Botsuana é logo ali: Rio–São Paulo–Johannesburgo–Maun. Depois de embarcar em três aviões de carreira, aterrissamos em Maun, principal cidade ao norte do país. Mas, para chegar ao nosso destino, o Selinda Camp, ainda faltavam um monomotor, um jipe e uma lancha. Só então, mais de 22 horas depois, é que pousamos nossas malas no Delta do Okavango. A viagem é longa, mas não tenho do que reclamar. Meus antepassados que vieram da África contavam que os navios negreiros eram muito mais lentos, desconfortáveis, e o serviço de bordo era péssimo; não serviam nem uma barrinha de cereais.
Engana-se quem pensa que Botsuana é um país inviável. Dos maiores produtores mundiais de diamante, possui uma democracia pluripartidária estável. No passado abrigou refugiados sul-africanos antiapartheid, hoje recebe gente de países vizinhos, como o Zimbábue. Seu maior problema é a aids, que atinge um terço da população. O risco é tão alto que se recomenda o uso de camisinha até para a prática do sexo solitário.
O Delta do Okavango é a região mais visitada do país. O Rio Okavango nasce numa área montanhosa de Angola, atravessa a fronteira e morre ao encontrar o Deserto de Kalahari. O delta é muito procurado pelos animais devido à abundância de água e, por consequência, muitos humanos vêm à procura de animais. Botsuana é a área vip do safári africano. As reservas e os lodges são exclusivos. São poucas e luxuosas acomodações para pequenos grupos que têm grandes áreas para explorar praticamente sozinhos. Cheguei lá com minha família às vésperas do Réveillon, teoricamente uma época menos propícia, que é quando chove mais e os animais estão dispersos. Mas não me arrependo.
Como eu dizia, a primeira reserva que visitamos foi o Selinda Camp. O hotel tem um visual rústico, como se fosse um grupo de cabanas de acampamento. Plantado no meio da mata, possui quartos confortáveis com luz elétrica, cama macia e grande, chuveiro e uma banheira que eu queria levar para casa. Apenas nove acomodações e cerca de 40 funcionários cuidam de tudo.
E nada de pôr as crianças num quarto separado para o casalzinho curtir uma lua de mel! Assim que chegamos somos alertados de que estamos em área selvagem e os animais estão próximos. As crianças não podem dormir sozinhas, e à noite somos levados ao quarto por um dos guias, e de lá não saímos. O risco é deparar com uma fera não vacinada e sem o crachá da agência de turismo.
Em caso de emergência, cada quarto tem uma sirene de ar comprimido. Eles só não avisaram se era para acioná-la antes ou depois de ser devorado por um leão. Mesmo sem sair do hotel, já entramos em clima de aventura.
A rotina na reserva é puxada. Você acorda às 5h30, toma um café rápido e sai para o safári. Durante o passeio, faz um lanchinho por volta das 9 horas. Às 11h30, almoço. Depois, pausa para a sesta – os bichos também estão descansando longe do sol e dos turistas. Às 4 da tarde, outra saída, na qual é servido mais um lanchinho. Ao chegar, o jantar já está na mesa. Enfim, entre uma e outra refeição, toda ginástica que você faz se resume a subir e descer do jipe.
A reserva fica próxima ao Selinda Spillway, canal que irriga toda a região entre o Delta do Okavango e o Pântano de Linyanti. As estradas são cortadas por pequenos rios e lagos em que nosso Land Rover se transforma num barco, o Land River. O guia nos falou que dentro de algumas semanas as estradas iriam desaparecer sob as águas.
O primeiro antílope avistado a gente nunca esquece. O jipe para, e todos sacam suas câmeras para registrar o momento. Mais adiante, outro antílope, e mais outro, e mais outro. Não só eles, mas vários de seus primos – steenbock, kudu, waterbuck… Tamanha variedade de veados só é possível ver em um desfile de escola de samba.
O safári é uma experiência excitante, e às vezes esquecemos que estamos em ambiente selvagem, e não na Disney. Os guias fazem de tudo para que tenhamos um passeio seguro, mas o que queremos é ver nosso jipe perseguido por um elefante ou um leão para termos o que contar para os amigos. Depois de algumas saídas, fazemos o balanço do que vimos: babuínos, impalas, hipopótamos, hienas, búfalos, girafas, zebras, javalis, crocodilos, águias, corujas, garças, até um parente de hiena chamado protelo (aardwolf, em inglês). E elefantes, muitos elefantes! A região é rota de migração desses grandalhões. Em três dias vi mais bichos do que em toda a minha vida frequentando zoológicos. Mas continuamos ansiosos. Queremos ver um leão, um leopardo ou mesmo um tigre que se perdeu e veio parar na África. Só que não é assim tão fácil. Os guias param ao ver a pegada de um leão. “Ele passou por aqui há uns quatro dias”, dizem.
Saímos do Selinda Camp e voamos para o Seba Camp, no coração do Okavango, região com vegetação mais exuberante. A vida selvagem está ainda mais próxima dos quartos. As recomendações de segurança são redobradas. As crianças não podem andar sozinhas pelo hotel – elas parecem um lanchinho apetitoso.
Também não se deve bobear com a porta do quarto, pois um babuíno pode invadi-lo. Contam o caso de um desses macacos que foi visto na mata vestindo uma camisa do Barcelona. Por outro lado, as portas das habitações não possuem chave, pois devem servir de abrigo para qualquer hóspede acuado por uma fera. Juízo com a patroa! Vocês podem ser flagrados por um gringo em apuros.
Com poucos turistas além do seu grupo, a reserva torna-se quase exclusiva. O privilégio, entretanto, é uma faca de dois gumes. Se por um lado você não precisa disputar espaço com vários jipes para fotografar os animais, por outro tem menos gente para avisar onde eles estão.
O mundo, animal
Você sabe que está em um safári quando comemora ao ver cocô de elefante. Mas com o tempo fico intrigado. Como um bicho daquele tamanho que acabou de largar um barro daquele tamanho na frente do meu quarto pode desaparecer sem ser visto?
Alguns animais são muito estranhos. O gnu, por exemplo, é uma espécie de rascunho da natureza. Meio cavalo, meio boi, meio zebra, meio bode, o bicho é feio e enxerga mal. Enfim, tudo que não deu certo. Mas foi fundamental para o desenvolvimento de outras espécies. E também serviu de consolo para os que gostavam de reclamar do destino. Deus sempre podia responder: “Não chia, não. Tu ficou muito melhor do que o gnu”.
Um guia experiente faz toda a diferença. Ele mostra pegadas, cocôs, fala da vegetação. Nosso guia nos surpreendeu ao dar uma aula sobre os cupinzeiros, muito presentes no Delta do Okavango. Ficamos sabendo que é o cupim que dá início à ilha de vegetação ao seu redor. Pássaros e pequenos animais que vão ali para comer os cupins acabam fertilizando o entorno com sementes bicadas em outras árvores. Ele nos conta que os cupins se reproduzem à velocidade de 30 mil insetos por dia! Fico aliviado ao lembrar que minha casa está a 6 mil quilômetros dali. Se fosse perto, teria de gastar uma fortuna com dedetização.
Como diria Mugumba, o Neném Prancha africano, safári é uma caixinha de surpresas. Você pode rodar o Delta do Okavango a semana inteira e não encontrar nenhum dos Cinco Grandes (leão, leopardo, búfalo, elefante e rinoceronte). Para não voltar frustrado ou deprimido, aqui vai a lista dos Cinco Pequenos: ant lion (formiga-leão), leopard tortoise (tartaruga- leopardo), buffalo weaver (pássaro tecelão), elephant shrew (musaranho-elefante), rhino beetle (besouro-rinoceronte). Esses são mais fáceis de achar.
Chegamos à África trazendo nossa ansiedade de morador de cidade grande, certos de que sabíamos o que queríamos: ver um leão. Com o passar dos dias descobrimos que o que queríamos era ser surpreendidos, sentir fio na barriga. O risco de deparar com uma fera ao sair do quarto acaba contando mais do que simplesmente ver o bicho. Não estamos assistindo a um DVD da National Geographic, é a natureza mostrando ao vivo seu lado mais selvagem. Ela não está ali para satisfazer nossas expectativas só porque viajamos milhares de quilômetros. Estamos ali pela busca do animal, e a cada tentativa conhecemos melhor seus hábitos, seus humores. Um safári está além do simples ato de ver os animais. E olha que você certamente vai ver muitos!
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