Continua após publicidade

Trilhos nada urbanos

Subimos no trem que cruza a Austrália de ponta a ponta, uma das maiores extensões do mundo, com o deserto como cenário

Por Giovana Vitola
Atualizado em 16 dez 2016, 09h13 - Publicado em 13 set 2011, 20h41

Os trens australianos podem não ser tão velozes e confortáveis quanto os europeus de última geração. Mas olhar através de suas janelas, a uma velocidade nunca superior a 180 quilômetros por hora, é a melhor maneira de admirar paisagens de formas e cores delirantes sem sofrer com temperaturas que podem chegar a 50 graus. Pelos trilhos que atravessam o país na direção oeste, os vagões do Indian Pacific rasgam terras secas e avermelhadas por onde se estende o Outback, como são chamadas as remotas áreas desérticas do país. Após quatro anos na Austrália, eu me julgava preparada para desvendar essa imensidão árida, onde vivem apenas 10% dos 21 milhões de aussies. Pela frente, encararia uma viagem de 4 352 quilômetros numa tacada, dos quais 500 em linha reta, com cenário imutável.

O Indian Pacific vai da costa leste à oeste, de Sydney a Perth – ou vice-versa, passando pela planície de Nullarbor (em latim, “sem árvores”). Essa épica linha férrea foi batizada assim porque parte de um oceano e chega a outro. Mas, ao contrário do que se imagina, não se vê água pelo caminho, já que o comboio passa bem longe da costa. Essa é uma das quatro rotas da companhia Great Southern Rail (61-8/8213-4592, www.gsr.com.au; Cc: A, D, M), especializada em longas jornadas pelo país.

O trem é superlativo. São 700 metros de comprimento, 26 vagões e capacidade para 400 passageiros. Os 4 352 quilômetros de trilhos, vencidos em 72 horas, só perdem em extensão para dois percursos da companhia russa Trans-Siberian Railway (que opera o Transiberiano) e para um trajeto da VIA Rail, do Canadá.

Há dois tipos de “classe” dentro do trem, a Gold Service e a econômica Red Service, que por sua vez tem dois tipos de assento, um que deita totalmente (em cabine) e um normal, parecido com a poltrona de um ônibus qualquer, que reclina um pouquinho. Este último custa US$ 590 (estudantes têm desconto de quase 50%). Já o Red Service em cabine de dois lugares, com assentos que se transformam em cama, custam US$ 1 122. Nesse caso, o banheiro e a ducha são divididos com os demais passageiros da mesma classe.

Preferi investir um pouco mais e fui de Gold Service, uma espécie de executiva, a US$ 1 650 por pessoa. Minha cabine era um cômodo compacto, delimitado por painéis de madeira, com direito a banheiro completo, com chuveiro, além de um beliche em que a cama de baixo se transforma num sofá de dia. Além dessa “mordomia” toda, há apenas um rádio, uma tomada e, claro, uma janela bem grande. Quem estiver viajando sozinho pode optar por uma cabine individual, pelo mesmo preço.

O Gold Service também inclui todas as refeições – e são senhoras refeições. A julgar pela pompa do vagão-restaurante Queen Adelaide, enfeitado com cortinas e mesas separadas por divisórias de vidro, e pelo serviço, era como se eu estivesse em um restaurante de luxo, mas que sacode um bocado. Tanto no café da manhã como no almoço e no jantar, o menu tem mais de uma opção e é servido por garçons solícitos, vestidos de uniforme preto com um brasão dourado. No desjejum, havia sempre café ou chá, uma cestinha com pães, manteiga, mel, geleia, frutas e cereais. E ainda era possível escolher entre bolo de banana aquecido (bem típico do país) ou bacon, ovos e salsicha. No almoço e no jantar, geralmente era servido um prato à base de frango, carne de vaca ou canguru (cuja carne é macia e saudável, já que tem pouca gordura), tudo em pratos de louça, com muito esmero na apresentação. Para vegetarianos e crianças, há menus especiais. Nada que lembre nem remotamente comida de avião. As bebidas não estão incluídas no pacote, com exceção do champanhe e dos sucos servidos na happy hour, que acontece todo fim de tarde, antes do jantar.

Continua após a publicidade

Conversei bastante com os demais passageiros da minha classe às refeições. A maioria deles era formada por casais australianos aposentados, que queriam conhecer as entranhas de seu país. Como Mary e o marido, Anthony, ambos de 70 anos, que empreendiam a terceira viagem completa (ida e volta!) no Indian Pacific, algo que a maioria das pessoas faz apenas uma vez na vida. “Não me canso de admirar o vazio infinito do Outback. A cada viagem descubro algo novo ali”, disse Mary. Naquela viagem, eles me contaram, estávamos com sorte. Além da vastidão do deserto, da mudança da vegetação e da cor da paisagem segundo o movimento do sol, vi cangurus, emas e cavalos selvagens. Não é sempre que eles aparecem. 

Perth, a metrópole distante

Comecei minha viagem em Perth, pois achei que ir e voltar pelo mesmo trajeto e somar mais de 8 mil quilômetros de trilhos era um pouco demais. De avião, a partir de Sydney, são uns US$ 200. Perth é uma pequena metrópole, com 1,4 milhão de habitantes. Apesar de estar distante 2 mil quilômetros de Adelaide, outra cidade de mesmo porte, é um lugar de invejável qualidade de vida (é a 21ª melhor cidade do mundo no ranking da consultoria especializada Mercer; Paris vem em 34º lugar). Também é a 12ª mais verde, segundo a mesma consultoria, superada na Austrália apenas por Adelaide.

Por isso, fique em Perth alguns dias antes de embarcar nos trilhos e no deserto. Pegue um mapinha e flane pelo centro. A Hay Street Mall, o calçadão da cidade, vale para bisbilhotar lojas de suvenires e grandes galerias e parar nos cafés. Uma caminhada ao Kings Park and Botanic Gardens, que fica numa colina, é absolutamente recomendável. O lugar é perfeito para arejar (como se fosse preciso em Perth) e ver a cidade do alto. Uma vez lá, pare para um almoço ou café no Botanical Cafe (Fraser’s Avenue, 61-08/9482-0122, www.frasersrestaurant.com.au/docs/botanicalcafe; 7h/19h; Cc: M, V), acolhedor apesar de grandão, que serve pratos desde US$ 12. Se o dia estiver ensolarado, aproveite para se sentar às mesas ao ar livre.

Guarde a tarde para visitar a cidade vizinha de Fremantle (Freo para os íntimos), a 19 quilômetros. Nesse porto histórico, há edifícios coloniais, muitos hippies e outras figuras estranhas. Grande pedida é a cervejaria Little Creatures (40 Mews Road, 61-08/9430-5555, www.littlecreatures.com.au; 10h/0h; Cc: A, M, V). O lugar, que já fez as vezes de sede de uma fazenda de criação de crocodilos, foi reformado por um grupo de amigos e se tornou ponto de encontro. Prove as cervejas artesanais, algumas delas, dizem, premiadas em festivais internacionais. Para chegar a Freo, pegue o ônibus 103 (www.transperth.wa.gov.au; US$ 2,50) na Hay Street e desça direto lá. Se você estiver no Kings Park, a caminhada até a Hay leva cerca de 40 minutos. Tente fazer o passeio coincidir com o fim de semana, quando acontece o divertido Fremantle Markets (esquina entre a South Terrace e a Henderson Street; 6ª 9h/21h, sáb 9h/17h, dom 10h/17h), onde se vendem suvenires bacanas.

Continua após a publicidade

Antes do entardecer, corra para a praia mais famosa da redondeza, a Cottesloe (pegue o trem na plataforma 1 da estação de Fremantle, a cinco minutos do calçadão da cidade, e desça na Cottesloe Station, a 15 minutos dali; US$ 2), para um romântico pôr do sol. E mantenha a tradição de comprar fish & chips (peixe com batatas fritas) em qualquer restaurantezinho da praia.

Hora de voltar a Perth. Um bom hotel a cacifar, em termos de localização e preço, é o Rydges (esquina da Hay com a King Street, 61-08/9263-1800, www.rydges.com; diárias desde US$ 120; Cc: A, D, M, V), próximo a Northbridge, região de restaurantes e bares badalados. Uma sugestão para o jantar (cedo!) é o Red Teapot (413 William Street, 9228-1981; 2ª/sáb 12h/22h), que serve receitas de Hong Kong em ambiente de design por cerca de US$ 15.

No seu segundo dia em Perth tome rumo da Rottnest Island (a Rotto), uma reserva de fauna e flora protegida que rende um passeio de dia inteiro. Para chegar lá, pegue um ferry no centro (Barrack Street Jetty, 61-08/9246-1039, www.rottnestfastferries.com.au; US$ 60 ida e volta; Cc: M, V). Eles saem a cada meia hora entre as 8 da manhã e as 6 da tarde e o trajeto demora 90 minutos. Ao chegar, como carros são proibidos, corra para alugar uma bicicleta (US$ 20 por dia). Encontrar a agência de aluguel é fácil, basta seguir o fluxo no desembarque. Pegue o mapa da ilha para ter uma ideia de orientação, mas pedale sem rumo certo pelos 24 quilômetros de ciclovias, a melhor forma de explorar a ilha. A Rottnest tem 63 praias e um lindo farol que proporciona uma vista geral do lugar. Também valem o programa ver os adoráveis quokkas, parentes dos cangurus, que estão espalhados pela ilha toda. Pequeninos, podem até ser confundidos com ratinhos. Mas, como já estão acostumados com gente, é fácil vê-los de perto.

Na hora do almoço, você tem duas boas alternativas: o Dome (esquina da Henderson Street com a Colebatch Avenue, 61-08/9292-5286, www.domecoffees.com.au; 9h/17h; Cc: M, V), que serve sanduíches, cafés e outras comidinhas rápidas (espere gastar US$ 10) ou o Aristos Waterfront Rottnest (Thomson Bay, 61-08/9292-5171, www.aristos.com.au; 10h/17h; Cc: A, M, V), que prepara frutos do mar e peixes frescos, as grandes especialidades da cozinha típica dessa região da Austrália. 

Continua após a publicidade

O trem, finalmente

Se você embarca no Indian Pacific em Perth, são quatro paradas até Sydney. Nesses pequenos intervalos há sempre um tour organizado que se encaixa exatamente no tempo de espera do trem na estação, como em cruzeiro de navio. Em Kalgoorlie, uma cidadezinha de 30 mil habitantes, vimos uma das maiores minas de ouro a céu aberto do mundo, a Fimiston Super Pit (KCGM?Black Street, 8/9022-1100, www.superpit.com.au), que produz 22 toneladas do nobre minério anualmente.

Paga-se o equivalente a US$ 16 por uma volta de uma hora por esse lugar isolado e estranho, começando pela mina, onde o trabalho nunca para. Cerca de 20 minutos dali, no centro do vilarejo, o guia mostrou alguns dos prédios importantes e contou a história de cada local. Obviamente, ali tudo tinha alguma ligação com a mina e com o ouro. Mas o que chamou a atenção foi a quantidade de bares com plaquinhas skympies (que avisam que há no lugar garçonetes de topless) afixadas em suas portas. Não entrei para conferir, mas, com certeza, a razão para isso é a quantidade de mineradores por ali, em relação à pouquíssima companhia feminina.

No dia seguinte, acordei com o nascer do sol mais lindo que já vi. Estávamos entrando na planície de Nullarbor, uma área muito extensa de vegetação rasteira que sinaliza a metade do percurso até Sydney. É onde está o trajeto mais longo sobre trilhos em linha reta do mundo. São quase 500 quilômetros com o mesmo cenário (que deslumbra em vez de enjoar) e sem dobrar nenhuma vez. Mais ou menos como ir do Rio a Campinas sem fazer curva.

Essa imensidão seca era a passagem mais esperada por todos. O memorável – e paradoxal – desse trecho é justamente o fato de que, em Nullarbor, não há nada para ser visto, apenas o vazio infinito da mais longa planície calcária existente. A vastidão impressiona, é difícil de descrever. Ali, a vida é escassa e frágil, e as noções de tempo e espaço são regidas por parâmetros que não conhecemos. Nesse momento de contemplação, o cenário desértico leva a mente para longe. E, junto, qualquer tipo de preocupação. Durante as horas do percurso por Nullarbor, deitei de bruços na cama e grudei o rosto no vidro da janela. Depois, fui até a lanchonete. Pedi um café e fiquei ali, observando o que não tem começo nem fim, totalmente em paz. Senti-me um pontinho a se mover na imensidão vermelha.

Continua após a publicidade

No meio dessa linha reta chegamos, à tarde, sob um sol de matar, ao vilarejo de Cook. Cook foi fundada em 1917 enquanto a linha férrea era construída. Com o término da obra, ficou abandonada. A vilinha se localiza exatamente na fronteira dos estados de Austrália Ocidental e Austrália do Sul e, por isso, tem dois fusos horários. Não há sombra, pois não há árvore. Em pé, apenas casas abandonadas em estilo Velho Oeste, piscinas já cobertas por terra, escola, hospital e correio vazios. Placas avisam que o próximo posto de gasolina fica a 862 quilômetros. O trem para nesse fim de mundo quase como um capricho, e aí conhecemos os únicos dois habitantes permanentes no local, Jan, que está lá há 15 anos, e o marido. Ela me disse que não vê nada estranho em morar ali. “É tranquilo”, disse – e me pareceu difícil discordar. Ela cuida da lojinha (que só abre quando o trem para ali) que vende pequenas lembranças, um tanto sem graça, e também inspeciona os trilhos todas as manhãs para garantir que pedras e animais selvagens, como os camelos, saiam do caminho.

Sim, há camelos por ali. Eles foram trazidos das Ilhas Canárias, território espanhol na costa da África, em 1840. Na época, eram o único meio de transporte apto a explorar um deserto tão extenso. Eles proliferaram e hoje são cerca de 150 mil, tendo sua caça liberada para que virem comida em muitos restaurantes do Outback.

De um cafundó de dois habitantes, passaríamos a uma metrópole onde vivem 1,5 milhão de pessoas. A terceira parada seria em Adelaide, a quarta maior cidade do país, onde também preferi optar por um city tour (US$ 21) de uma hora. Foi bom ver gente, verde, prédios, vida de cidade grande, mesmo que da janela do ônibus. De volta ao trem, a viagem seguiu com bastante tempo para ler, descansar, comer. Do lado de fora, a cor da terra começava a mudar e a vegetação ganhava vigor.

Às 4 da tarde do terceiro dia chegamos à cidade da prata, Broken Hill, onde a maior mineradora do mundo, a BHP Billiton, foi fundada. O local, bem mais populoso durante a corrida pelo mineral, foi descoberto em 1844 pelo explorador Charles Sturt e hoje tem pouco mais de 18 mil habitantes, que ainda trabalham com mineração. Com jeitão de faroeste, serviu de cenário para a gravação de parte do filme Priscila, a Rainha do Deserto. Por lá, tivemos tempo para ver um belo pôr do sol com vista panorâmica da cidadezinha e para bisbilhotar algumas lojinhas e galerias de artistas locais, cujas obras retratam o deserto australiano e seus personagens.

Continua após a publicidade

A 1 100 quilômetros de Sydney, já em Nova Gales do Sul, passei a última noite no trem. O nascer do sol já não foi mais no deserto. Aos pouquinhos, o caminho foi ficando cada vez mais verde até aparecerem florestas densas, sinal de que cruzávamos as Blue Mountains. E de que Sydney apareceria logo ali à frente. A viagem chegava ao fim.

Leia mais:

Trilhos nada urbanos – O essencial

Publicidade
Publicidade