Brasileiro que percorreu a América a cavalo lança segundo livro
O relato de Filipe Masetti narra a viagem de Barretos (SP) até o Ushuaia, na Patagônia Argentina, e ele agora prepara o terceiro livo; leia a entrevista
Foram 25 mil quilômetros, 12 países e 8 anos. O jornalista Filipe Masetti Leite, praticamente um Odisseu, se tornou o primeiro brasileiro a percorrer todo o continente americano a cavalo. A jornada, concluída em 2020, era um dos grandes sonhos de infância do caubói, nascido no município de Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo. Filipe cresceu ouvindo histórias do suíço Aime Tschiffely, que cavalgou da Argentina até Nova York nos anos 1920.
Quase cem anos depois do cavaleiro suíço, Filipe tirou a sua própria expedição do papel. A viagem, iniciada em 2012, foi dividida em três percursos: o primeiro, do Canadá até Barretos, em São Paulo; o segundo, partindo de Barretos até o extremo sul da América, no Ushuaia; e o último, que o caubói finalizou em julho de 2020, do Alasca, nos Estados Unidos, até Calgary, no Canadá.
A jornada virou uma trilogia literária. A primeira parte foi publicada sob o título Cavaleiro das Américas, no qual Filipe narra os prazeres e desafios (entenda-se perigos do nível “escapar de ursos selvagens, atravessar montanhas e se deparar com uma gangue de narcotraficantes”) do seu percurso até terras brasileiras. Veja o livro na Amazon
O segundo livro, Cavaleiro das Américas – Rumo ao Fim do Mundo, uma jornada de 15 meses até a Terra do Fogo, na Argentina, acaba de sair em português e teve lançamento na conta do Instagram da Festa do Peão de Barretos. No momento, Filipe trabalha na escrita do terceiro livro, agora pela América do Norte, e sua história também ganhará versões para as telas.
Formado em jornalismo pela Ryerson University, de Toronto, Felipe contou à VT detalhes de sua jornada, dos momentos mais lindos aos mais aterrorizantes. Confira:
Quando decidiu fazer esta jornada, você já imaginava que iria documentá-la em um livro? Ou que se tornaria um filme?
Eu não imaginava a dimensão que ia tomar esse projeto, mas o meu sonho nasceu justamente através de um livro que o meu pai lia para mim quando criança. Por isso sei a importância de contar uma história que pode mudar a trajetória de um jovem, de alguém que está passando por um momento difícil. Como jornalista, sempre foi importante documentar a minha jornada em vários plataformas, em tempo real, através das redes sociais e com artigos para o Toronto Star, o maior jornal do Canadá, para o qual escrevo uma vez por mês.
Uma produtora dos Estados Unidos também comprou o projeto para que eu fizesse um seriado de televisão e um documentário. Isso foi muito importante porque ajudou a financiar a jornada. Sempre falo que eu usei a minha carreira, o meu trabalho, para pagar esse sonho.
Como foi o processo para o livro? Você começou a escrevê-lo depois de terminar o percurso?
A minha sorte foi que, durante a viagem, escrevi histórias para o Toronto Star e alguns blogs. O que eu não poderia publicar em tempo real, como a minha vivência com narcotraficantes, estava anotado em cadernos e também filmei a jornada inteira. Isso ajudou a não perder os detalhes que são importantes para a história. Quando terminei o percurso, juntei todo esse material e reescrevi em um linguajar mais literário.
O primeiro livro narra sua trajetória do Canadá até Barretos. Você pode nos contar uma das experiências mais inusitadas que passou nessa viagem?
Eu carreguei as cinzas da irmã de um senhor, que havia falecido meses antes. Ela era apaixonada por cavalos e por aventuras, então ele me pediu que eu levasse as cinzas comigo. Carreguei-as durante a viagem inteira e ela virou uma espécie de anjo da guarda, uma proteção, porque foram muitos momentos que achei que iria morrer ou perder os cavalos e, ao final, dava tudo certo. Quando voltei para a casa e aposentei os cavalos, espalhei as cinzas junto deles para que ela pudesse continuar os protegendo.
Mas foram muitas aventuras nesses 803 dias da primeira jornada. Encontrei um urso-pardo em Montana, no começo da viagem, e os cavalos salvaram a minha vida porque foi graças ao alerta deles que eu me atentei para o perigo. Também já tive que ficar hospedado com narcotraficantes, jantar com eles, dormir em suas casas – com todo mundo armado com AK-47, crianças de nove anos já com pistola na cintura.
E era só você e os cavalos?
Na primeira jornada, eu fiz quase tudo sozinho. Meu pai cavalgou comigo por três meses no México, minha namorada na época também acompanhou alguns trechos. Teve até um dia que mil amazonas e cavaleiros montaram e andaram o dia inteiro comigo. Então dependia de onde eu estava, mas quase o percurso inteiro foi apenas eu e os cavalos. Algumas vezes eu ficava cinco, dez dias sem ver uma pessoa, sem conversar com ninguém, sem internet.
Sempre falo que eu vivi um isolamento social de 8 anos na minha jornada, antes mesmo da pandemia do coronavírus. É difícil a solidão, mas também foi um aprendizado muito grande, foram momentos pra me conhecer e refletir. Foi quase uma terapia com os cavalos.
Como foi passar pela imigração dos tantos países que você cruzou em cima de um cavalo?
Foi bem complicado. Fora cruzar montanhas, desertos, com ursos e narcotraficantes, uma das partes mais difíceis foram as fronteiras. A burocracia, por causa dos animais, é muito grande, tem vários regulamentos. Sofri muito pra cruzar as 12 fronteiras, até porque as regras mudavam de país pra país: em alguns lugares, era obrigatório fazer quarentena, outros exigiam mais documentos, mais exames. Acabei cruzando muitos países de forma ilegal, com a ajuda dos narcotraficantes. Eu ia no guichê para carimbarem o meu passaporte e depois voltava para cruzar ilegalmente com os cavalos.
Logo nas primeiras páginas de ‘Cavaleiro das Américas’ você diz que escapou da morte várias vezes. Qual momento foi o mais aterrorizante?
Tiveram vários. No primeiro percurso eu quase perdi um cavalo ao atravessar um rio no México. No parque nacional de Yellowstone eu achei que não conseguiria cruzar com os cavalos pela falta de água e pelos caminhos longos e perigosos. Mas o pior momento da jornada inteira foi em Honduras quando eu presenciei um marido que tentou matar a mulher a tiros. Eu estava ficando na casa deles e achei que ele tinha matado ela e que depois ia vir me matar porque eu era a única pessoa que testemunhei a cena. Não dormi aquela noite e tenho pesadelos até hoje com esse episódio.
Quantos cavalos foram usados nessas três viagens?
Foram 11 animais, todos emprestados ou doados. Nunca comprei um cavalo. Antes de começar o percurso, eu não tinha nem uma ferradura, mas a minha jornada foi feita por meio da bondade e da ajuda de outras pessoas e dos meus patrocinadores, que disponibilizaram os animais, deram as selas, os cargueiros, todos os equipamentos.
Um dos momentos mais especiais aconteceu no Uruguai, onde o senhor que estava me ajudando me ofereceu cavalos da mesma raça usada pelo suíço que foi uma inspiração para mim e que cavalgou da Argentina até Nova York em 1925. Foi como se as nossas histórias tivessem se cruzado depois de quase cem anos.
O que você diria para as pessoas que tomam conhecimento do seu périplo e dizem: “tadinho dos cavalos”?
Esse tipo de pergunta só comprova a desconexão das pessoas com a natureza. Pergunte para veterinários especializados se o que eu fiz maltrata cavalos e eles vão dizer que não. Cavalo é um animal que sempre caminhou muito e eu ando com eles a uma velocidade de 3 km/h, no ritmo deles. Toda a importância do mundo é a saúde deles, eu só tomo água e como depois que eles beberem e comerem. Há todo um planejamento e treinamento em relação à caminhada para se habituarem ao ritmo da viagem. O cavalo nos ajudou a escrever a história da humanidade. Pessoas que cavalgam e conhecem cavalos nunca fizeram comentários negativos em relação a minha viagem. Vou mostrar uma foto (veja abaixo) que demonstra o cuidado que tenho com eles. Ela foi tirada alguns dias antes de aposentá-los no sítio da minha família. Eles cruzaram 10 países, caminharam 16 000 km e estão super saudáveis. Viajaram muito mais que muitas pessoas e não são coitados, muito pelo contrário.
Entre as paisagens que conheceu ao longo do caminho, qual foi a mais marcante?
Hoje eu digo que sou a pessoa mais rica do mundo pelos lugares que já vi. O que me vem à mente quando penso no lugar mais lindo que conheci é o Território de Yukon, ao norte da Canadá. É muito selvagem, vi muitos animais, desde veados, alces e ursos de todos os jeitos e tamanhos. Foi um lugar que, mesmo sendo difícil e perigoso, foi muito prazeroso. O Kluane Lake é o maior lago de Yukon, um lugar maravilhoso – e que agora está secando por causa do aquecimento global. E, ao lado, está o monte Logan, a segunda maior montanha da América do Norte. O cenário é lindo: um pico gigantesco, com um lago maravilhoso na frente.
A sua última jornada, entre o Alasca e o Canadá, terminou em julho deste ano. A pandemia chegou a impactar a viagem?
Muito. Todo mundo que estava viajando precisou parar e esperar o que iria acontecer. Tive a sorte de já estar no meio do caminho e acabei sendo o único cavaleiro de longa distância do mundo a conseguir terminar uma viagem este ano. Mas, com o Canadá em lockdown, chegou um momento que eu não sabia se conseguiria. Fiquei parado até o momento em que os parques nacionais reabriram. Pensei: é agora ou nunca. Montei no cavalo e fui, mas tive que mudar a minha rota. No final, iria atravessar um trecho com muitos ranchos e fazendas, mas acabei escolhendo um caminho no meio do nada. Não vi ninguém, era só eu e os cavalos.
Você pretende escrever mais um livro ou fazer uma nova viagem deste tipo? O que está planejando para o futuro?
Eu acabei de lançar o meu segundo livro, que conta a minha jornada do Brasil até o Ushuaia. Foi um best-seller no Canadá quando lancei em inglês. Agora estou escrevendo mais um, com a história do último percurso entre o Alasca e o Canadá. Então vai ser uma trilogia.
Sobre uma nova viagem, não penso em fazer outra. Essa foi a minha última jornada de longa distância. É muito sofrimento, muito perrengue. Mas tenho uma meta de ter um programa de televisão para contar a cultura do rodeio, do cavalo, da bota. Comecei a perceber nas minhas jornadas que, nos grandes centros, é quase tudo igual. Em Tóquio ou São Paulo, você vai ver McDonald’s, Burger King, as crianças dançando os mesmos vídeos do Tik Tok. Para conhecer a cultura de um país é preciso ir para as cidades pequenas em que as pessoas continuam vivendo da mesma maneira. Quero viajar o mundo com uma câmera e mostrar culturas distantes das nossas. Esse é o meu grande sonho: ser um Anthony Bourdain de chapéu.
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Para saber mais da história de Filipe, assista a entrevista que ele concedeu à Viagem e Turismo na ocasião do lançamento do primeiro livro, Cavaleiro das Américas: