Calçadas: o maior desafio pra quem viaja de cadeira de rodas
Eu perco o chão, eu não acho as calçadas adequadas em qualquer lugar, mas não deixo de rodar por aí de cadeira
“Uma conduta irrepreensível consiste em manter cada um à sua dignidade sem prejudicar a liberdade alheia”. Voltaire morreu lá em 1778, mas a frase do filósofo francês é um manifesto vanguardista de um cadeirante, como eu, e de quem anda de muleta, bengala, prótese ou não enxerga. A pensata é na medida para divagar sobre as calçadas do mundão.
E não estou advogando apenas em causa dos 23,9% da população varonil com alguma deficiência. Uma calçada minimamente asfaltada e plana também facilita a vida daquela sua tia de Minas cuja artrose a impede de vagar com a destreza dos tempos da brilhantina. Ajuda até o turista com suas malas, quem engessou a perna pré-voo, uma galera.
Mobilidade tem a ver com um tanto de gente, mas, claro, o cadeirante viajante sente mais o solo. Fica de olho no peixe, no gato e no cão, animais que amo, e que espalham em demasia seus respectivos números dois pelo chão em Buenos Aires. O solo portenho é um campo minado, cheio de vidros ameaçadores aos pneus e buracos que podem provocar quedas.
A coisa não melhora muito na Colômbia, de uma Cartagena com meios-fios de estapafúrdia altura, e no libertário Uruguai, onde uma rampa é artigo mais raro que sanidade na cachola de Trump. Nesses casos, o jeito é ir pelo meio da rua.
Antítese é o Chile e seu programa Santiago Caminhável: o país está planificando suas calçadas e a mania se espalhou por 48 municípios, algo muito visível sobretudo na capital e em Viña del Mar. Não tem segredo: é um asfalto plano, cimentão mesmo, verdadeira festa da cidadania, com rampas adequadas de se encarar – por vezes, a calçada se nivela à pista de carro. Maravilha, é o cadeirante sem receio, sem siricutico.
O Chile alcançou o padrão de Nova York, Canadá, Berlim, cujas rotas dos pedestres são um tapete, assim como na Europa em geral, claro, desconsiderando alguns lugares mega-históricos, que preservam o calçamento de pedra, às vezes na subida – aí a gente pede ajuda.
Na Itália, por exemplo, a coisa oscila. A siciliana Palermo me recebeu com um belo chão, rampas e incidência de banheiros apropriados para os disabili – parece que a desalmada máfia quer que acidentados e idosos circulem. Só não me pergunte da encantadora Siena, palio duro na relação solo/topografia.
No Brasil, costumo escutar de estabelecimentos responsáveis pelas calçadas e do poder público coisas como: “ah, mas é muito antigo pra ter essas facilidades”. Então, cara-pálida, o que dizer da turca Éfeso, que data de 1 000 a.C. e tem pallets como calçamento e como rampas para possibilitar o ir e vir? E olha que eles ainda estão escavando o chão para descobrir mais ruínas do Império Romano, mesmo assim não excluem ninguém.
“Ah, mas a calçada da Avenida Paulista foi asfaltada”. Ok, mas, na hora de descer ou subir as esburacadas e inclinadas rampas, o risco de vida é iminente, ainda mais no quarteirão do Masp, aquele exemplo de urbanismo provocador esculpido por Lina Bo Bardi. E o resto da cidade? E o resto do Brasil?
Diria Luis Fernando Veríssimo, a única pessoa livre, realmente, é a que não tem medo do ridículo. Daí o barato de não deixar de ir a lugar algum, por mais inóspito às rodas, como aquela trilha na mineira Serra do Cipó que fiz sentado num carrinho de mão. Caindo ou não, a Maracangalha é logo ali.
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