Ao andar pelas ruas de uma cidade que está sempre lotada, uma senhora de 70 anos com cara de poucos amigos esbarra em mais um turista. Visivelmente indiferente ao fluxo de transeuntes, ele está lá parado no meio da calçada tirando fotos. Indignada, ela esbraveja pedindo para que se mexa e lembra o forasteiro que ali nem todo mundo está só passeando. “Uma das piores coisas é ver como as pessoas esquecem como é andar na rua”. Esta é Fran Lebowitz, uma escritora que não escreve há muito tempo, mas que ganha a vida dando opinião sobre tudo. Uma mente afiada, sagaz, politicamente incorreta e de uma acidez contagiante.
Tudo isso está presente no documentário Faz de Conta que Nova York é uma Cidade, da Netflix, que mostra Lebowitz em uma conversa com Martin Scorsese. O cineasta dirigiu a série e também um documentário sobre Fran para a HBO em 2010, Public Speaking. A dupla cultiva uma amizade de longa data a ponto de não lembrar como se conheceram – embora ela chute que tenha sido em alguma festa.
Scorsese criou a série para deixar Fran fazer o que sabe de melhor: falar. Ele definiu muito bem a ideia do programa em uma entrevista para o apresentador Jimmy Fallon: “É como se fosse um tratado sobre Nova York. É como se ao invés de ler uma coluna em uma revista, Fran subisse no seu apartamento, batesse na sua porta e dissesse: ‘olha, sabe aquelas pessoas lá embaixo’. Você pode até não concordar, mas o que eu adoro é a lucidez, o discernimento dela”. E como cenário, o diretor escolheu pontos de Nova York como a Grand Central Station, a Biblioteca Pública e, principalmente, o ainda pouco visitado Queens Museum.
A escritora nasceu em 1950 e aos 19 anos se mudou para Nova York. Trabalhou como faxineira, taxista e vendedora de cintos. Ficou conhecida do público quando passou a escrever para a revista Interview, editada por Andy Warhol, com quem ela nunca se deu bem. Lançou dois livros de sucesso – Metropolitan Life (1978) e Social Studies (1981), ambos reunidos no The Fran Lebowitz Reader – reunião de textos cômicos que a transformaram em uma celebridade. Depois deles, Fran nunca mais publicou uma linha e, segundo ela, foi por nutrir grande reverência pela palavra escrita. Uma pessoa que tem em casa mais de 10 mil livros certamente não está fazendo tipo.
Desde então, o trabalho de Fran é falar em público. Faz de Conta que Nova York é uma Cidade é, no fundo, como um livro de queixas disfarçado de carta de amor escrito por uma arguta observadora. Eis algumas pérolas que você encontra ao longo da série.
“Não posso enfatizar o suficiente o quanto as pessoas deveriam conhecer o Queens Museum”
Eis uma locação chave no documentário. No Museu do Queens, Lebowitz caminha sobre uma maquete de Nova York, projetada pelo polêmico engenheiro Robert Moses – que só pensava em fazer rodovias e dizia que as pessoas atrapalhavam a cidade. Enquanto desliza pela obra, e tenta não quebrar algo como a Ponte de Queensboro, Fran conta situações de sua vida que envolvem música, literatura e seu asco por pessoas que andam pela rua com tapete de yoga embaixo do braço. Na entrevista concedida a Jimmy Fallon, ela fala mais sobre o museu.
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“Nova York nunca foi barata”
“As pessoas pensam que Nova York já foi barata. Nova York sempre foi mais cara do que qualquer outro lugar. Ninguém tem grana para morar na cidade, mesmo assim oito milhões de pessoas vivem aqui. Como fazemos isso? Nós não sabemos. Mas você pode vir para cá sem saber como vai se sustentar e, de alguma forma, vai conseguir se virar”.
“Bastaria uma viagem de metrô para o Dalai Lama surtar”
O metrô de Nova York é o quinto maior do mundo em extensão, possui 150 estações, 24 linhas e é vital para o funcionamento da cidade. Na série, Fran reclama da demora dos trens e relembra quando a estação mais perto da sua casa, a 23rd Street, ficou fechada por quatro meses para reparos. Entre os itens de manutenção, estava a promessa de eliminação do mal cheiro e a instalação de mosaicos de cachorros posando como humanos do artista William Wegman. Quando reabriu, o mal cheiro persistia, azulejos continuavam quebrados, mas agora, que maravilha, havia arte nas paredes da estação! “O artista que me desculpe, mas o metrô é o último lugar onde eu quero ver arte”, disse Fran.
“Nada é permanente em Nova York”
Uma das principais locações da série é o The Players, clube social privado em Gramercy Park que foi fundado pelo irmão do assassino de Abraham Lincoln. Fran conta essa história e podemos matar a curiosidade vendo imagens do lugar – o clube é exclusivo para sócios, que devem ser aprovados por um conselho. Lá dentro, ela conversa com Scorsese enquanto alguns membros jogam sinuca. Lebowitz diz saber que a Nova York que conheceu nos anos 1970 não existe mais e lembra quando a cidade costumava ser repleta de jornais que entupiam as lixeiras. “Eu vi o ex-prefeito Bloomberg dizendo que as cadeiras na Times Square seriam permanentes. Eu pensei: “seu caipira. O que é permanente em Nova York?”.
“O que é que não tem em Nova York?”
Em hipótese alguma Fran Lebowitz pensa em se mudar para outra cidade. Quando os vizinhos a encontram com malas no hall do prédio, aquilo quer dizer trabalho e não férias. “Eu preciso sair de casa para ganhar dinheiro para continuar morando e gastando em Nova York”. Quando Marty pergunta o que as pessoas vêm procurar na cidade, ela é sucinta: “Nova York! Não importa o lugar de onde as pessoas venham, qualquer lugar do mundo não é Nova York.”
“Pense antes de falar, leia antes de pensar”
Fran não consegue se desfazer de um livro, mesmo que ele seja ruim. Não à toa, ela tem mais de dez mil títulos em casa. Na série, um dos lugares que ela visita é a Argosy Bookstore, a mais antiga livraria de Manhattan. O local virou sinônimo de resistência, tendo em vista a localização, quase ao lado do Central Park. Os proprietários não cederam à especulação imobiliária das últimas décadas que mudou o entorno desde a inauguração da loja, em 1925.
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“Pense antes de falar, leia antes de pensar” é um aforisma de Fran que está impresso em pins que são vendidos na Biblioteca Pública de Nova York. Trata-se de uma frase que consta em um texto publicado pela autora na revista Newsweek, em 1978. A continuação da frase diz: “Uma atitude sábia em qualquer idade, mas principalmente quando se tem 17 anos e o perigo de tirar conclusões irritantes é maior.”