Sister Light me mostrou o caminho. A moça é uma das videntes que circulam pelo French Quarter, centro nervoso de Nova Orleans. Por US$ 15, Sister previu uma vida de grandes realizações e paixões e disse que o segredo para o sucesso é obedecer ao meu coração. Assim, meu olhar musical sobre Nova Orleans é também um desejo dos seres – profanos ou não – que moram ali. Berço da música gospel e do jazz (e terra natal de Mahalia Jackson e Louis Armstrong), Nova Orleans está repleta de casas noturnas, bares e até hotéis com apresentações ao vivo, a maior parte no French Quarter. O caminho da felicidade se inicia na Decatur Street, endereço da Louisana Music Factory, a melhor loja de discos da cidade. O acervo primoroso vai dos veteranos Armstrong, Professor Longhair e James Booker a jovens como Trombone Shorty e o grupo de metais Soul Rebels. As vantagens daqui são que há sempre um pocket show com músicos locais e os vendedores não rosnam de desprezo quando você tem dúvida sobre um disco. O segundo andar traz um acervo respeitável de LPs de vinil, com lançamentos – em vinil – até pechinchas de soul music por US$ 1. Bem em frente à loja fica uma das casas de melhor acústica da cidade, a House of Blues, que abre espaço para artistas de menor escalão (apenas em popularidade, claro). Como eu disse, a acústica é impecável, mas a decoração, nem tanto. Uma estátua malfeita dos Blues Brothers recepciona o público, e o espaço todo parece saído de uma casa de vodu.
Fog matinal nas franjas do French Quarter, em Nova Orleans
Fog matinal nas franjas do French Quarter – Foto: Corbis
As principais atrações do jazz de Nova Orleans estão concentradas na Frenchmen Street, no fim da Decatur Street. A Frenchmen tem uma grande concentração de bares, todos com música ao vivo, muitos com ingresso ao preço de um drinque. Às vezes essas boates estão tão cheias que é mais recomendável ficar do lado de fora, dançando ao som do quarteto de trombones Bonerama. Ou então perambular pela rua e curtir um pouco de cada apresentação. Além das boates, a rua tem livrarias, casas de tatuagem e uma feirinha de artesanato. Se você tiver sorte, poderá ver até performances de bandas de metais. O charme desses miniconcertos é que o repertório traz sucessos pop de Beyoncé a Michael Jackson, não se resumindo a clássicos do jazz – e você vai enjoar de tanto escutar When the Saints Go Marching In… Embora os concertos sejam na rua, dar uma gorjeta aos rapazes serve como incentivo e ganha pontos na hora de tirar fotos. Para paladares e gostos musicais mais sofisticados, o Snug Harbor traz uma ótima seleção de frutos do mar, carnes e hambúrgueres e apresentações das famílias musicais mais importantes da cidade, como os irmãos Neville e Marsalis (que, aliás, são donos da casa).
Jazz parade, em Nova Orleans
Jazz parade – Foto: Age Fotostock/Keystone Brasil
Sodoma e Gomorra
A célebre Bourbon Street também fica no French Quarter. Sua fama, no entanto, se deve mais ao clima de pecado do que à excelência musical. A rua é reduto de botecos, dos clubes de striptease, de turistas jovens e desinibidos que sacam suas vergonhas para fora em troca de beads, aquelas bijuterias que são jogadas das sacadas das casas noturnas, dos hotéis e dos restaurantes. Os jazzistas têm uma certa resistência contra a rua. “Não há espaço para música original, só para bandas cover”, explica Trombone Shorty, o artista de maior projeção no cenário pop da cidade. Trombone, cujo nome verdadeiro é Troy Andrews, já tocou na banda de Lenny Kravitz e fez o show de encerramento do New Orleans Jazz & Heritage, o principal evento musical da cidade, realizado entre abril e maio. Mas, em meio a um cenário que lembra Sodoma e Gomorra (e que pela manhã cheira a desinfetante, utilizado aos litros para esterilizar os excessos da noite), Bourbon Street é endereço de duas moradas do jazz. A primeira é a sede da Preservation Hall Jazz Band, no número 726 da St. Peter Street – quase esquina com a Bourbon. Com cinco décadas de vida, a Preservation toca jazz do início do século 20 todas as noites das 18 às 23 horas. As cadeiras são de madeira e palha trançada, o assoalho range, e quem se atrever a dançar pode acertar o olho do outro, mas é uma viagem aos primórdios do jazz que vale cada centavo – deposite as gorjetas no baldinho do palco. Adiante, no Royal Sonesta Hotel, a Jazz Playouse, do trompetista Irvin Mayfield, apresenta novos e veteranos talentos. Desconhecido no Brasil, Mayfield é diretor musical da New Orleans Jazz Orchestra, embaixador cultural da cidade e figura poderosa do showbiz local. O pai de Mayfield morreu ao se recusar a abandonar sua casa durante a inundação do Katrina. A perda resultou em May Them Rest in Peace, uma das mais belas composições do jazz contemporâneo, e em uma luta pessoal pela revitalização da cena noturna. O tour musical se encerra no Kermit’s Treme Speakeasy, do trompetista Kermit Rufns. O lugar é uma mistura de casa noturna e restaurante onde as receitas com diversas carnes são de autoria do próprio Rufns – e preparadas em uma panela comprada em São Paulo! Tremé, primeiro bairro de negros libertos dos Estados Unidos, não é muito receptivo a turistas; por isso, recomendam-se cautela e um taxista amigo.
Bourbon, a própria, em Nova Orleans
Bourbon, a própria – Foto: Age Fotostock/Keystone Brasil
…E o Vento Levou
Nova Orleans não se resume à música. Quem sair da ferveção do French Quarter e descer a St. Charles Street (US$ 1,25 o bondinho) vai deparar com orgulhos da arquitetura sulista. Salte no Garden District, antes do ponto final, para admirar casas do início do século 19 que parecem saídas de …E o Vento Levou. Como as construções pouco sofreram com o Katrina, circularam boatos de que a queda das barreiras teria sido um ato humano para que a cidade se livrasse da população pobre. No bairro mora o trompetista Terence Blanchard, autor de trilhas dos filmes de Spike Lee. Ele divide um luxuoso sobrado com a mulher, as filhas, um piano e sete prêmios Grammy. Ao ver sua cidade arrasada, Blanchard transferiu o Instituto de Jazz Thelonious Monk, do qual era presidente, de Los Angeles para Nova Orleans. “Eu achei que devia trabalhar na recuperação da autoestima da cidade”, explica. O passeio pelo Garden District se encerra com uma visita ao Audubon Zoo, que recria um típico pântano sulista e abriga raros jacarés brancos.
Os museus são atrações injustamente pouco divulgadas de Nova Orleans. Na Jackson Square, o Lousiana State Museum conta a história dos colonizadores espanhóis, franceses e americanos no estado por meio de artefatos, documentos e pinturas – inclusive um quadro de Madame Laveau, a primeira sacerdotisa vodu da cidade. Perto do Garden District estão o Ogden Museum, dedicado à arte sulista, e o Second World War, que traz um documentário em 4D, Beyond All Boundaries, narrado por Tom Hanks. As cenas de bombardeio e a chegada dos tanques alemães aos desertos da África são de um realismo impressionante, acentuado pelos tremeliques das cadeiras.
Varandas de ferro, em Nova Orleans
Varandas de ferro – Foto: Age Fotostock/Keystone Brasil
Abacaxi com casca
Um passeio por Nova Orleans pede ainda uma aventura no pântano e uma aula de história em uma fazenda. Em Lafite, a poucas milhas, pode-se apreciar a vegetação do pântano e dar de comer aos jacarés no barulhento barco da Airboat Adventures. Os pratos mais apreciados pelos répteis são, pela ordem, marshmallow e frango – que o guia deixa na borda do barco para que o jacaré suba e sacie a curiosidade dos turistas. Chamadas de plantations, as fazendas de cana de açúcar são imperdíveis por causa da arquitetura e da aula sobre os antigos costumes do Sul do país. Nos encontros, por exemplo, as moças casadoiras eram acompanhadas pelos pais – que literalmente seguravam uma vela ao lado das filhas. Quando eles encurtavam o comprimento da vela, era sinal de que o pretendente não interessava à família. Outra: abacaxi na cama da visita era sinal para ir embora. Na verdade, os fazendeiros recebiam suas visitas com a fruta cortada como gesto de hospitalidade. O abacaxi inteiro em cima da cama era um mimo para o visitante comer na viagem para casa… A plantation mais famosa é a Houmas House, cenário de filmes como Entrevista com o Vampiro. Recomenda-se fazer o passeio por fora da mansão sorvendo o mint julep, um drinque preparado com uísque, menta, água e açúcar.
Em Nova Orleans, comem-se delícias gordurosas de alargar o cinto. O jazz brunch do The Court of Two Sisters, no French Quarter, tem guloseimas como jambalaya (a paella local), frutos do mar frescos e doces diversos – entre eles o King’s Cake, a versão creole do panetone. Turistas com mais sangue nas veias podem se deliciar com o gumbo (guisado de carne ou marisco com legumes), superapimentado no Coop’s Place, lanchonete em que até o mau humor das garçonetes faz parte do charme. Para uma noite romântica, o passeio pelo Rio Mississippi a bordo do barco a vapor Steamboat Natchez já vem com um jantar típico. Mas, para quem – como eu – aprecia um bom sanduíche, a muffulletta (pão italiano com provolone, salame, copa e picles) é um presente do céu, e o po’boy (pão francês com recheios que vão de camarão empanado a almôndegas), uma dádiva divina. Só os quilos na balança são obra dos espíritos maus de Nova Orleans.
Jambalaya, a paella creole, em Nova Orleans
Jambalaya, a paella creole – Foto: Corbis
Em setembro de 2005, o Katrina derrubou as barragens do Mississippi e alagou 80% da cidade. A tragédia mostrou o despreparo da prefeitura, que subestimou o furacão, e do governo federal, que demorou no socorro. Oito anos depois, os efeitos ainda são visíveis, apesar de esforços de atores como Brad Pitt e de músicos como Branford Marsalis, que bancaram a construção de moradias. Há casas abandonadas, e muitos habitantes não voltaram à cidade. O turismo assimilou o desastre com os Katrina Tours, que percorrem as regiões mais afetadas. “O Katrina chamou atenção para os problemas sociais de Nova Orleans”, diz o roteirista Lolis Eric Elie. Ele faz parte do time de redatores de Tremé, série da HBO que mostra os desdobramentos da catástrofe abordando temas como criminalidade, corrupção policial e racismo. Embora os habitantes de Nova Orleans sejam hospitaleiros – seu jeito largadão ganhou o apelido de big easy –, em uma visita à cidade se recomenda não andar sozinho à noite pelos bairros menos turísticos nem dar trela para abordagens. A falta de perspectiva gerou um aumento da criminalidade que o prefeito Mitch Landrieu não conseguiu estancar. Mas ainda resta esperança. Foi o que me garantiu Sister Light.
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