Bélgica: Magritte, HQs e chocolate em Bruxelas
A capital tem uma cozinha inventiva e é terra de Tintin, Audrey Hepburn, surrealismo, sax e do chocolismo
Consta que o surrealismo é o movimento artístico que prima pela expressão espontânea do pensamento, pela prevalência do desejo, da renovação dos valores. Ideias que casam com a experiência que se tem em Bruxelas, núcleo do processo criativo do mestre surrealista René Magritte (1898-1967), um destino deliciosamente surreal que promete e merece habitar cada vez mais a pauta turística dos brasileiros.
Magritte pega de supetão, atinge a alma de quem adentra seu Musée Magritte, instalado numa edificação neoclássica na central Place Royal. Magritte afaga ao evidenciar, em telas como Os Amantes (1928), a devoção longeva pela esposa, Georgette Berger, na contramão dos hábitos costumeiramente dionisíacos daqueles artistas. Magritte provoca com o cachimbão freudiano em A Traição das Imagens (1929).
Enfim, o legado do pintor é providencial para começar a descrever a vivência na capital de Flandres, da Bélgica e da União Europeia, além de sede da Otan, cujo novo prédio foi inaugurado em maio de 2017. Essa Bruxelas por vezes subestimada, mas que tem muito a oferecer.
Assim como em Antuérpia, a cidade é facilmente desbravada a pé. Conta também com um sistema eficiente e interligado de ônibus, metrô e tram, o bonde, que, por circular na superfície, é excelente para observar o solo bruxelloise durante o deslocamento.
Mas o trem acaba cobrindo a maior parte da localidade. Por exemplo, para continuar a imersão no Magritte, pegue o vagão S10 na plataforma 1 da Centraal Station, próxima do museu já citado, com destino ao suburbano bairro Jette para conferir seu outro museu, La Maison-Musée René Magritte. Funciona na casa onde o artista morou com a mulher durante 24 anos.
De volta ao Centro, para finalizar o assunto, soa um pouco à Meia-Noite em Paris ir ao botequim preferido de Magritte e dos amigos surrealistas, o La Fleur en Papier Doré, que resiste na Rue des Alexiens com um jazz fino.
Que sax
Por falar na área central e no jazz, o ritmo perdura em bares como o La Fleur por um motivo considerável. Foi em Bruxelas que Adolphe Sax (1814-1894), inventor do saxofone, estudou e conquistou fama como fabricante de instrumentos, profissão da mãe.
Invista uma manhã inteira para viajar na saga de Sax no Musee des Instruments de Musique, o MIM.
Depois, desça a rua do MIM em direção ao burburinho. Na esquina da Rue de l’Etuve, um contingente de turistas está com câmeras em punho, embora, à primeira vista, não haja evidência que justifique a muvuca. Mas há, desde 1618, o Manneken Pis, a diminuta porém legendária estátua de bronze do menino a urinar a céu aberto.
O infante de 60 centímetros é um herói, segundo o folclore: irrigou o pavio de uma bomba posta no prédio da prefeitura. Seguindo a tradição, uma vez por semana e durante visitas ilustres, Manneken é fantasiado – são mais de 850 figurinos, trajes como os de Mozart, Elvis, Mandela e outros.
Grand-Place
Manneken cumprido, hora de se embrenhar no fluxo de gente até descortinar a Grand-Place, um lugar daqueles inesquecíveis, cultuado, dourado. Certamente, uma das mais bonitas praças do planeta, tese defendida por escritores como Victor Hugo e Jean Cocteau.
Uma ventania de beleza que a garoa não dirime. Bombardeada em 1695 pelos franceses, ela, que é o maior cartão-postal do país, ressurgiu apoteoticamente com suas construções de inspiração renascentista – e uma ovelha negra, a gótica prefeitura, com tapeçaria e esculturas belíssimas a serem contempladas lá dentro.
Se quiser dar um tempo por lá e o orçamento permitir, invista em restaurantes como a Brasserie de l’Ommegang e o La Maison du Cygne, estrelado no Michelin identificado por um cisne na porta, um refinado reduto de apreciáveis frutos do mar e pescados. Vindos do frio Mar do Norte, são servidos em tabelinha com cogumelos.
Ambos os estabelecimentos são velhos QGs de Karl Marx, que não tinha grana para gastar por lá, então ficava fumando charuto, bebendo vinho e papeando com Engels. Certo é que, em todo ano par, voluntários montam um tapetão de 1 800 metros quadrados no meio da Grand-Place, com begônias e outras espécies que totalizam 600 mil flores, sempre em agosto para celebrar a Assunção de Maria.
Tintin por Tim-Tim
A Grand-Place é um espetáculo, como os vistos no vizinho Bozar, teatrão art déco com espaço para a orquestra nacional, exposições e performances. Um palácio criado por um arquiteto-símbolo da Bélgica, Victor Horta (1861-1947), pioneiro no estilo art nouveau.
Dali, melhor é seguir a pé, meninada e adultos, e se deixar levar pela fantasia incrustada na cultura pop belga, a das histórias em quadrinhos. Gente que cresceu com os mantras do Papai Smurf nos desenhos da turma azul, idealizada por Peyo. Ou que já se empolgou com Milu, Capitão Haddock e companhia em As Aventuras de Tintin, o repórter viajante criado pelo cartunista Hergé.
Os dois hits belgas dos desenhos, além de outros, são o mote do Comic Strip Center, também conhecido como Centre Belge de la Bande Dessinée. Lá, tem manuscritos, obras originais, réplicas dos personagens e da casa dos Smurfs, tem até o mundo Asterix, além de sala de leitura e, claro, loja com suvenires – num prédio art nouveau de Victor Horta.
Os preços na loja do Comic Strip Center vão na toada da vizinha La Boutique Tintin. Existe ainda um outro templo dos desenhos ali do lado, a Maison de la Bande Dessinée. Se tudo isso não for suficiente para saciar sua veia HQ, desloque-se 30 quilômetros até Louvain la Neuve, terra do Musée Hergé, dedicado ao criador do Tintin.
Desde a década de 1990, esses personagens vivem em grafites pelos muros. A gente comprova num passeio pela região da Rue du Marché, a 300 metros da Grand-Place, ou a uns 5 quilômetros além, na Comic Book Route dos bairros Laeken e Auderghem.
Gastronomia
Até a garotada pira no Atomium, monumento futurista de 108 metros enxergado de muitos rincões. “Prédio mais bizarro da Europa”, segundo a CNN, é um átomo ampliado em 165 bilhões de vezes.
Outra coisa que cativa todas as idades é a comida. Ela ultrapassa as associações a waffle, batata frita e couve-de-bruxelas. Fora as iguarias do mar já mencionadas, seduzem as endívias enroladas no presunto ao molho bechamel, os aspargos brancos gratinados, os salsichões, o garnalen (camarão pequeno, salgadinho) e os cozidos como o waterzooi, uma galinha ensopada com creme de leite e legumes. É um país com 129 restaurantes estrelados no Michelin que vai fundo no caldeirão de possibilidades gastronômicas. E a valorização de produtos locais, trabalhados em releituras, é frequente.
Ainda no Centro, na estação ferroviária Brussel-Kapellekerk, existe muita inventividade no Recyclart. Sem fins lucrativos, é um misto de café, bar e restaurante onde é possível comprar artigos em madeira e metal projetados com materiais reciclados. Rolam, ainda, festas, shows, mostras fotográficas e palestras sobre arquitetura, design e espaço público.
Choco e Benjor
Praticamente no Centro é o Sablon, bairro a cinco minutos da Grand-Place com um eixo chocolateiro, a Grand Sablon. Essa praça justifica a fama do país, plantada com as sementes de cacau vindas das colônias europeias no século 17. Fama que cresceu em 1912, quando Jean Neuhaus aperfeiçoou e popularizou o praliné, bombom geralmente recheado de fondant.
Aí nasceu o chocolismo: o belga ingere mais de 6 quilos/ano. Com 1,139 milhão de habitantes, Bruxelas reúne uns 500 chocolateiros. Muitos deles demonstram a produção em caldeirões nas lojas. A Grand Sablon concentra as melhores, de onde exalam nougats, ganaches… Tem Frederic Blondeel, Wittamer, Pierre Marcolini, Leonidas (com versões comestíveis de Manneken Pis) e a aclamada Godiva.
Prefira comprar na Sablon à Grand-Place, que tem menor custo/benefício – exceção é a Neuhaus, loja da família que implantou o chocolismo. Ou desça 2 quilômetros até a Zaabar, chocolateria com cursos, se aprende até o valor do cardamomo do Malabar nas receitas.
Ou vá até a Neuhaus de Ixelles, região multiétnica cheia de sebos e moda. É um sabido reduto de artistas: Audrey Hepburn, a Bonequinha de Luxo, cresceu no número 48 da Rue Keyenveld; o escultor Auguste Rodin ocupou vários endereços e por aí vai.
Universitária, Ixelles tem bares com música ao vivo, coisa que Jorge Benjor fez por ali. Daí vem a música Ive Brussel, tributo de 1979 a Ive, uma fã de Brussel (Bruxelas, em flamengo) que o hospedou e por quem ele gamou. Não que você busque amor, mas, como na canção, se sentirá acolhido em Bruxelas, mesmo que chegue lá como Jorge Benjor, “desconfiado, sem jeito e quase calado”.
De abril a junho, na primavera, o clima é agradável e as paisagens atingem o ápice. De julho a setembro, os turistas chegam em peso para os festivais e os preços sobem um pouco. Ainda que chuvoso, o outono, de setembro a novembro, deixa os bosques alaranjados. O inverno é rigoroso, venta muito – vale para quem procura os mercados de Natal de Bruxelas e Bruges.