Geórgia: história, passeios e atrações de Tbilisi
Encantadora e pouco conhecida pelo Ocidente, a capital georgiana fica debruçada sobre um precipício e deixou para trás os tempos soviéticos
A água é pesada. Lança-se lá de cima, cai ao longo da cascata e afunda-se com toda a força numa revolução de espuma. É como um descarregamento de algo sólido, pedras talvez, é como um rugido de trovões constantes, como uma voz da terra ou uma zanga de Deus. O espetáculo é assustador e belo. Há jorros d’água que congelaram no meio da queda, permanecem brancos e suspensos, como esculturas delicadas. Há também gelo que copiou as formas das rochas, cobrindo-as, suavizando os seus contornos. Detenho-me perante essa cascata como se, de repente, o mundo inteiro ganhasse grandiosidade. Cheguei aqui caminhando ao longo de um pequeno curso d’água.
O ar da manhã brilha, tingido levemente pelo cheiro de enxofre, a que já me habituei. Por uma passagem bem nivelada, segui na direção oposta à água. Os dois lados desse caminho são altas paredes de terra, cortadas abruptamente como se uma faca gigante tivesse descido das alturas para mostrar suas diferentes cores e camadas. É preciso levantar bastante o rosto para conseguir ver uma tira de céu. Lá no topo, a dezenas de metros, as casas chegam até a última linha desse morro, penduram varandas sobre o precipício. Do outro lado, também lá em cima, raízes de grandes árvores contornam rochas em direção à água.
Essa natureza encontra-se na zona de Abanotubani, pouco depois dos banhos sulfúricos. É para ali que a água da cascata vai. Esses banhos são uma tradição de séculos. Em temperaturas negativas, o morno da água e as suas características minerais oferecem uma experiência reparadora. A massagem opcional que se segue é mais energética do que se imagina, mesmo considerando os avisos dos amigos georgianos.
Tbilisi, a capital da Geórgia, tem hoje mais de 1,1 milhão de habitantes. No Ocidente, sabemos pouco acerca das pessoas que caminham nessas avenidas, gente de todas as idades, com vidas próprias e reais.
Quinze séculos. É preciso contemplar essas palavras por um instante, só assim se começa a ter alguma consciência, ainda que mínima, do seu tamanho. Mil e quinhentos anos: é a extensão da história de Tbilisi. Ao longo desse tempo, a situação geográfica favoreceu o cruzamento de culturas e religiões nessa terra. Um bom lugar para saber mais sobre a cidade e o país é o Museu Nacional Georgiano. Em vários andares, esperam-nos marcas dessa história de séculos. No último andar, esclarece-se um dos equívocos mais comuns acerca da Geórgia.
O Exército Vermelho ocupou Tbilisi pela força em 1921. Hoje, confundir a Geórgia com a Rússia é uma ofensa à memória dos muitos que morreram durante essa invasão e daqueles que resistiram durante todo o período soviético, presos, exilados ou mortos. Talvez o fato de Stalin ter nascido na Geórgia contribua para esse erro e ajude a agravá-lo. A fronteira com a Rússia, ao norte, é de difícil acesso devido à Cordilheira do Cáucaso, com elevações que chegam a atingir 5 mil metros de altitude. Mais desimpedida é a circulação a partir do sul, passando pelo Azerbaijão, pela Armênia ou pela Turquia.
As culturas georgiana e russa têm diferenças consideráveis. A língua georgiana não é a eslava; o alfabeto não é o cirílico. Em março de 1991, após o fim da União Soviética, foi feito um referendo acerca do futuro do país. A independência venceu com 99,5% dos votos. A poucas centenas de metros do museu, descendo a Avenida Shota Rustaveli, chega-se à Praça da Liberdade, palco de inúmeros acontecimentos de grande significado na história da Geórgia. Hoje, no meio dessa praça, chama a atenção o monumento com um São Jorge e um dragão dourados. Excelente lugar para começar um passeio pela cidade antiga, o centro histórico.
Uma fileira de típicas varandas georgianas, de madeira, com cores suaves, convida-nos a escolher essa direção. Com raízes asiáticas e árabes, a arquitetura tradicional tem um traço claro e, ao mesmo tempo, repleto de detalhes. Neste caminho, acompanhando o exterior do que resta da muralha, passo por algo muito comum na cidade: estátuas de bronze, árvores, pequenos jardins. A arte e a natureza colaboram com a calma de Tbilisi.
Entro na área amuralhada pela rua do Teatro de Marionetes Rezo Gabriadze. O edifício merece uma visita tal foi o cuidado na sua construção. Destaque para a torre com um relógio animado por bonecos, que se mostram a certas horas. O teatro e sua companhia é referência mundial vale a pena ver o espetáculo. Há a qualidade do texto, legendado em inglês, a engenhosa interpretação e, claro, a maestria na construção das marionetes e dos adereços, verdadeiros objetos de arte.
Logo a seguir, fica a Basílica Anchiskhati, construída no século 6, a igreja mais antiga de Tbilisi. É um templo da Igreja Ortodoxa Georgiana, como na maior parte dos locais de culto por ali. Mas, por causa do cruzamento de culturas, na cidade também existem igrejas católicas, sinagogas e mesquitas, a pouca distância umas das outras, em perfeita convivência. As mulheres são convidadas a cobrir a cabeça com um lenço e, por sua vez, os homens devem descobri-la, retirando o chapéu. O odor de incenso está impregnado nas pedras. Há um momento na liturgia em que o sacerdote faz uma volta agitando o incenso a arder. Vale assistir a uma dessas celebrações, acompanhadas por coros polifônicos, com o sacerdote sempre virado para o altar.
Pouco depois, chegamos às margens do Rio Kura, à Ponte da Paz. Inaugurada em 2010, a aparência dessa ponte para pedestres contrasta radicalmente com o centro histórico. Desenhada pelo arquiteto italiano Michele De Lucchi, que também criou outros projetos na cidade, tornou-se uma atração para os visitantes que sobem para apreciar os detalhes da construção e, claro, a vista de Tbilisi e do Rio Kura.
De volta à cidade antiga, não é preciso caminhar muito até a Catedral Sioni. Presume-se que foi edificada no século 6 ou 7, e sabe-se que foi destruída e reconstruída diversas vezes. A atual estrutura data do século 13. Esta igreja tem especial significado para os georgianos porque guarda a cruz que, segundo se crê, pertenceu à Santa Nino, que foi quem trouxe o cristianismo para a Geórgia. Diz a lenda que a cruz é feita de ramos de videira, atados com o próprio cabelo da santa. Na Catedral Sioni, há sempre um silêncio grave e mulheres vestidas de negro a acender velas muito finas. As chamas ajudam a iluminar as riquezas da igreja. As sombras dissipam-se um pouco sobre os afrescos das paredes. Os ícones, de influência bizantina, sabem ouvir quem se aproxima a sussurrar preces. A devoção na Igreja Ortodoxa Georgiana é solene e intensa.
De novo na rua, tudo é novo. Há um instante de surpresa. A claridade ou os movimentos livres das pessoas fazem renascer o mundo. O centro histórico, com detalhes de várias épocas nas fachadas, transporta-nos no tempo. Especialmente interessantes são os caravançarais. Esse era o nome dado aos albergues onde pernoitavam as caravanas que aqui passavam, mercadores que seguiam a Rota da Seda. Hoje com outras funções, esses edifícios têm pátios internos retangulares – e as varandas coloridas de madeira.
Após a Catedral Sioni, chega-se a ruas em que se pode comprar produtos regionais ou escolher um restaurante. Entre os produtos georgianos mais apreciados está o vinho. A Geórgia é uma das regiões vinícolas mais antigas do mundo, com cerca de 400 tipos de uva. A churchkhela é também um dos produtos inevitáveis. Penduradas em grandes quantidades em todas as lojas de artigos locais, parecem velas, mas, na verdade, são fios de nozes cobertos por uma pasta de uva, deixada a secar até atingir consistência. Toda a cozinha georgiana é original. Há as entradas, os queijos, pães, saladas, sopas, carnes, o peixe do Mar Negro. Os khinkalis são imperdíveis: pastéis de massa, recheados com carne e caldo.
Então pode-se seguir para a Praça da Liberdade e completar um círculo ou atravessar a ponte ao lado da Catedral Matekhi e ir à bilheteria do teleférico. A passagem é barata, custa poucos laris – a moeda georgiana. Devagar, sobrevoo o rio e a cidade antiga. As ruas por onde passei parecem pequenas lá embaixo. Outros, semelhantes a quem eu era há pouco, continuam nesses caminhos. Olho-os e acredito que sou capaz de compreendê-los.
Na Fortaleza de Narikala, há uma aragem gelada na minha pele – é um inverno impiedoso. Ao longe, há montanhas brancas, picos de neve. A nitidez leva-me a acreditar que talvez consiga distinguir Mtskheta, a capital da Geórgia antes de Tbilisi, também banhada pelo Kura; acredito até que sou capaz de distinguir a Igreja Jvari, no topo de uma colina, a cerca de 20 quilômetros. Mas talvez seja só a minha vontade de ver essas paisagens.
O horizonte é imenso. Estou longe da minha casa, que fica bem depois dessa linha. No alto da Fortaleza de Narikala, sobre Tbilisi, sei que ela existe, apesar da sua realidade remota. Quando eu voltar, Tbilisi será também assim, de novo remota. Mas, a partir de hoje, saberei para sempre que existe.
ONDE FICAR
O River Side hospeda com conforto ao lado do Rio Mtkvari, a 17 minutos da Ponte da Paz. Três-estrelas, o Light House é próximo ao Centro – a Estação de Metrô Avlabari fica a 500 metros. Inaugurado em 2022, o Golden Tulip Design Tbilisi tem rooftop badalado com vista para o centro histórico. Busque mais hotéis em Tbilisi pelo Booking. Veja também as opções de hospedagem no Airbnb.
ONDE COMER
Para provar o khachapuri, um prato de queijo e ovo sobrepostos dentro de um pão, vá ao Puri Guliani, com boa cozinha local e pães e doces num terraço nas alturas – a vista é bacana. No Ezo, a atmosfera é descolada, e os pratos típicos, feitos com ingredientes frescos e orgânicos. Na região da Praça da Liberdade, a Georgian House, além de preparar pratos do Leste Europeu, é perita nos khinkhalis, pastéis típicos cujo recheio, em regra, leva os queijos sulguni e chanakh, bom com um tinto local e com cerveja. Depois, prove o churchkhela, doce-símbolo feito de suco de uva, nozes e farinha. O Barbarestan é outra opção de restaurante tradicional, enquanto o Café Littera serve uma comida local mais moderna. A Geórgia é um dos destinos que são apostas gastronômicas para 2023; saiba mais aqui.
QUANDO IR
Em maio, junho e setembro, você foge tanto do frio intenso do inverno como do calor de verão, mas pode chover em qualquer mês.
COMO CHEGAR
Não há voos diretos do Brasil para Geórgia. O mais comum é fazer escala em Istambul com a Turkish ou em Doha com a Qatar. Veja as melhores opções de voo para Tbilisi.
COMO CIRCULAR
Metrô e ônibus cobrem grande parte de Tbilisi. A marshrutka é uma van que também roda pela cidade, mas não há pontos – chame-a como um táxi. Há pouca oferta de táxis e carros de aplicativos. A tarifa para usar o transporte público é de GEL$ 1, mas existe a possibilidade de adquirir o Tbilisi Travel Card, que dá direito a viagens ilimitadas. Há cartões válidos por 90 minutos (GEL$ 1), um dia (GEL$ 3), uma semana (GEL$ 20), um mês (GEL$ 40) e até um ano (GEL$ 250). Eles são vendidos nos caixas das estações de metrô e nas unidades do Bank of Georgia Express.
MOEDA
O lari georgiano (GEL$ 1 =R$ 1,97).
LÍNGUA
O georgiano, com seu alfabeto único. O inglês até é falado por jovens, mas o russo é a segunda língua oficial.
DOCUMENTOS
Brasileiros não precisam de visto para permanecer no país por até 90 dias. É necessário apresentar comprovante de vacinação completa contra a Covid-19 ou resultado negativo para um teste de RT-PCR realizado até 72 horas antes da viagem. Aqueles que optarem por entrar no país com o teste devem repetir o exame no terceiro dia de viagem.