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De Dharamshala a Varkala: uma viagem de paz e caos pela Índia

A Rishikesh dos Beatles, a terra do Dalai Lama, a Varanasi hinduísta, a iogue Goa e a Kerala do detox: um giro em busca da paz interior pela Índia essencial

Por Karla Monteiro
Atualizado em 30 jan 2019, 14h23 - Publicado em 15 fev 2017, 16h35

Ao aterrissar na Índia, seja em Nova Délhi, Mumbai ou qualquer outra cidade grande ou pequena, os ouvidos acordam. O país é regido por uma orquestra de buzinas que desorienta, irrita, enlouquece.

O trânsito indiano transborda o limite do significado dessa palavra. Riquixás, tuc-tucs, bicicletas, motos, carros, ônibus, caminhões, pedestres, vacas, macacos e, dependendo de onde você estiver, elefantes e camelos – tudo se mistura num estouro de boiada, disputando no buzinaço as ruas mal pavimentadas, sem atentar para conceitos tão modernos quanto mão e contramão.

Assim é o primeiro encontro com a Índia: uma cacofonia insana. O que te faz logo se perguntar como encontrar ali, naquele caos de sons, cheiros e cores – porque tudo tem cor, tudo berra, dos sáris das mulheres aos letreiros de neon -, a tão alardeada paz interior.

“Espere o inesperado”, disse-me um alemão na fila do táxi no aeroporto, na sua décima oitava viagem ao subcontinente indiano.

Sadhu está sentado em meio a múltiplos pôsteres e lembrancinhas, lendo um livro em pose de disciplina
O sadhu de Varanasi parece tranquilão, alheio ao caos (Rich Jones Photography/ Getty Images)
Pioneiros em Dashashwamedh Gha, na beira do Rio Ganges, travam comércio e conversas nos Ghats. O fluxo de pessoas e mercadorias é intenso, vindo da terra ou do mar, por meio de barcos.
Tudo acontece nos ghats do sagrado Ganges, em Varanasi (Cristian Baitg Schreiweis/Istock)
Dois macacos muito jovens brincam no peitoril de pedra de uma janela
Os macacos são fofos até atacarem o seu almoço (Pamela Joe McFarlane/Istock)

A viagem começa em Rishikesh, a gurulândia pop

Passado o susto desse revolto primeiro encontro e caindo na estrada, ou melhor, nos trilhos, já que a melhor forma de viajar pelo país é de trem, a Índia é de fato um infinito – de possibilidades e de surpresas.

Seguindo para o norte, cerca de 6 horas de trem partindo de Nova Délhi, chega-se ao epicentro, à terra prometida, à meca: Rishikesh.

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A cidade é hoje um shopping center espiritual. Ali começa o Himalaia. E ali de certa forma começou a peregrinação contemporânea à Índia.

Em 1968, auge do movimento hippie, os Beatles viajaram para lá. E espalharam para o mundo a fama do guru Maharishi Mahesh Yogi, o mestre da meditação transcendental, ainda praticada por nomes famosos como o cineasta David Lynch.

O ashram que hospedou os Beatles virou uma ruína. Mas nunca mais Rishikesh sairia da rota dos viajantes.

Entre falsos e verdadeiros gurus, entre sadhus de araque e outros comprometidos com a tradição hindu de abdicar da vida ordinária para se dedicar ao estudo dos textos sagrados, a velha cidade oferece uma experiência profunda de contato com as práticas indianas – e com a Índia real, de carne e osso.

Rishikesh fica num vale extravagantemente belo, cortado por um rio verde-água correndo das montanhas glaciais: o Ganges. Vertendo-se para cumprimentá-lo, templos e ashrams.

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A cidade é dividida em três partes: o Centro, Ram Jhula e Lakshman Jhula, marcadas por pontes suspensas.

Os sadhus estão por todos os cantos, com suas cuias de esmola, fumando o chilam, uma espécie de cachimbo em forma de cone, recheado de tabaco e haxixe. Os macacos também fazem parte da paisagem.

O comércio assemelha-se a um bazar medieval, com uma portinhola depois da outra, vendendo toda sorte de quinquilharias. A cidade é, resumindo, o encontro da Índia tradicional com a Índia New Age, o encontro dos mantras védicos com a cantora irlandesa Enya.

Homem de turbante fuma chilam, soltando uma trilha de fumaça de sua boca
Cena comum: gente fumando chilam ()
Contra uma estrutura de madeira estão penduradas máscaras de deuses indianos, com penteados altos e muitos brincos e colares
Outra cena comum: suvenires de Shiva (Denis Kastavenko/Istock)

Para quem busca tradição, dois ashrams se destacam. Em primeiro lugar, o do guru Swami Daynanda, um dos mais ilustres mestres de Vedanta, o estudo dos Upanishads, a última parte dos Vedas. O ambiente é austero, um mergulho na teoria e na prática de um monastério.

A segunda opção, talvez ainda mais radical, é o ashram do guru Neem Karoli Baba, considerado um santo do hinduísmo. Ele morreu nos anos 90, deixando uma sucessora: Siddhi Ma.

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O ashram tornou-se conhecido por ser o local de retiro de Steve Jobs. Hoje é frequentado por nomes como Krishna Das, o nova-iorquino que se tornou famoso cantando mantras planeta afora.

Em ambos os lugares, meditação, silêncio, teoria védica e refeições frugais e vegetarianas fazem parte do pacote. Os dias começam às 4 da madrugada.

Se a ideia for provar Rishikesh em doses dietéticas, a melhor opção é hospedar-se no Swiss Cottage, um aglomerado de pequenas guest houses no alto da montanha, no bairro de Tapovan, com vista privilegiada do Ganges.

E explorar o menu espiritual que, mesmo sem sair, ali já é vasto: aulas de ioga, de meditação, de culinária ayurvédica, de dança indiana e até mesmo de astrologia védica.

Uma espécie de Club Med da espiritualidade na versão low budget. De lá até Ram Jhula ou Lakshman Jhula são cerca de 10 minutos de riquixá.

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Em Ram Jhula fica o ashram Om Karananda, que também oferece hospedagem, mas onde a boa pedida são as vigorosas aulas de iyengar yoga da professora suíça Usha, conhecida só pelo primeiro nome.

Tão concorridas que os tapetes se embolam no salão, uma construção que avança sobre o Ganges, com gente do mundo inteiro.

O dia em Rishikesh termina invariavelmente à beira do rio, na estátua de Krishna, onde, às 6 da tarde, acontece o puja, a oração ao pôr do sol.

Os indianos se reúnem ali para tocar e cantar mantras, oferecendo cestos de flores à deusa Ganga. Para eles não é só um rio, e ali, a pouco quilômetros da nascente, o Ganges ainda é cristalino.

Em degraus de pedra localizados na margem do Ganges, miulheres se reúnem com bacias de pétalas de flores para jogá-las no rio, em oferenda
Ainda no Ganges, mulheres jogam flores em festival ()
Um molho de sinos ligados por uma corrente e amarrados a um pedaço de tecido, dependuram-se de um teto de madeira
Os sinos de um templo (Annapurna Mellor/Getty Images)

Dharamshala, terra do Dalai Lama, esbanja budismo e boas energias

Bem mais ao norte e a 1457 metros de altitude está Dharamshala, a terra do Dalai Lama. Ou pelo menos a terra que o acolheu, nos idos de 1950, quando a China invadiu o Tibete.

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Não há trens subindo o Himalaia, e existem duas opções para chegar a Dharamshala. A mais rápida para quem está em Rishikesh é retornar a Délhi e pegar um voo.

E a mais compensadora: embarcar num trem, viajar por cerca de 15 horas até Amritsar, no Punjab, onde é possível alugar um carro e seguir para Dharamshala.

Em Amritsar está o Templo Dourado. Sem dúvida o mais bonito monumento da Índia.

Ao contrário do Taj Mahal, que se tornou um ponto turístico vazio de significado, esse templo banhado a ouro vibra a energia dos mantras sikhs, um ramo do hinduísmo.

Pedestres e monges circulam por uma rua de terra, com alguma tendas de comércio instaladas esparsamente
E, se o hinduísmo cansar, o budismo pulsa em Dharamshala (Alison Wright/Getty Images)
Três mulheres vestidas em sáris sentam-se à beira do rio, observando a movimentação na outra margem, em volta do Templo Dourado.
O Templo Dourado, em Amritsar, é um Tj Mahal cheio de vida (Angad Singh Sodh/Getty Images)

Rodeada por picos gelados, infinitos, silenciosos, Dharamshala se pendura numa encosta, debruçando-se sobre vales de coníferas gigantes. As raízes budistas do lugar cujo nome quer dizer “dentro do templo” remontam ao século 7.

No começo do domínio do Raj, os britânicos moveram para lá regimentos para subjugar a cidade, então já hindu, e transformá-la em uma estação de verão para os ingleses.

Em 1905, um terremoto destruiu parte das construções. E em 1959, com a chegada do Dalai Lama, Dharamshala voltou às origens. A sensação é a de ter chegado ao Tibete – um Tibete com pitadas de Índia e altas doses de New Age.

Quem vai para Dharamshala na verdade nunca fica na cidade, tão caótica quanto qualquer outra cidade da Índia. Sobe para McLeod Ganj, onde está o templo do Dalai Lama, que pode ser visitado.

Ou vai para Dharamkot e Bhagsu, dois vilarejos distantes do Centro cerca de 20 minutos de riquixá. Em Dharamkot fica o Tushita Meditation Center, talvez o melhor lugar na Índia para se iniciar no budismo.

Dicas para você viajar de trem pela Índia 

Os ingleses deixaram 63 000 quilômetros de ferrovias na Índia e, descontadas as estações que de tão confusas se tornam até divertidas, o sistema funciona. Um trem indiano reproduz o sistema de castas na escala ferroviária. São seis classes. A primeira nunca está disponível, embora ninguém saiba lhe explicar o porquê. Em seguida a ordem é: segunda classe A.C., quatro camas e ar-condicionado; terceira A.C., seis camas, também com ar; segunda, quatro camas, sem ar; terceira, seis camas, sem ar; e, por fim, a geral, em que se viaja amontoado, seguindo a lógica indiana que permeia tudo de que sempre cabe mais um.

Morte e caos em Varanasi

Pegando um trem em Nova Délhi em direção a Calcutá, depois de cerca de 18 horas de viagem se chega a Varanasi, uma das mais antigas cidades do mundo, muitas vezes destruída e reconstruída por invasores ao longo de seus 5 mil anos de história.

Um aviso: não entre em pânico. Nas vias principais não há nenhuma sinalização, calçadas, faróis, e, por elas, o estouro das buzinas atinge o grau de hospício.

Envolvendo tais ruas, um labirinto de becos tão estreitos que, ao topar com uma vaca ou um cortejo fúnebre, que ali brotam de todos os lados, a única salvação é adentrar uma das portinholas, onde panelões fervem o chai ou fritam samosas.

Envolvendo o caos, o Ganges. Ele é o ator principal do espetáculo.

Ao longo do rio, tudo – absolutamente tudo – acontece: mulheres lavam roupa, crianças jogam críquete, mendigos pedem esmola, sadhus meditam sob sombrinhas em forma de cogumelo, peregrinos mergulham nas águas imundas, turistas vagam assombrados com câmeras nas mãos e, sobretudo, corpos são queimados em piras que crepitam do amanhecer até o pôr do sol.

Morrer em Varanasi significa, na tradição hindu, pôr fim ao ciclo penoso de renascimentos. Ali, à beira daquele rio, a morte se despe de qualquer pudor. É pública; você pode estar ali simplesmente batendo uma foto do pôr do sol enquanto uma alma se vai.

Rumo ao sol

Quem não estiver disposto a encarar dias e dias na cabine de um trem, experimentando o microcosmo da Índia, o caos em movimento, pode pegar um voo em Varanasi rumo ao sol.

A metade tropical do país, com praias que lembram a Bahia, começa em Goa e segue para o sul, para o estado do Kerala, terra natal da medicina ayurvédica, a medicina tradicional e natural da Índia, que se baseia na limpeza do corpo.

Goa passou por três colonizações. Primeiro vieram os portugueses, que ficaram lá até 1961. Ainda se encontram pessoas que falam português.

Nos anos 70 chegaram os hippies, fundando comunidades alternativas. E, nos anos 80 e 90, desembarcaram as raves e a cultura da música eletrônica.

Entre as praias festivas de Goa, Anjuna, que já foi epicentro do burburinho, é hoje o recanto da ioga. A shala (escola) mais badalada é a do mestre alemão Rolf, radicado na Índia desde a década de 60.

Discípulo de Pattabhi Jois, o guru da ashtanga yoga, popularizada por Madonna, ele conduz aulas e cursos que atraem gente de todo o mundo.

Mulher faz pose de ioga ao lado de uma construção aparentemente abandonada. Ela está contra o pôr-do-sol, de forma que suas feições não estejam visíveis
A ioga em Kerala (Room RF/ Getty Images)
Uma loja simplória de chá, de portas abertas, com grandes caixas de diferentes sabores de chá, todas elas com a palavra "TEA" escrita em letras garrafais
A casa de chá com especiarias (Annapura Mellor/ Getty Images)

No Kerala, o mais novo point é Varkala, um balneário turístico, distrito da cidade de Trivandum.

A cada metro, escolas de ioga, casas de massagens ayurvédicas, clínicas de detox, aulas de meditação. A dica é experimentar. Com bons hotéis e estrutura de restaurantes adaptados ao gosto ocidental, Varkala – pode-se dizer – são férias da Índia dentro da Índia.

Com a vantagem de estar a menos de 1 hora de carro de Amritapuri, onde está o ashram mais badalado de todo o subcontinente: o Mata Amritanandamayi Math.

O local, à beira-mar e rodeado por um coqueiral a perder de vista, oferece visitas diárias ou workshops de variadas durações, e a viagem à Índia ainda termina com um chamego da Amma, a “guru do abraço”.

praia quase vazia de sinais humanos embaixo de um céu sem nuvens. Não há muita areia e os coqueiros existem em abundância
Varkala, o novo point do Kerala, no sul (Marina Pissarova/Istock)
Um templo alto, diversas ramificações verticais e esculturas de cavalos empinados na parte de cima da entrada. Um número de pessoas se senta nos degraus do templo, ocupando-os quase inteiros.
O templo de Amma, a guru do abraço (Divulgação)
Pessoas em vestes cerimoniais realizam ritos em frente a uma multidão, em um ghat na beira do Ganges
Uma cerimônia à beira do Ganges (CR Shelare/Getty Images)

O guru antiguru

J. Krishnamurti foi o guru dos que não aceitavam a ideia de guru. Descoberto no sul da Índia, quando menino, foi elevado ao posto de messias que lideraria a Sociedade Teosófica. Em idade para assumir, renunciou a tudo e passou a pregar a liberdade espiritual, defendendo que cada um tem de descobrir seu caminho para Deus. Ele morreu em 1986, mas sua Fundação Krishnamurti passa a mensagem por meio de palestras e workshops pilotados por PhDs em física, estudiosos de física quântica e filósofos de universidades internacionais. A fundação está à beira do Ganges, mas a 40 minutos do Centro de Varanasi, ou seja, um oásis. Há bangalôs confortáveis para ficar e restaurante vegetariano.

Como é a rotina dos retiros de silêncio na Índia

Os retiros de silêncio de dez dias ficaram genericamente conhecidos como Vipassana, mas as técnicas variam de centro para centro. No Tushita, em Dharamshala, a rotina é dura. Veja a programação:

6h30 Despertar ao som de gongos
6h45 às 7h30 Meditação
7h30 Café da manhã
9h Filosofia budista
10h30 Ioga
Das 12h às 14h Almoço, seguido de Karma Yoga, que significa limpar banheiros, arrumar os quartos ou ajudar na cozinha
14h Grupos de discussão
15h Chá
15h30 Mais aulas de filosofia budista
17h30 Meditação guiada
18h15 Jantar
Das 19h30 às 20h30 Mais meditação

Sim, a única hora do dia em que se pode falar (sobre budismo) é durante os grupos de discussão.

Texto publicado na edição 254 da revista Viagem e Turismo (dezembro/2016)

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