Saiba onde rezar, comprar e comer em Délhi, a capital da Índia
Como aproveitar a imensa megalópole para viver experiências reais na cidade
Índia, a nação que é a “mãe da história, avó da lenda e bisavó da tradição”, como descreveu o escritor americano Mark Twain, caminha sozinha desde que cortou o cordão umbilical britânico, em 1947. Um caldeirão com 1,2 bilhão de pessoas e 16 idiomas oficiais. E dá-lhe contradições: a maior democracia do mundo divide-se em milhares de castas, é milionária e miserável, tem gurus espiritualizados e materialistas, aeroportos moderníssimos e estradas caindo aos pedaços.
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Eles inventaram o Kama Sutra, mas proíbem o sexo no cinema, e têm mais celulares nas mãos do que banheiros em casa. Dona de uma sabedoria sedutora, cada vez mais solicitada por nós, ocidentais, a Índia já é o destino de wellness travel, ou “turismo de bem-estar”, que mais cresce no planeta, a 22% por ano.
Para traduzir as mais belas experiências indianas, traçamos um roteiro que começou na capital, Délhi. Passou pelo Rajastão e seus deslumbrantes hotéis-palácios. Deu uma olhada nos centros de espiritualidade, os ashrams. E terminou na rota dos cartões-postais clássicos, como o todo-poderoso Taj Mahal e a desconcertante Varanasi.
Saímos da viagem com a conclusão: a Índia é para ver não só de olhos bem abertos, mas arregalados. Ela testa a sua paciência e te ensina a tolerância. Dói, aperta, desparafusa. Mas visitá-la é ter a rara oportunidade de fazer uma viagem no tempo, de explorar uma das poucas culturas ancestrais a sobreviver. Namastê!
Délhi é um delírio — a caótica, intensa e megalomaníaca capital da Índia
A principal porta de entrada da Índia é um microcosmo perfeitinho do país. Bazares medievais e antigas fortalezas convivem com shoppings e prédios moderninhos. Ali vivem mulheres cobertas por panos coloridos, homens de barbas longas, jovens que estudam computação e falam “hey babe” com um turbante na cabeça – ou com um piercing bem dourado no nariz.
A capital abriga todas as embaixadas e, embora receba muitos estrangeiros, não é uma cidade megacosmopolita, como Londres ou Hong Kong. Délhi é muito indiana. E, por estar no norte do país, a um “pulo” de quatro horas dos principais destinões (Agra, onde fica o Taj Mahal, e Jaipur, a capital do Rajastão), é pouco valorizada pelos turistas, que, sedentos pela Incredible India do interior, passam por ela correndo, quase raspando. Quer um conselho? Reserve pelo menos três dias para desbravar a artéria mais importante do país.
Cada cantinho da gigantesca Délhi é repleto de detalhes fascinantes
A nova e a velha Délhi
Primeiro é preciso saber que são duas metades: a Velha Délhi, que guarda as heranças dos impérios pré-coloniais, e a Nova Délhi, onde os ingleses construíram, nas imediações da estrutura antiga, avenidas largas e ruas arborizadas. Esse segundo pedaço, meio britânico, meio hindu, surgiu em 1911 para substituir a antiga capital colonial, Calcutá, e segue como centro político da Índia independente e democrática.
Na teoria, essas duas fatias juntas formam um bolo ciclópico de 16,7 milhões de pessoas. Na prática, é impossível dissociá-las, até mesmo geograficamente – não há fonteiras entre elas. É melhor então enxergar tudo como uma coisa só: ela é Délhi, a Grande.
Além de ser um emaranhado de vias expressas interligadas a um bololô de becos milenares (ou seja, pouco convidativa para os pedestres), a metrópole tem atrações bem espalhadas. Dificilmente se traça um roteiro de exploração bairro a bairro. As grandes relíquias estão no norte e no sul, e os museus, no Centro. As compras? Em toda parte. E é assim que a coisa funciona.
Por isso, explore o metrô, que tem boa cobertura, ou vá de autoriquixá (o carrinho, também batizado de tuk tuk, é um clássico do Sudeste Asiático). Táxi também é uma boa, e muita gente contrata um motorista para rodar o dia todo por uns US$ 25. E o trânsito? Ah, o trânsito… Aquele fuxo hipnotizante de veículos que seguem por todas as direções, no qual a lei máxima é sentar a mão na buzina. Abstraia os ruídos e as famílias de seis pessoas que dividem a mesma moto. E se jogue. A experiência é surreal.
Em Délhi, abstraia o barulho e movimente-se
Dicas de hotéis em Délhi
Duas regiões podem ser transcritas como as clássicas da hospedagem: Connaught Place, um círculo de lojas bem no centro do mapa, que guarda nos arredores hotéis chiquetês (reserve pela internet; há descontos generosos), e o bairro de Paharganj, ao norte, próximo da linha de trem, uma espécie de camelódromo barulhento e onde está a maioria dos hostels.
A avenida principal é a Rajpath, a Champs-Elysées local, que não tem lojas, mas um clone do Arco do Triunfo, o Portão da Índia (só os vendedores de vidrinhos de bolhas de sabão por ali valem a visita). O traçado de mais de 3 quilômetros, com gramado dos dois lados, termina no Palácio Presidencial.
O edifício é um espólio dos britânicos, que investiram em “arquitetura inglesa clássica com motivos indianos”, como foi pedido ao arquitetão Edwin Lutyens, autor não só do edifício, mas do projeto de uma Nova Délhi inteira, empreitada que custou duas décadas para sair, o que fez Mahatma Gandhi, o herói de bengala da independência, chamá-la de “elefante branco”. Ali perto está a casa onde ele passou seus últimos 144 dias, antes de ser assassinado por um hinduísta fanático, em 1948.
Estou no paraíso?
Não. A Índia pede jogo de cintura. Os serviços são lentos, a energia elétrica cai, os trens atrasam. Para evitar transtornos, muita gente vai de excursão, mas dá para se virar por conta própria, sim. Para usar o metrô, compre o cartão que dá três dias de viagens ilimitadas (US$ 5).
A Délhi Tourism tem um city tour (US$ 1,50) em ônibus que saem diariamente de Connaught Place.
Hinduísmo: 330 milhões de deuses
Se a magnificência de uma cidade milenar se traduz por sua herança, é bom saber que aqui a maioria dos prédios tem estilo islâmico – leia-se colunas, arcos e cúpulas proeminentes –, legado dos antigos impérios muçulmanos.
O monumento mais famoso, a Tumba de Humayun, reabriu em 2013 após cinco anos de reformas. Com arcos de arenito vermelho e jardins luxuriantes, foi construída em 1565 para abrigar o corpo do segundo imperador mogol, dinastia que regeu o norte da Índia entre os séculos 16 e 17. Serviu de inspiração para o Taj Mahal, que seria erguido quase 100 anos depois.
Humayun: o Taj Mahal de Délhi
Outra relíquia é o Qutb Minar, o mais alto minarete “único” do mundo, que tem ao lado a Quwwat-ul-Islam, mesquita construída com pedras de 27 templos hindus demolidos. Só que os pedreiros não tinham o menor conhecimento de arquitetura islâmica. Imagina o resultado…
Pois é, os templos hindus. Perto de tanta herança árabe, eles até parecem estrangeiros em casa. Antes de tirar os sapatos, é bom entender-se com o hinduísmo, a religião que dita as regras para 80,5% da população. São 330 milhões – sim, milhões – de deuses.
Como dizia Sri Ramakrishna, um guru do século 19, “na Índia existem tantos deuses quanto os números de devotos”. O escritor inglês Geof Dyer definiu o hinduísmo como a Disney das religiões, a única que tem divindades azuis com muitos braços, para não citar os que são mezzo animais, como Ganesha, o homem-elefante.
Mas se familiarizar com o panteão hindu é fundamental, já que eles são onipresentes em estátuas, adesivos de carro, calendários de parede. É normal se estabanar e achá-los muito parecidos. (Dica: baixe o aplicativo Indian Gods para colar a qualquer hora.)
Um deus para cada devoto
Depois siga para o modernete Templo de Lótus, que ganhou prêmios de arquitetura por seu edifício que lembra a Opera House de Sydney. É lindo por fora, mas bem sem graça por dentro. Quem viaja com crianças deve chegar até o Akshardham, um parque temático high-tech, só que focado na espiritualidade e na cultura do país. Uma Disneylândia hindu de verdade.
Mas o templo que mais me marcou não é hindu – é sikh, a religião dos barbudos que não vivem sem turbante (se o atendente do seu hotel for sikh, ele combinará a touca com o uniforme). Seus santuários são famosos por servir refeições gratuitas em quantidades generosas.
Em Délhi, o templo fica perto do Connaught Place e é reconhecível de longe por sua enorme cúpula dourada. “É para mostrar onde tem comida”, disse-me um devoto de turbante azul-anil. Qualquer um pode ir lá comer com eles, desde que cubra a cabeça. Os sikhs são uma minoria de 1,9%, estimativa que soa estranha, porque eles estão em todos os lugares. Mas, em se falando de Índia, é um exército: 19 milhões.
Um dentre os quase 20 milhões de sikhs
Pimenta e pechincha
Antes de embarcar na culinária, saiba que ali o negócio é muito, mas muito bem condimentado. Não é à toa que, para ser um chef, um indiano precisa, antes, ser um bom masalchi (misturador de especiarias). As mais ardentes, o cravo-da-índia e a pimenta, unem-se às aromáticas, como o cardamomo.
Para evitar turbulências, recomenda-se que as primeiras refeições sejam feitas nos restaurantes dos hotéis, mais voltados ao paladar ocidental. E ninguém precisa se hospedar neles para isso.
O Chor Bizarre, no térreo do Hotel Broadway, é especializado na culinária da Caxemira, bem menos apimentada, e serve um famoso purê de lentilhas. O Hotel Taj Mahal tem dois segredinhos: o premiado The Varq, de cozinha local, e o japonês Wasabi by Morimoto, que tem um bacalhau negro com missô delirante.
Prato do Chor Bizarre
Passado o período de adaptação, pule dos hotéis para o aclamado Punjabi by Nature, com menus vegetariano e carnívoro. Ah, essa história de que tudo na Índia é veggie é balela, muitos lugares servem carne de carneiro e frango. Mas, sim, a carne de vaca, considerada sagrada, é banida do menu hinduísta em muitos estados (incluindo Délhi), e desconfie muito se você topar com algum restaurante que venda.
No velho coração de Délhi
Uma visita ao coração da Velha Délhi deve começar na estação de metrô Chandni Chowk, e, antes de se perder sob mil fos elétricos retorcidos, encare mais duas heranças islâmicas lado a lado, o Forte Vermelho e a Jama Masjid, a maior mesquita da Índia, que tem um pátio para 25 mil pessoas.
Depois negocie um passeio de riquixá (esse é no pedal) por não mais que US$ 3 e siga em fente. São ruelas inteiras dedicadas à venda de qualquer coisa, de vestidos de noiva que são tudo menos brancos a turbantes brilhantes (é normal que queiram te levar na loja do primo e na confeitaria do tio). Imperdível é provar o kebab do Karim’s, um pé sujo de 1913, onde normalmente torceríamos o nariz se não houvesse ali uma eterna fila de turistas. Vai com fé que é clássico.
E tudo acaba em compras. As “mina pira” no Dilli Haat, o complexo de tendas com quadros, caixinhas pintadas a mão, bolsas remendadas, pashminas de seda… Nada disso sai por mais de US$ 20, mas há que ser fera na arte da pechincha. Arrematei uma gravura psicodélica por US$ 20, quando o preço inicial era de US$ 300.
Mas o nome da vez é o Hauz Khas Village, que tem lojas, galerias de arte e cafés. O lugar é um burburinho meio hippie e meio hipster, que uma amiga definiu como uma mistura de Christiania, a vila autossuficiente da Dinamarca, com Moreré, na Bahia.
Chai: um clássico indiano
Os destaques são uma loja que vende pôsteres antigos dos filmes de Bollywood, o restaurante Naivedyam, bom para provar a típica thali, travessa de alumínio com arroz e vegetais, e o Kuzum Café, onde os viajantes pagam quanto quiserem por uma xícara de chai, o chá com leite e especiarias.
Foi lá que conheci Vicenzo, um italiano em sua sétima viagem à cidade, para onde volta sempre “porque nunca entende nada”. É que a Grande Délhi é assim: complexa. Ou milenar, mística e multifacetada. Como a Índia.
Qual é a língua?
São 16 idiomas e centenas de dialetos (dizem que a cada 100 quilômetros percorridos a língua muda). O híndi, derivado do alfabeto sânscrito, é maioria (41%). Sim, fala-se inglês, só que nem tanto – a língua dos colonizadores é apenas para quem pode estudar.
Revista Viagem e Turismo — julho de 2014 — edição 225
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