santa Trega
Ruínas no Monte de Santa Trega (J.D. Dallet/Keystone/Reprodução)

Deu calor? Então toca por 30 quilômetros até Baiona. A cidadezinha foi o ponto de chegada de Cristóvão Colombo e sua caravela Pinta (uma réplica do barco é uma das atrações locais) no retorno da América. Uma boa alternativa como base estratégica para quem faz questão de um certo agitinho noturno, Baiona tem um centro histórico recheado de restaurantes, como o ótimo Casa Rita e um lindo porto. Uma fortaleza com origens no século 11, que abriga o hotel Parador de Baiona, se impõe no layout da cidade e estampa a sua silhueta sobre a praia no fim de tarde. Relaxar na areia à sombra de uma construção medieval é dessas coisas que só a Galícia pode fazer por você.

Baiona vista do Castelo de Monterreal
Baiona vista do Castelo de Monterreal (Javier Larrea/Keystone/Reprodução)

Guia VT

Ficar

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Em Santiago de Compostela, o Parador de Santiago de Compostela, conhecido como Hostal dos Reis Católicos está impecavelmente localizado na Praza do Obradoiro. Para preços mais modestos, veja o Hotel Montenegro Compostela, novinho e bem localizado.

Hostal dos Reis Católicos
Hostal dos Reis Católicos (Parador de Santiago de Compostela/Divulgação)

Em Pontevedra, o hotel Liñares, tem vista bonita do alto da colina. Para mais luxo há o Parador de Pontevedra, instalado num palácio renascentista do século 16. O Parador de Baiona também é uma lindeza, numa fortaleza do século 11. Em Combarro, o simplinho Hotel Combarro é barato e funciona para uma estadia rápida na cidade. Nas Rías Baixas, uma boa ferramenta para encontrar alojamento é o site Top Rural.

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Comer

Comece os trabalhos na gastronomia galiciana em Pontevedra, no Eirado das Margaridas e no Nova Cepa (Calle Penedo, 4, 13h/0h). Em Combarro, o Peirao de Rial tem peixes frescos e mesas ao ar livre. Em Baiona, fica o ótimo Casa Rita.

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Zamburiñas e berberechos no Parador de Baiona
Zamburiñas e berberechos no Parador de Baiona (Parador de Baiona/Divulgação)

Passear

Em Santiago de Compostela, veja a fachada barroca da catedral. Daí, adentre a região das Rías Baixas, passando por cidades como Pontevedra, Grove (perto da onde fica a linda Praia de Lanzada) e Vigo, base para conhecer o Parque Nacional das Islas Cíes – durante o verão, reserve o passeio para lá com a Naviera Mar de Ons com vários dias de antecedência. 

Outras paradinhas bacanas são Combarro, um dos povoados mais pitorescos, com ruelas espremidas entre construções medievais, Tui, com sua catedral românica do século 12, Valença, do lado lusitano, e Guarda, onde fica o Monte de Santa Trega, que guarda ruínas de uma civilização ancestral. Termine no simpático centrinho cheio de restaurantes de Baiona.

Mapa da região da Galícia, norte da Espanha
Mapa da região da Galícia, norte da Espanha (Martini/Viagem e Turismo)

Como chegar

De Madri a Santiago de Compostela são 600 quilômetros. Você pode voar direto do Brasil para lá ou ir de trem a partir de Madri – veja no Renfe. Uma vez em Santiago, alugue um carro no aeroporto ou na estação de trem em empresas como a Rent Cars.

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