“Tenondé Porã” significa “futuro melhor”. É o nome de uma Terra Indígena (TI) que está na região de Parelheiros, no extremo sul da capital paulista, e avança sobre as cidades de São Bernardo do Campo, Mongaguá e São Vicente. Dentro da TI, existe uma aldeia (tekoa, em guarani) com o mesmo nome.
A aldeia Tenondé Porã tem aproximadamente mil habitantes e, junto com a aldeia Krukutu, é o território original das outras 13 aldeias que compõem a TI. A demarcação original, em 1987, abrangia somente 26 hectares para quase 2 mil pessoas. O território atual, com 15 mil hectares, foi conquistado anos mais tarde, em 2016.
Há oito anos, Werá Mirin saiu de uma comunidade indígena no Rio Grande do Sul e foi com sua família em direção à aldeia Tenondé Porã, onde mora a maior população Guarani do Brasil. Hoje, aos 35 anos, ele é um dos guias do passeio na aldeia feito em parceria com a agência Vivalá, de São Paulo.
O passeio proposto é um roteiro cultural no modelo de turismo de base comunitária. Esse tipo de viagem está focado em gerar o menor impacto ambiental e social possível no território e colocar as comunidades locais no centro de todas as decisões. É uma forma de conhecer diferentes modos de vida a partir da voz dos próprios povos originários.
O dia começou na Estação Ana Rosa, da linha 1 do metrô de São Paulo. Nos encontramos depois de passar a catraca, às 11h, e partimos às 11h15 em um grupo de 15 pessoas, mais os dois guias da Vivalá.
A viagem até Parelheiros, o bairro onde fica a aldeia, foi feita em um ônibus de turismo. Dentro do veículo, me chamou a atenção como nosso grupo era quieto, o som do motor e do ar condicionado foram os únicos sons que eu escutei a maior parte do tempo.
Toda a região de Parelheiros está em uma área de proteção de mananciais com focos de Mata Atlântica. A vegetação começa a dar as caras na Avenida Senador Teotônio Vilela e toma conta da estrada de terra em direção à aldeia Tenondé Porã, onde chegamos às 13h30. O silêncio que tinha feito parte do caminho foi aconselhado assim que descemos do ônibus: ali, a escuta era a palavra de ordem.
Na tekoa, as estradas são de terra e diferentes espécies e árvores brotam do chão para todo lado. O canto dos pássaros só era interrompido por um recorrente barulho de trem da ferrovia Itirapina-Cubatão.
O passeio não poderia começar de forma melhor: Werá Mirin nos recebeu e guiou até um delicioso almoço tradicional com ingredientes orgânicos e cultivos locais. Em cumbucas e pratos, pudemos nos servir à vontade de feijão preto com canjiquinha, frango com batata e farinha de mandioca.
Coloquei uma quantidade modesta em um prato e me sentei na varanda da casa, onde comi com o grupo de viajantes. O tempero era suave, mas muito saboroso. Fez total diferença saber que eu estava comendo algo que nunca chegou perto de agrotóxicos. Não resisti e tive que repetir. De sobremesa, fatias de melancia muito vermelhas e doces que tinham sido colhidas 15 dias antes.
O cardápio é sempre o mesmo, com exceção da sobremesa, que varia de acordo com a colheita. Quem tiver alguma restrição alimentar, pode informar a agência para que ela seja levada em conta na preparação do almoço.
Depois de todos estarmos satisfeitos, Werá nos guiou até a casa de rezas, uma construção de pau a pique com chão de terra batida que é o lugar mais sagrado da aldeia. Lá são feitas cerimônias de cura, rituais de fortalecimento da espiritualidade e a passagem do conhecimento entre as gerações.
Entrando, a energia do espaço já dizia que ele era sagrado. Lá dentro, os olhos demoram a se acostumar com o escuro, já que apenas duas fracas lâmpadas amarelas iluminam o ambiente.
Sentamos em banquinhos encostados na parede e ficamos em silêncio esperando Tiago Karai conversar conosco sobre o modo de ser (nhandereko, em guarani) do povo Guarani Mbya. A conversa durou 40 minutos e passou por vários assuntos.
Tiago começou nos contando que quando um bebê Guarani Mbya nasce ele é registrado com um nome no cartório por obrigações legais e, depois de um ano, recebe um nome espiritual pelo qual é chamado dentro da aldeia. Werá Mirin, por exemplo, foi registrado como Alcides Escobar Campos.
Dentro da aldeia, há um posto de saúde, um centro cultural e uma escola. Mas a educação na Tenondé Porã é diferente porque os Guarani defendem que a sala de aula é o espaço total da aldeia e não apenas o ambiente tradicional com carteiras e lousa.
Os professores vão até a aldeia para dar aulas e só têm permissão dos moradores para fazer isso duas vezes por semana. Nos demais cinco dias, os pais são responsáveis pelos ensinamentos.
Uma das falas mais interessantes de Tiago foi sobre a demarcação de terras. De acordo com a filosofia de vida dos Guarani, não existe propriedade privada. Não à toa, nenhuma das casas de alvenaria com telhado de barro são separadas por cercas. Apesar disso, depois de anos de luta pela terra, os moradores sabem que se não defenderem legalmente seu território, não terão direito algum sobre ele.
O espírito comunitário faz parte da organização dentro da Tenondé Porã, que não possui caciques. O sistema de cacicado é visto pelos moradores como uma herança repressora da ditadura militar, quando foi implementado. Assim, não há um único chefe responsável pela aldeia, mas sim grupos de lideranças com homens e mulheres que tomam as decisões.
Depois de ouvir Tiago falar, minha cabeça estava fervendo no melhor sentido. Fiquei muito envolvida imaginando futuros possíveis e modos de vida alternativos ao frenético capitalismo que vigora da aldeia para fora.
Com tudo isso em mente, seguimos Werá para fora da casa de rezas em uma trilha de 20 minutos descendo a aldeia. Primeiro, paramos diante de uma plantação de milho e banana. Toda a agricultura praticada na aldeia é de subsistência, eles não vendem nenhum dos cultivos. A renda vem de empregos em órgãos da TI, como na escola e no posto de saúde, de programas sociais governamentais e do artesanato.
Seguindo mais para baixo, a nascente de um rio forma um lago com água geladinha em que fomos convidados a colocar os pés. No entorno, a Mata Atlântica disputa espaço com antigos eucaliptos. Não há asfalto no caminho até lá e as estradas estavam com lama. Mesmo assim, a caminhada não apresenta desafios para quem não tem o costume de fazer trilhas, o que era o meu caso.
Subimos de volta até a casa de rezas e fomos em direção a outra plantação, agora de batata, mandioca e milho. A monocultura passa longe dos cultivos e nenhum deles é feito com sementes transgênicas.
Nossa última parada foi na casa de artesanatos. Dá para se esbaldar entre as infinitas cores de brincos, anéis, chaveiros, pulseiras, além de instrumentos musicais e esculturas de madeira. Durante a trilha, Werá estava esculpindo uma onça em miniatura enquanto nos guiava e que depois seria colocada à venda ali.
Fui mais comedida nas comprinhas e saí só com um chaveiro de borboleta e um livro que fala sobre o cultivo de nove tipos de milho na aldeia – ali também tem a receita do feijão preto com canjiquinha que comemos no almoço.
Antes de ir embora, tomamos café da tarde com chá de erva cidreira e um petisco delicioso chamado tipá. A receita é simples – leva apenas farinha, água e sal -, mas deliciosa. O sabor se assemelha ao de massa de pastel e eu, sinceramente, perdi as contas de quantos eu comi.
Nossa última atividade foi acompanhar Werá enquanto ele cantou uma música sagrada para nós. Recebemos chocalhos para balançar no ritmo da música e do violão tocado pelo guia.
Saímos da aldeia às 18h30 e duas horas depois estávamos de volta na Estação Ana Rosa. O silêncio da ida não se repetiu na volta, com todos os viajantes eufóricos comentando sobre o passeio.
Quem leva
A Vivalá é uma agência de turismo sustentável criada em 2015. O roteiro cultural para Tenondé Porã custa R$ 285 e pode ser comprado no site. A comunidade indígena fica com 40% deste valor. O passeio é feito de 15 em 15 dias, aos sábados, com um mínimo de três pessoas um máximo de 30. A equipe faz alterações nos roteiros para pessoas com dificuldade de locomoção.
Para espíritos aventureiros, aos domingos, a agência faz um roteiro focado em trilhas por Tenondé Porã, da aldeia Kalipety até Yrexakã. Os viajantes realizam um percurso de 10 quilômetros em meio à Mata Atlântica, com paradas para banho de rio. Essa expedição também custa R$ 285 e pode ser adquirida no site.