Arroz com feijão, com lentilha, com legumes, com salada. O onipresente tofu, o seitan, os hambúrgueres vegetais. Uma farofinha ali no canto para tentar dar uma graça. Esqueça os pratos vegetarianos que mais parecem um monte de acompanhamentos reunidos sem qualquer lógica ou propósito que vá além de matar a fome. Uma nova onda de restaurantes vegetarianos está chegando para provar que um jantar sem carnes pode ser tão espetacular quanto um menu sem restrições.
Resumindo: a alta gastronomia está desembarcando no mundo veggie – com direito a texturas, espumas e uma explosão surpreendente de sabores. Junto com ela costuma vir, naturalmente, uma preocupação com a origem do produto, uma predileção pelo pequeno produtor, um cuidado maior com o lixo, com o desperdício, com a sustentabilidade, enfim.
Isso não chega a ser exatamente uma novidade. Em alguns lugares do mundo já é realidade há anos. Em Berlim, por exemplo, a meca do universo vegetariano, conheci o primeiro restaurante estrelado pelo Guia Michelin na cidade onde as carnes não passam da porta quase quatro anos atrás (o Cookies Cream, capitaneado pelo genial chef Stephan Hentschel). É possível que haja outros bons exemplos por aí (que eu ainda não tive a oportunidade de conhecer). Mas em Portugal o cenário é recente. E muito inovador. Eis alguns exemplos (seja de restaurantes, seja de menus e pratos especiais) que chegaram para fazer toda a diferença:
Senhor Uva
Uma simpática ladeira nos fundos do Jardim da Estrela é o endereço da cozinha criativa da chef canadense Stéphani Audet e sua comida “botânica”. A experiência completa começa com uma taça de vinho no Senhor Manuel, de um lado da rua, onde brilham as bebidas naturais e um atendimento espetacular e zero pretensioso, e segue com um jantar no restaurante propriamente dito, logo em frente, onde uma sala pequenina acomoda pequenas mesas e um balcão numa janela rasgada na parede. A proposta é de cozinha de partilha: todos os pratos vão para o centro da mesa para serem provados por todos. A leveza, a delicadeza e o frescor são denominadores comuns de pratos lindos como as folhas de shiso com cenoura, noz de macadâmia e limão; o ceviche de jaca com aji amarelo, nectarina fresca e um purê aveludado de abacate; ou as abobrinhas defumadas com cebola verde, ponzu e crocantes de arroz.
O menu muda conforme a sazonalidade dos produtos, bien sûr, mas já tendo provado quase tudo nas três vezes que jantei lá recentemente (um vício!) posso dizer: cada garfada é uma bela surpresa. E a sobremesa é sempre um grand finale: sejam os morangos com queijo de cabra, flor de sabugueiro, pistache e pimenta ou os figos com mirtilos em leite de amêndoa, camomila, cacau e pó de rosa. O clima é de bistrô e uma refeição para duas pessoas, vinhos incluídos, custa cerca de € 60.
Arkhe
Conheci o Arkhe no auge da pandemia quando o restaurante decidiu apostar no delivery de altíssima qualidade. Já naquela época fiquei fã. Inesquecíveis o creme de castanha, os gnocchis com cogumelos, os pithiviers, tudo para ser finalizado em casa. Mal a pandemia deu trégua e fomos conhecer in loco. UAU. O atendimento e as recomendações do sommelier Alejandro Chavarro, colombiano com passagem por restaurantes estrelados da França e da Espanha (Mugaritz entre eles) são a companhia perfeita para as criações do paulistano João Ricardo Alves, que também rodou o mundo antes de vir parar a Lisboa. Juntos, os dois lutam com todas as armas contra o que chamam de preconceito grande que existe contra a vegetariana.
Que armas seriam essas? Um ambiente lindo, recheado de plantas; uma bem fornida carta de vinhos (algo complicada na minha modesta opinião); e pratos que mais parecem obras de arte e respiram, em doses equivalentes, técnica e sabor – muitos deles são, inclusive, vegan. Aos preconceituosos de plantão, vale a observação: nem parecem. Cozinha digna de estrela Michelin, preços quase lá. Uma refeição para duas pessoas com menu degustação de três pratos e vinho custa cerca de € 130 (claro, pode chegar a muito mais dependendo do vinho!).
Suba
O restaurante do hotel Verride Palácio de Santa Catarina não é vegetariano. Pelo contrário: pato, polvo, foie gras e black angus abundam pelo menu. E é justamente por isso que a chegada de uma nova – e vegetariana! – carta entre as propostas do chef Fábio Alves surpreendeu tanto. Geralmente quando um restaurante, digamos, tradicional incorpora opções vegetarianas no menu elas tendem a se resumir a risotos e receitas básicas à base de tofu – o caminho fácil, digamos assim, para atender aquela companhia do jantar que não come carne. Foi com muita alegria que percebi, já no couvert, que a carapuça não serviria ao Suba. Os crisps de arroz e milho prensados, servidos com manteiga aromatizada e um queijo cremoso de beterraba foram o prenúncio de que uma refeição de alto nível viria a seguir.
Uma mozarela fresquíssima com água de tomate, pesto e pepino abriu os trabalhos; e seguiram-se canelones de espinafres com legumes e parmesão; um salteado de tofu com bulgur e abacate; e a estrela da noite: bulbo de aipo com batata doce defumada e cogumelos. Para encerrar, tartar de frutas, yusu e sorvete de maçã e poejo, com crocante de manga. O menu degustação vegetariano tem cinco etapas e é confiance – ou seja, as receitas são surpresa – e custa € 50 por pessoa. A harmonização de vinhos para acompanhar os pratos sai a € 45. A vista espetacular de Lisboa que se descortina das janelonas de vidro… é brinde!
Drogaria
Mais um exemplo de restaurante não vegetariano que brilha no vegetarianismo. Seu proprietário, Paulo Aguiar, sentiu a necessidade de incluir receitas bem preparadas sem carne para atender um público crescente de vegetarianos. “Já não dava para ignorar”, diz ele. A chegada do chef Daniel Sousa, com passagem por diferentes restaurantes estrelados de Portugal e Espanha, completou o puzzle. Aqui o couvert não deve ser pulado em hipótese alguma – pães quentinhos, manteiga de limão, azeite e uma maravilha chamada manteiga caramelizada.
Outra etapa a não pular: os drinks criados pelo Ludgero. No menu, se destacam pratos como a entrada vegana com diferentes texturas de berinjela e nabo: purê, babaganoush,versões assadas e fritas. Ou a couve-flor grelhada escoltada por um purê do legume, cogumelos e espinafres, como prato principal. Para encerrar, uma reinterpretação da “tigelada”, um clássico português: uma espécie de pudim com flocos de mel, espuma de iogurte e meloa, com vinagre e manjericão.