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São Luís, meu amor: um olhar afetivo sobre a capital do Maranhão

O que acontece quando alguém fica vários anos sem voltar a uma cidade? Se for a capital maranhense, esse reencontro promete

Por Otávio Rodrigues
Atualizado em 16 jun 2022, 14h11 - Publicado em 1 mar 2012, 21h47

São Luís é uma cidade diferente. É do Nordeste por um triz, pois fica na antessala da Amazônia. Foi fundada por franceses e tupinambás, ocupada por holandeses, colonizada por portugueses, recebeu milhares de escravos africanos. Com a graça da miscigenação, tornou-se o que se pode chamar de nação cabocla. Mas isso não é tudo. Tem ainda traços árabes, jamaicanos e até gregos. Berço de grandes escritores e poetas, foi chamada de “Atenas brasileira” – que a sabedoria popular tratou de mudar para “Apenas brasileira”.

Minha primeira experiência em São Luís, há mais de 30 anos, foi intensa. Tinha ido até lá para uma reportagem sobre o gosto dos maranhenses pelo reggae e acabei absorvido ou varado pelo mistério dessa cidade. Sentia vertigens andando pelo centro histórico. A rica azulejaria portuguesa, as ruazinhas de pedra, o movimento das pessoas, tudo era só encantamento. De trás das portas pesadas de sobradões dos séculos 18 e 19 surgia um boteco, depois um pequeno comércio de cordas, uma gráfica de linotipo, um velho relojoeiro e então gritos e risadas vindos de uma moradia. Algo me fazia imaginar que as coisas e as pessoas estavam ali sob alguma mágica do tempo ou em um plano paralelo. Aos poucos, vi que eu não estava delirando.

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Síndrome de Tower

Voltei várias vezes a São Luís, incontáveis vezes, e, por fim, acabei morando lá alguns anos, ao sabor de sua intrigante originalidade. Entre outras coisas, aprendi que, na época da colônia, as correntes marítimas levaram o Maranhão a ter maior contato com a Europa e a África que com os portos brasileiros. E que só foi servido por rodovias transitáveis a partir dos anos 1960. Ouvi de muita gente que, na era do rádio de ondas curtas, se captava melhor o que vinha do Caribe que a programação das emissoras do Rio de Janeiro ou de São Paulo.

Sob vários aspectos, a capital maranhense é a rês que vive a se separar da manada. A cidade vem crescendo bastante e a população ultrapassou a margem do milhão. Seu centro histórico, Patrimônio Mundial reconhecido pela Unesco, continua com as mesmas feições e o místico movimento, além da quantidade tradicional e absurda de casarões caindo aos pedaços. Já a parte nova da cidade, do lado de lá do encontro dos rios Anil e Bacanga, ganhou edifícios ao redor dos shoppings, às margens da Lagoa da Jansen e no doce caminho do mar. Uma fábrica de cimento foi inaugurada com grande alegria, prevendo uma produção anual de 750 toneladas.

Há um aparente frenesi pelo conceito “tower”, multiplicado pelos anúncios de jornal e panfletos de esquina. Conhecimento guardado dos sobradões seculares, esses novos empreendimentos são revestidos de azulejo ou cerâmica, que protegem as fachadas contra os açoites da chuva e garantem temperaturas mais amenas nos ambientes internos. Mas nada que se compare à artesania e ao bom gosto dos construtores do passado. Boa parte dos edifícios lembra uma pipoca, que vira do avesso e revela o que estava dentro – no caso, o banheiro ou a cozinha. É a voga, quase todo mundo quer ter um apartamento desses, o que aproxima São Luís do gosto comum de outras capitais brasileiras.

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Como era de esperar, a Ilha do Amor não perdeu nem a essência nem a graça. Você cai num congestionamento e, no fim do funil, descobre que uma das pistas está calmamente dominada por uma carroça puxada por jumento (entrega de materiais de construção e pequenos fretes ainda são feitos dessa maneira). Sai a pé, escapa de ser atropelado por um táxi e dá de frente com um vendedor entoando o pregão de seu sorvete de coco. Passeia na Avenida Litorânea e vê que as dunas continuam margeando as praias, não erigiram ali nenhuma nova-iorquinha de frente para o mar. Atravessa a ponte, só vê lama e, na volta, leva um susto com a maré cheia, as ondas explodindo no concreto das colunas. No horizonte, a linha-d’água da imensa Baía de São Marcos, o sol se pondo na Ponta d’Areia, o desenho dos barquinhos na contraluz.

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Vibrando com as radiolas

Passei o Réveillon em São Luís, tive dificuldade em escolher o programa. Ia rolar festa com a Itamaraty, uma das mais poderosas radiolas do Maranhão, que prometia uma virada com muitas “pedras” num clube de reggae junto à Lagoa. Assim como as concorrentes, seus paredões de som servem à clientela com ênfase em agudos e graves. O corpo vibra, o público extasia-se. O hit parade não é mais jamaicano. Quase todas as melôs são produzidas na cidade mesmo, e cantadas em inglês – nem sempre compreensível, há que se dizer. Ídolos locais, como Dub Brown, Toty, Josy Valença, Mr. Clebber, Marco Roger e Jean Holt, tomaram o lugar de Gregory Isaacs, Max Romeo, Jimmy Cliff e outros que tocavam nas radiolas até os anos 1990.

Com um simples telefonema, fiquei sabendo que naquela noite haveria toque de candomblé na Casa Fanti-Ashanti, de Euclides Menezes Ferreira, o Pai Euclides. Herdeiro do conhecimento passado pelas velhas senhoras do tambor de mina, ele produz livros, CDs, protagoniza filmes e mantém uma disciplinada agenda de festas em seus terreiros. E, a menos de uma hora de barco, uma celebração sob as estrelas me aguardava na Ilha do Livramento, um lugar ainda 100% natural e rústico, do outro lado da baía, bem diante de Alcântara.

No meio da semana, um grupo de amigos me chamou para um encontro no Bar do Léo. Funciona num pequeno mercado de bairro, sem qualquer afetação ou glamour. À noite, quando fecham as bancas de frutas, verduras e frangos para abate, aquele cantinho resplandece. O dono, Leonildo Peixoto, coleciona música brasileira e internacional de todas as épocas, guarda e expõe LPs, fitas cassete, fotos e pôsteres dos períodos de ouro, além de rádios e televisores antigos, telefones do tempo de nossos avós, redes de pesca e outras peças que amealhou em anos e anos de pesquisa.

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Na cola do boi

Claro, alguns anos sem aparecer me colocaram em situações reservadas a completos forasteiros. Já não é tão fácil passar um domingão no Araçagy, a única praia livre de poluição, pois a fila de carros é desanimadora. Ficou perigoso andar no centro histórico à noite, quando uma horda de “noias” se dissolve solitariamente entre cantos escuros e escadarias.

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E a Lagoa da Jansen, que mereceu um projeto de urbanização, continua recebendo esgotos, ainda que os meios de comunicação insistam em afirmar que o mau cheiro é causado “por uma planta que dá no mangue”.

Ilha do Amor, dona de um conjunto arquitetônico e de uma cultura popular sem iguais, abençoa­da pelo encontro dos rios e do mar, porta de entrada ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (um dos mais lindos lugares do planeta), São Luís passa a impressão de ainda não ter acordado de verdade para o turismo. Tem atraído investimentos na hotelaria e os números revelam que há crescimento nas viagens de eventos e negócios. Mas a cidade está no abandono, com lixo em toda parte, praças e canteiros clamando por cuidados, buracos enormes nas ruas e um trânsito sem leis. Até os maranhenses, acostumados com o péssimo serviço público, estão reclamando.

Não importa, já marquei meu bilhete para junho. Como convém, o São João por lá é diferente, com brincadeiras de bumba meu boi no lugar do forró. Grupos de todo o Maranhão vêm à capital, em uma festa comparável à de Campina Grande, na Paraíba. Quero também colar no Chama Maré, pegar um tambor de crioula na Madre de Deus, comer pitomba apanhada do pé nos sítios do Turu, tomar catuaba com seu Tonico. Sou suspeito para falar, afinal me tornei meio maranhense, mas não trocaria São Luís por santo nenhum.

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