Transilvânia: uma volta pelo Leste Europeu sem filtros
No interior montanhoso da Romênia, a Transilvânia tem igrejas góticas, castelos renascentistas e cidades medievais charmosas, boêmias - e meio sinistras
Com os cabelos recolhidos sob um lenço negro, a babushka parecia imune ao vai-que-vai dos ponteiros do relógio. “Na Romênia, ir embora de um casamento antes de cortar o bolo é a maior gafe que se pode cometer”, disse-me um dos padrinhos, justificando a resistência hercúlea da avó octogenária da noiva em um Ironman nupcial que já durava 12 horas. O festim teve seis pratos nababescos – com sessões de dança entre um e outro que estenderam a comilança até as 4 da madrugada.
Foram três bandas ao vivo, uma delas formada por 15 ciganos balcânicos com violinos, trombones, trompetes, acordeões. Os convidados assistiram a duas frenéticas apresentações de danças típicas. Padrinhos brindaram e espatifaram taças no chão. A noiva, a romena Ioana, foi “sequestrada” no auge da festa (uma peculiar tradição local), obrigando o noivo, meu amigo gaúcho JP, a pagar um resgate em forma de karaokê. Bebeu-se como se não houvesse amanhã. Mas houve. Depois de umas míseras horas de sono, a celebração continuou nos bares da linda cidadezinha de Sibiu, na Transilvânia profunda.
Um casamento é sempre uma maneira gloriosa de mergulhar na cultura de um país. Mas mesmo sem festança eu teria vibrado com o que vi na Transilvânia, a região histórica, centro-ocidental, montanhosa e deliciosamente interiorana da Romênia. Localizada a 275 quilômetros ao norte de Bucareste, Sibiu é um sopro de ar fresco para quem procura alguma coisa relevante fora dos grandes hits do Velho Mundo.
Ainda que se identifiquem na arquitetura influências alemãs e austro-húngaras, a atmosfera é bem diferente da que se respira na parte ocidental do continente. É Leste Europeu sem filtros, remoto. Transilvânia, afinal de contas, quer dizer “além da floresta”.
Para chegar até lá, através dos Cárpatos, você dividirá a belíssima estrada com carroças de rodas de madeira e pastores que parecem saídos de tempos ancestrais, verá bolsões de pobreza e outros indícios de que a Romênia foi um dos últimos países a entrar na União Europeia – e o segundo país mais pobre do bloco, depois da Bulgária. Ainda fora da zona do euro (a moeda oficial é o leu romeno), a Romênia também tem a vantagem de ser muito mais barata do que a Europa Ocidental. Uma boa refeição dificilmente passará de € 15.
Com 155 mil habitantes, Sibiu foi capital cultural da Europa em 2007 (ano em que a Romênia se uniu à UE) e assume o mesmo papel, só que sem prazo de validade, no âmbito nacional. Compositores do porte de Franz Liszt, Johan Strauss, Johannes Brahms e Joseph Joachim apresentaram-se na cidade no século 19. E ainda hoje, ao longo da primavera e do verão, seus teatros abrigam festivais de música clássica, ópera, cinema e música eletrônica. A data do casamento, em junho, coincidiu com a semana da moda, cheia de desfiles profissionalíssimos ao ar livre, na magnífica Piata Mare, a praça central.
A primeira escola, a primeira biblioteca e o primeiro hospital da Romênia foram instalados em Sibiu. Entre os séculos 12 e 19, como quase toda a Transilvânia, a cidade integrou o território húngaro e esteve sob domínio germânico. De certa forma, ainda está. De 2000 a 2014, o atual presidente da Romênia Klaus Werner Iohannis, de origem alemã, governou a cidade – o que explicaria, segundo alguns locais com quem conversei, o fato de Sibiu ser um brinco.
Os casarões dos séculos 18 e 19, sob telhados que parecem ter olhos, são pintados de cores suaves. Abraçado por uma muralha do século 16, o centro histórico tem 39 torres e quatro bastiões bem conservados que formam um conjunto impressionante com os Cárpatos eternamente nevados ao fundo. O clima é boêmio, há cafés incrementados ao longo de alamedas amplas e elegantes.
Empaladores e megalôs
A capa preta que acompanha a mitologia sobre a Transilvânia se materializa em um vilarejo chamado Sighişoara, 100 quilômetros ao norte de Sibiu. Linda e sinistra nas mesmas proporções, a cidadezinha fica em uma colina coberta de casarões do século 16, ruas de pedras irregulares e igrejas góticas. O centro antigo é rodeado por uma muralha do século 14. A parte mais alta é coroada por uma basílica do século 17 e – buuuu – um cemitério. Para chegar ao topo, é preciso vencer 172 degraus cobertos por um túnel de madeira cujo interior é escuríssimo até durante o dia. O cenário é finalizado com revoadas de corvos crocitando no fim da tarde.
À noite, Sighişoara fica mais especial com uma iluminação cenográfica que destaca as fachadas dos casarões. Não fosse um cachorrão uivando na praça, eu até arriscaria dizer que é no escuro, por incrível que pareça, que a cidade perde um pouco do ar sombrio. Coincidência (ou não!): foi ali que nasceu Vlad Tepes, “o empalador”, o príncipe da Valáquia que inspirou o Conde Drácula da novela de Bram Stoker. A casa na qual o tinhoso Vlad veio ao mundo, em 1431, é identificada por uma placa.
Mas o temido castelo que acabou passando para a história como o lar do vampirão fica mais adiante, a 28 quilômetros de Brasov – cidade que completa o trio essencial da Transilvânia, ao lado de Sibiu e Sighişoara. Não espere do lugar aquela aura horripilante dos filmes de terror – nem se sabe ao certo se Vlad viveu ali.
Construído no século 14, o Castelo de Bran acabou famoso como Castelo do Drácula por causa do exterior gótico e por se destacar da paisagem, em cima de uma colina solitária. Por dentro, não tem nada de assustador. As paredes são brancas, há bastante luz natural. A partir do século 20, o palácio-fortaleza foi residência de verão da realeza. Quem assinou a decoração foi a rainha Marie da Romênia.
Com todo o respeito ao abusado Conde Drácula, nada se compara ao Castelo de Peleș, o grande hit da Transilvânia, na cidadezinha de Sinaia (a 44 quilômetros de Brasov). Se você já esteve na Rota Romântica do sul da Alemanha, terá um déjà vu. Construído em 1875 em estilo renascentista germânico, foi concebido para servir de residência de verão ao rei Carol I da Romênia. Mas o empenho foi tanto que a obra demorou 39 anos e só ficou pronta meses antes de ele passar desta para uma melhor. Coube à rainha Elisabeta espairecer decorando seus 160 cômodos com um pot-pourri de estilos que transita do florentino ao turco, passando pelo austríaco.
O ditador Nicolae Ceaușescu, com sua mania de grandeza, adotou o castelo como casa de campo em seu interminável governo (de 1967 a 1989). Recebeu ali amiguinhos como Richard Nixon e o ditador líbio Muamar Kadafi. Para conhecer seu interior, é possível fazer uma visita guiada de 45 minutos em inglês ou francês, ou percorrer os cômodos por conta própria – um folheto distribuído na porta tenta, mas não consegue, dar algumas explicações. O edifício é cercado de lindos bosques e jardins e é vizinho do igualmente belo Palácio de Pelisor.
Brasov não é apenas a base estratégica para visitar os castelos de Peleș e Bran. É uma atração per se. Próxima à estação de esqui de Poiana, a cidade ferve no inverno. No resto do ano, espiar os casarões coloridos com telhados em estilo austro-húngaro e a maior igreja gótica do Leste Europeu, solitária na Praça Sfatului, é mais do que suficiente.
A igreja é conhecida como Biserica Neagra, ou Basílica Negra, por causa das paredes escurecidas por um incêndio. O interior é austero, mas o órgão alemão do século 19 é um show à parte. A cidade também tem um monte de cafés e restaurantes classudos. Caso sobre um tempinho, vale conferir a rua mais estreita da Europa, a Strada Sforii.
O giro por Sibiu, Sighișoara, Brasov e arredores, com começo e fim em Bucareste, a capital romena, soma 670 quilômetros. Com um pouco de pressa, uma semana é tempo suficiente. É possível fazer o trajeto de trem (horários e preços aqui). Alugando carro, dá para curtir atrações extras, como a rodovia Transfăgărășan (nacional 7C).
Entre Sibiu e Brasov, a estrada é a mais alta da Romênia e serpenteia vertiginosamente, em cotovelos impossíveis, até atingir 2 034 metros de altitude. Quem não encarar dirigir até o topo pode estacionar no pé da montanha e subir de bondinho, para ver vales, bosques e cachoeiras do alto.
Classificada pelo Top Gear (programa da BBC sobre automóveis e afins) como a estrada mais incrível do mundo, a pista nasceu de um dos delírios de Nicolae Ceaușescu. O ditador inventou de abri-la nos anos 70 para garantir a travessia dos Cárpatos caso, em uma guerra, o inimigo tomasse as vias que unem sul e norte da Romênia. Custou a vida de 38 trabalhadores.
Em pleno mês de junho, vários metros de neve cortavam a Transfăgărășan bem antes de chegarmos ao topo. Vale pela aventura, pela paisagem. Mas, a não ser em julho e agosto, prefira outros caminhos para ir além da floresta.
Guia VT
→ Brasov
Ficar
Em plena Piata Sfatuilui, o epicentro de Brasov, o Casa Wagner tem 12 quartos – alguns com varanda e vistas – com paredes de tijolos e vigas de madeira expostas. Também na praça, o campeão de charme é o Bella Muzica, que tem suítes e apartamentos decorados com móveis de madeira. Ambos têm internet wi-fi e minibar. Para um upgrade, o hotel mais luxuoso da cidade é o Kronwell.
Comer
Instalado em uma cave subterrânea do século 16 e repartido em várias salinhas intimistas, o Bella Muzica é um dos hits da cidade, com cardápio ultraeclético de receitas húngaras, mexicanas e romenas. Imperdível, o Bistro dell’Arte serve café da manhã, almoço e jantar e capricha nas sopas (uma das delícias romenas é a sopa de feijão e bacon servida no pão).
→ Sibiu
Ficar
O Ibis Sibiu fica a cinco minutos a pé do Centro e é novíssimo. Também pertinho de tudo que interessa, o Max Apartments tem lofts de design minimalista com cozinha, estacionamento e internet wi-fi. Para quem prefere um hotelzão, a pedida é o Golden Tulip Ana Tower.
Comer
O melhor restaurante da cidade é o MAX, que tem cozinha italiana com toques locais. A autêntica culinária romena está no centenário Croma Sibiu Vechi, em uma cave no centro histórico.
→ Sighişoara
Ficar
A pensão Casa Saseasca fica na praça principal e parece uma casinha de boneca, com móveis pintados e banheiro com banheira. Com papel de parede, carpete bordô, lustres e camas de dossel, o Central Park é luxo à moda antiga.
Busque hospedagem em Sighişoara
Comer
O Café International é uma ótima para o café da manhã ou uma boquinha fora de hora. Serve muffins, omeletes e sanduíches. O Casa Dracula, como o nome sugere, está no edifício em que Vlad nasceu. Tome um drinque no bar só para matar a curiosidade, mas deixe para jantar no elegante Casa Wagner.
Quando irO verão (de junho a agosto) é a época ideal para curtir a Transilvânia – mesmo assim, leve um casaquinho para a noite. TransporteNão existem voos diretos do Brasil para Bucareste, o ponto de partida para conhecer o interior do país. É necessário fazer escala em algum país europeu. A fama dos taxistas que atendem na área do aeroporto de Budapeste é péssima. Para evitar golpes, mais vale contratar um transfer de antemão, no excelente Bucharest Airport Transfer. Custa a partir de € 17, e você só paga quando chegar ao hotel. As estradas do país não são das melhores para os padrões europeus. Os arredores de Bucareste são cobertos por autopistas. Mas a Transilvânia é inteirinha feita de pistas únicas e curvas intermináveis. Muitos trechos estão em obras, principalmente entre Sibiu e Sighişoara. Muna-se de paciência extra. Os sites Rental Cars, Auto Europe e Priceline são ótimas ferramentas para procurar as melhores tarifas nas locadoras de automóveis. |