Londres está mudando. É nítido aos olhos de quem não a presenciava há oito anos. Seus imponentes cartões-postais seguem lá, alguns deles gratuitos como a Tate Modern, cujo acervo equivale a muito PIB por aí, e a National Gallery, na lendária Trafalgar Square.
São lugares que atraem também pelo quê tradicional e merecem ser visitados. Mas a reinvenção e a modernização vão além do fato de a família real agora agregar uma americana, feminista, divorciada e ativista pelo direito dos negros.
Seu skyline está vivendo uma novaiorquização, com prédios moderníssimos brotando no lugar de construções outrora degradadas, fazendo despontar novas áreas de interesse.
SHOREDITCH E A INVENTIVIDADE DOS MILLENIALS
O expoente máximo disso é Shoreditch, a vizinhança mais criativa da cidade. Na East End, mas bem central, ela é compreendida entre a Brick Lane e a rotatória do metrô Old Street – outros bons acessos são de overground, o metrô de superfície, pelas estações Shoreditch High Street e Hoxton.
Essa onda cool atingiu Shoreditch na virada do milênio, quando os moderninhos se mudaram para lá, após abandonarem West End pelo alto custo, e começaram a ocupar seus armazéns, que estavam abandonados pelo declínio da indústria de tecidos – a dita gentrificação, que tem lados bons e ruins.
Shoreditch atraiu também por estar próximo à Liverpool Street, região com vários empregos no setor financeiro. Se é para comparar com Nova York, é o primo britânico de Williamsbourg, tamanha a incidência dos chamados millenials.
Afinal, quem são esses millenials? O que comem? Como se reproduzem? Também conhecidos como a geração Y, o que se sabe é que eles são nascidos entre 1980 e 1995.
Estejam onde estiverem, esses millenials são uma estirpe que, segundo estudo do Google Brasil, busca no acesso à cultura a sua principal fonte de educação, inspiração e entretenimento. Ao mesmo tempo em que são mega-conectados, eles tendem a ser nostálgicos e trazem consigo uma atmosfera de lojas vintage, galerias, grafites, bares moderninhos e casas noturnas subversivas.
Banksy e mais
Iniciei o passeio por Shoreditch de manhã. É atravessar a Curtain Road e comprovar que, mesmo com o real combalido, o brasileiro não deixou de ir. Se faltar câmbio lá, vá ao correio ou às lojas Debenhams, John Lewis e Marks & Spencer. Não o fiz, saquei com o cartão de crédito. Sairia mais barato ter pedido à máfia. E essas questões econômicas são muito discutidas nas paredes do bairro, georgianas, de tijolos.
As contradições são discutidas com muitos grafites. Não faltam ruas e estilos de arte de rua e o chavão de galeria a céu aberto se torna irresistível. Eles mudam toda hora: ou são removidos ou colorem um novo por cima, e o que se vê hoje pode sumir amanhã.
Um dos artistas, no entanto, resiste, a não ser quando suas obras são roubadas. Não se sabe nem se é “um”, “uma” ou um coletivo. Se é um pássaro, um avião. Sim, é o Banksy, que continua causando comoção. A última dele foi deslizar por um triturador de papel o seu desenho mais famoso, Girl with Balloon, logo após ter sido leiloado por mais de R$ 5 milhões.
Rua legal para ver dois murais banksyanos, que sempre confrontam injustiças sociais e deixam mensagens políticas usando animais, é a Rivington, com grafites em estêncil – técnica sobre molde vazado que permite desenhos em série.
Também me agradou em uma parede de tijolos o estêncil da Bambi, grafiteira enigmática como Banksy.
A Rivington Street ostenta outros belos exemplares grafiteiros que perduram, como o do paulistano Cranio, apesar da gentrificação predadora, como comprovam os vários pubs raiz que fecharam para dar lugar a franquias como Tesco e Starbucks.
Mas a Rivington vai além da arte rueira, com espaços que atraem quem quer bebericar e aproveitar a noite. Eleito um dos grandes bares secretos londrinos pelo The Telegraph, o Callooh Callay é um lounge com bons drinques inspirado em Jabberwocky, poema nonsense de Lewis Carroll que inspirou o filme de Monty Python, daí a decoração aleatória.
Os sofás são de couro, assim como no vizinho Strongroom, já virando na Curtain Road – o bar vende camisetas de Donald Trump de batom. Para economizar, ainda na Rivington, aposte na napolitana Pizza Pilgrims.
Boxpark e Redchurch Street
Ali pertinho, na Bethnal Green Road, nada mais Shoreditch que o Boxpark, complexo de compras cheio de designers locais, por vezes itinerantes, cujas lojas estão instaladas em contêineres, um empilhado sobre o outro.
Falando em moda, é curioso matutar que a região que sediava uma espécie de favela, a Old Nichol, é hoje um must, sobretudo a Redchurch Street, onde calças xadrez e/ou skinny viraram insumo para os londoners. Para muitos, já supera ruas como a Oxford e a dupla do Mayfair, Bond e Mount, como a via mais fashionista de Londres.
Na Redchurch, acham-se calçados contemporâneos distintos para homens e mulheres na Tracey Neuls. Peças estilosas também são encontradas em endereços como a butique multimarcas francesa Aimé e na italiana Versace. Mas há quem prefira as roupas básicas e mais baratas da Sunspel, loja inglesa aberta em 1860.
Já eu, confesso, acho mais divertido garimpar roupa numa das trocentas charity shops da cidade: além de ajudar os necessitados, já que a grana das vendas é revertida para as instituições, essas lojas vendem até peças de grife – é a caso da Oxfam, a 12 minutos dali de overground, desça na estação Dalston Junction.
Por fim, vale dar um busca nas chaleiras e outros utensílios retrô na Labour and Wait, assim como nas luminárias da Monologue.
Gin em South Hackney
Na divisa de Shoreditch com South Hackney, que guarda o aprazível Victoria Park, happy hour das boas é a eclética East London Liquor Company. Faz um papel triplo em seu salão charmoso de mármore e tijolo: é bar; é restaurante de comida italiana com custo/benefício na pizza fina assada na pedra; e é uma destilaria que produz vodca, gim e uísque, que podem ser apreciados em tours.
Fato é que Shoreditch é a Londres que olha para o futuro, porém com uma dose de nostalgia que caracteriza a geração millenial, preservada até no linguajar cockney, o sotaque característico da classe trabalhadora que sempre habitou o lado leste.
BRIXTON E A REINVENÇÃO CARIBENHA
The people’s fridge, a geladeira do povo. Qualquer um pode levar ou deixar comida. O que pode entrar: embalagens fechadas, frutas, vegetais e marmitas dos comerciantes. O que não pode: alimentos vencidos, carne crua, peixe, ovo, congelados e álcool.
Isso tudo está escrito em um refrigerador dentro do Pop Brixton, complexo criado no coração do bairro. É a melhor happy hour do sul londrino, algo inimaginável se considerarmos que Brixton é um gueto habitado majoritariamente pela oprimida comunidade jamaicana, mas que agora é uma das vizinhanças revigoradas da cidade, trendy.
É um mix, um lugar “raiz” e moderninho ao mesmo tempo, ideal para uma tarde/noite em meio a mercados e restaurantes inovadores. É como Shoreditch há dez anos, ainda sem os prédios à la Nova York. Esse Pop Brixton é o ponto de partida para entender o bairro, que é acessado pela estação Brixton Road do metrô – a 7 minutos (quatro paradas) da Victoria Station, no Centro; ou a meia-hora de bus de Westminster.
O Pop é lar de 55 empresas independentes que operam em contêineres. Há bares e restaurantes étnicos, comerciantes de alimentos, designers, start-ups digitais, barbearia comunitária, estação de rádio jovem, música ao vivo, baladas, mercados, ioga, teatro, dança.
Onde comer lá? No altamente cotado Smoke and Salt, cujo menu, fixado com imãs na parede do contêiner, tem invenções do chef Remi Williams, como o ovo cozido totalmente na casca – você o quebra na mesa.
Nada mais Bowie
Era uma tarde e, após sair do Pop, fui abordado e presenteado com uma lanterna por um rastafári. E saí a explorar esta quebrada de atmosfera vibrante, oposta à de Guns of Brixton, canção do The Clash, que retrata a superada violência, sabida também por quem conhece a trajetória de David Bowie, que passou parte da infância com sua família errática no número 40 da Stansfield Road.
A casa resiste, como era, mas o lugar mais icônico sobre o Camaleão é a esquina da Tunstall Road com a Brixton Road, diante da estação. Batizado de David Bowie Memorial, é um mural dele caracterizado como Ziggy Stardust protegido por um vidro, pintado pelo australiano Jimmy C. Foi lá que os fãs deixaram flores, cartas e desenhos quando Bowie partiu da Terra em 2016.
Bowie visto, caí na Electric Avenue, rua sem carros e com camelôs a vender frutas, botas, roupas coloridas estilo Will Smith em O Maluco no Pedaço. Atrás de uma dessas barracas eis que surge na parede de tijolos um grafitão de um rastafári. Ao lado dele tem uma portinha, a entrada alternativa do Brixton Village, um mercado onde dividem espaço peixarias e lojas de produtos caribenhos da comunidade; galerias de arte como a Studio 73, com gravuras, e a Circus, com almofadas; cafés como o Federation, cujos grãos foram torrados no bairro; e restaurantes como o Station 26, com água filtrada de cortesia em jarras e cardápio variado glúten free.
Perfume de £ 1
De volta à avenida onipresente, a Brixton Road, compras mais baratas são os cacarecos da Poundland, com guloseimas, molduras, jogos de velas e até perfume Umbro por £ 1. Saí carregado e certo de que tinha economizado, mas carregar coisas demais induz ao vacilo. Só notei que havia perdido £ 20 quando estava na CeX, loja na mesma calçada que compra e vende celulares e games – arrematei um Sonic por £ 4.
Pena que não era um sábado às 12h15, quando rolam tours gratuitos na grande novidade do pedaço, a Brixton Brewery, microcervejaria aberta em junho de 2018, um lugar com aquele cheiro de cevada e lúpulo que inebria.
Vem a noite. O Pop Brixton está bombando, assim como outras baladas e bares, que por vezes usam pallets para criar pequenos jardins e caixas de cerveja como base de sofás. Meu foco, porém, é um agito mais genuíno: o Dogstar, pub com DJs, que no letreiro se diz como um lugar cheio de mistério como nenhum outro na Terra. É legal, mas não a ponto de a gente se sentir tão especial.
Apesar do transporte público, voltei à Brixton Road atrás de táxi, mas precisei de uma hora para concluir que os motoristas não poderiam parar na pista de ônibus para eu embarcar. Cansado, avistei, como uma miragem, o mesmo rastafári que havia me dado a lanterna à tarde; ele disse que havia uma loja de transfers executivos com o mesmo preço dos táxis em frente ao… Dogstar, para onde tive que voltar.
Conclusão: se o bicho pegar, sempre alguém vai ajudar e soltar um “no problem, man”. Não se duvida de quem compartilha comida numa geladeira comunitária. A regra em Brixton é pensar fora da caixa, como fizera David Robert Jones, o Bowie.
LONDON CALLING
Embarquei numa van pilotada por Bruce Cherry, dono da London Rock Tour, que faz 26 passeios temáticos. Sabia que o cara tinha uma mente roqueira enciclopédica, mas fiquei chocado com o fato de ele manjava tudo de música brasileira. Conhecia pessoalmente a galera dos Mutantes e até levou a Pitty para fazer tatuagem em Camden Town.
Meu tour era algo como rock clássico com alguma ênfase em Queen, com a maioria das atrações no Soho e Kensington. Foi assim:
Ealing
Berço do R&B britânico e dos Rolling Stones: lá, Mick Jagger e Keith Richards conheceram Brian Jones. Os primeiros shows lá foram em 1962 – em janeiro de 1963 foi o primeiro show com a formação clássica: Mick, Keith, Brian, Bill, Ian e Charlie.
Outros que despontaram neste porão diante da estação Ealing Broadway, em West London, foram Eric Clapton e The Who. Pequeno e escuro, hoje virou a casa de blues The Red Room.
Soho
Denmark Street
A ruazinha tem muita história num raio de 100 metros. Tinha lojas de instrumento como a Mills Music (nº 21), onde Elton John trabalhava e compôs Your Song no telhado. Jimi Hendrix, sem grana vindo dos EUA, ficava solando pela rua.
Os Sex Pistols moraram num apê ali. Em outro, Storm Thorgerson criou capas do Pink Floyd. Bowie também teve a ideia de Ziggy Stardust nessa
via.
No fim da Denmark Street, ali era o estúdio onde foram gravados grandes clássicos como Paranoid, do Black Sabbath de Ozzy Osbourne.
Ali do lado, este restaurante ocupa a imóvel em que Paul McCartney deu uma festa em 1978. Depois de sair dela, Keith Moon, do The Who, morreu.
Empire Cineworld
Este cinema, hoje iMax e com cassino, recebeu em 1982 a première de The Wall, épico filme do Pink Floyd, e reuniu feras na plateia.
Bowie gravou o clipe de Blue Jean neste pub, antes conhecido como Wag Club. Não somente as lendas britânicas como Eric Clapton o frequentavam: Madonna e Prince adoravam.
Hoje, um estúdio de jingles. Ontem, espaço onde se gravaram alguns dos maiores discos da história – mais que Abbey Road, focado em Beatles e Pink Floyd.
Na porta tem a placa azul redonda que atesta que é um pico histórico, como rola em toda a Londres. Nela, diz que Space Oddity e The Rise and Fall of Ziggy Stardust foram gravados aqui.
Mas não teve somente Bowie: Elton John deu vida a Your Song aqui, e teve Bohemian Rapsody, do Queen, Frank Zappa… Fica numa travessinha para pedestres.
Ao lado da Soho Square, o templo cativou George Harrison.
Kensington
The Tower House
De 1895, vitoriana e com uma torre gótica, é a mansão de Jimmy Page, o cultuado guitarrista do Led Zeppelin. Ele já notificou seu vizinho de calçada, Robbie Williams, que o cantor pop não pode fazer reformas ali, pois além de proibido, pode afetar a casa de Page. Fica na região de Holland Park, que tem David Beckham e sua poshhouse na rua de baixo.
Garden Lodge
Freddy Mercury passou os últimos anos neste casarão de paredão branco, até falecer. Sua grande amiga colorida Mary Austin ainda vive lá. Não dê bandeira com a câmera na porta, tire fotos disfarçadamente.
Onde Brian May estudava e começou a formar o Queen.
Nesta faculdade, David Gilmour conheceu Syd Barret. E também houve um concurso para criar o logo dos Stones, a bocarra, e o vencedor levou £ 25.
Aqui tinha um brechó onde Freddy Mercury vendia roupas tie die.
Confira no mapa: