Nas mesas italianas: um roteiro gastronômico pela Toscana
De Florença ao Chianti, descubra a fantástica gastronomia dos mercados, restaurantes, cantinas, osterias, trattorias e outras portinhas. Mangiare!
Reza a história da Toscana – ou Toscânia, as duas formas são aceitas em português – que o nome da região se deve aos seus primeiros habitantes: os etruscos, a quem os romanos chamavam de “tuscus”. Mas, no que respeita à gastronomia da região, é tentador fazer outro jogo de palavras: ler Toscana como uma derivação de “tosco”. É que, entre vales amplos, filas de ciprestes e cidades medievais belíssimas, comem-se, essencialmente, pratos toscos, rudes, muito pouco refinados, que dispensam malabarismos ou artefatos culinários. Não pense, porém, que isso é uma crítica. Pelo contrário, é o maior dos elogios. Os pratos são toscos porque a cozinha toscana valoriza, sobretudo, os produtos. E os produtos da região não são apenas bons: são dos melhores que se podem encontrar na Itália.
Quando se fala sobre a Toscana, é natural começar pelo seu destino primordial, Florença. Mesmo quando o assunto é comida. Há tanto para visitar na terra dos Medici, berço do Renascimento, que é importante ir repondo as energias à mesa, várias vezes ao dia. O Da Nerbone, no piso térreo do Mercato Centrale, ou de San Lorenzo, é um ótimo ponto de partida, sobretudo para provar uma especialidade local: o lampredotto, uma sanduíche de bucho de boi devidamente cozido num caldo enriquecido com especiarias. Pode soar barra-pesada, mas vale muito a experiência: a carne é muito tenra e aromática e, ao contrário do que se possa pensar, nada indigesta.
Nas imediações do mercado, a pequena e sexagenária Trattoria Mario é palco recorrente de concentrações de gente esfomeada, tanto locais como turistas, já que consta da maioria dos guias dedicados à cidade. Felizmente, a fama não mudou a sua personalidade. O que muda aqui, e todos os dias, é o cardápio, conforme o que os donos trazem a cada manhã do mercado. No entanto, há receitas toscanas que têm lugar cativo, casos da ribollita, uma sopa toscana à base de pão e vegetais, do bollito misto, uma mistura de carnes cozidas e da famosa bistecca alla florentina, uma posta de carne generosa grelhada no carvão. Convém chegar cedo, já que não só não aceitam reservas como certos pratos do dia acabam depressa, e ir com disponibilidade para partilhar uma pequena mesa com desconhecidos. Faz parte do ritual.
Igualmente famoso, mas noutro campeonato, é o Cibrèo, de Fabio Picchi, talvez a maior e mais carismática figura da restauração florentina. Quando abriu o restaurante, em 1979, Picchi batizou-o dessa forma – “cibrèo” é a palavra italiana para fricassé – para homenagear a sua receita favorita de família. Hoje, o Cibrèo é apenas o topo de gama dos vários espaços que o chef explora na cidade. Não há menu impresso, a cozinha é de mercado e varia conforme as estações, mas há clássicos como o flan de ricotta, o coelho recheado ou o inevitável cibrèo.
Na esquina contígua, Picchi tem uma trattoria com o mesmo nome e a mesma cozinha, em versão mais informal e econômica. Do outro lado, o Ciblèo, onde faz uma fusão improvável entre cozinha toscana e asiática. Em frente, há também um café. E, no Teatro del Sale, onde a sua mulher faz direção de atores, é também dele o restaurante, aqui em versão bufê, com os cozinheiros a gritarem para a sala cada vez que sai um prato novo. Um espetáculo dentro do espetáculo. E tudo no mesmo quarteirão.
Para outro tipo de experiência, mais refinada mas nem por isso menos estimulante, duas sugestões na margem sul do Arno, ou Oltrarno, menos turística, porém mais fervilhante e genuína: a Osteria Personale, onde o chef Matteo Fantini pratica uma cozinha sazonal e contemporânea que reinterpreta e celebra os sabores locais, e o Il Santo Bevittore, que junta o mesmo estilo de propostas gastronômicas a uma lista de vinhos que faz jus à tradução do nome: o santo bebedor. Na porta ao lado, o Il Santino, dos mesmos donos, é uma boa opção para o tradicional aperitivo italiano de final de tarde.
É também em Oltrarno que está outro dos restaurantes mais originais de Florença. O seu nome é Il Magazzino e se autointitula de “Osteria Tripperia”. Ou seja, é uma casa especializada em vísceras e outras partes menos nobre dos animais. Daí resultam pratos como um célebre carpaccio de língua, almôndegas de bucho ou chitarra – um tipo de pasta da região de Abruzzo – com tripa. Tudo bem apresentado e com muito sabor.
Saindo de Florença em direção a Siena, atravessamos a região de Chianti, famosa pelos vinhos. Aqui, há duas paragens obrigatórias. Primeira, a Antica Macelleria Fallorni, na pitoresca vila de Greve in Chianti. Tal como o nome indica, é um antigo açougue (macelleria) com uma produção própria de embutidos feitos a partir das carnes locais, como o javali selvagem ou o porco de raça cinta senese. Tanto é possível comprar para levar como provar no local, no pequeno bistrô que ali funciona.
Uns quilômetros ao sul em Panzano in Chianti, o monumento principal é a Antica Macelleria Cecchini, de Dario Cecchini, um cara bem-humorado, cheio de frases feitas na ponta da língua. Eis uma delas: “É melhor gastar dinheiro em carne que em medicamentos”. O açougue, cheio de produtos sedutores na vitrine, é só uma amostra do que se pode encontrar por ali – três restaurantes diferentes, cada qual com o seu conceito: o Dario DOC é o mais informal, sem reservas, abre apenas aos almoços, com três menus fixos de comida rápida mas saborosa: hambúrguer, tártaro, porco assado e muitos legumes a acompanhar.
Na cozinha do açougue fica o Solociccia, onde, numa mesa coletiva, são servidos pratos que aproveitam todas as partes da vaca, da cabeça até a cauda. Finalmente, a Officina della Bistecca é o local ideal para apreciar os cortes mais típicos da região: a bistecca fiorentina, a bistecca a panzanese ou a costata, todos eles servidos em um menu fixo. Em qualquer um dos três restaurantes, o cliente pode levar o seu próprio vinho sem pagar taxa de rolha. O que dá muito jeito, especialmente em Chianti.
Ainda antes de chegar a Siena, um desvio rápido para Monteriggioni: nessa pequena vila medieval, fortificada, se encontra o Bar dell”Orso, ótimo local para parar tanto à hora da refeição, e provar um prato de qualquer receita típica da Toscana, como fora dela, e ficar pelo copo de vinho e uma tábua de queijos e salumi, de preferência na esplanada. Para quem fica indeciso na hora de escolher, há uma opção interessante que permite combinar pequenas porções de diferentes pastas no mesmo prato.
Mal chega a Siena, a maioria dos visitantes segue diretamente para a ampla e imponente Piazza del Campo, onde, claro, não faltam restaurantes. Deixe-os para os turistas incautos e procure antes pelo Grotta di Santa Caterina. Ou melhor, pelo Bagoga, que é como os locais o conhecem: é também essa a alcunha do seu chef e proprietário Pierino Fagnani, que, nos anos 70, trocou uma carreira de jóquei nas famosas corridas Palio di Siena por uma de cozinheiro. Bagoga é, acima de tudo, um defensor e estudioso da cozinha senese, de Siena. O seu pici al ragu bianco di cinta senese é um prato imperdível: o pici é uma espécie de spaghetti gordo, feito a mão e típico da Toscana, servido, nesse caso, com ragu bianco (sem tomate) do porco local, o tal cinta senese, conhecido pelo sabor intenso e pela carne suculenta.
Antes de partir para outras paragens, é essencial passar pelo deli de Gino Cacino di Angelo (Piazza del Mercato, 31) e levar um dos sanduíches (panini) que ali são feitos com uma seleção cuidada de produtos locais, principalmente queijos e carnes frios de todos os gêneros. Há um cardápio fixo e sugestões diárias que vão sendo acrescentadas a mão. Se encontrar o próprio Angelo, um careca barbudo e musculado, peça-lhe uma sugestão – ele sabe como surpreender os clientes.
Ao sul de Siena, na região de Val d”Orcia, sucedem-se as estradas sinuosas ladeadas por ciprestes. Felizmente, algumas delas vão dar em excelentes restaurantes. É o caso do Dopolavoro La Foce, muito perto de Chianciano Terme. A história merece ser contada: a propriedade La Foce, com cerca de 3 mil hectares, foi comprada por Antonio e Iris Origo, em 1924. O casal recuperou-a, deu-lhe vida e, consequentemente, trabalho a uma grande comunidade de agricultores da região. Durante a Segunda Guerra Mundial, o casal acolheu na propriedade inúmeras crianças refugiadas. O “dopolavoro” (depois do trabalho) era a antiga sala de convívio dos trabalhadores da fazenda, reaberta em 2012 como um restaurante que aposta ao máximo nos produtos locais – muitos deles vêm da sua própria horta. Há massas feitas a mão, carne local feita no churrasco, saladas frescas e até uma seleção de tapas para quem quiser apenas aproveitar a sombra do pátio no meio da tarde.
Ainda na mesma zona, mas já em Pienza, está a trattoria Latte di Luna, famosa pelo leitão assado de pele crocante, pela sopa de cogumelos e, mais uma vez, pelo pici artesanal. O mesmo pici – nesse caso, all”anatra, ou seja, com ragu de pato – é também a vedete da Osteria La Porta, já em Montichiello, um pequeníssimo burgo medieval em cujas imediações fica a mais famosa paisagem de ciprestes da Toscana, fotografada e reproduzida vezes sem conta. As melhores mesas são as do terraço, que tem vista para os ditos ciprestes. Ainda em Montichiello, e dos mesmos donos, existe a Cantina La Porta, que tem a mesma cozinha mas num ambiente mais moderno e relaxado.
Mas chega de pici, ciprestes e vilas medievais. É possível comer e ver diferente sem sair da Toscana. A região tem uma costa com mais de 400 quilômetros, cujo extremo sul é a península do Monte Argentario. E é numa das estreitas línguas de terra que a ligam ao continente que se encontra a Trattoria del Pesce Povero (Via delle Saline, 7). É um restaurante simples, descontraído, com mesas no exterior, ideal para visitar depois de uns mergulhos no mar, ainda de chinelo e calção. As propostas vão variando conforme o peixe e o marisco que chegaram nesse dia. O menu é fixo, inclui antipasto, primo e secondo piatto, e o cliente o compõe de acordo com o que houver. Se for o prato do dia, o spaghetti alle vongole torna-se obrigatório.
Ainda na costa, Livorno é capaz de não encantar à primeira vista. Nem à segunda. É preciso dar-lhe tempo. Tem um charme próprio de cidade portuária, algo decadente. O cacciuco é o prato local mais consumido – uma espécie de sopa de peixe e frutos do mar, muito bem recheada, parente afastado da caldeirada portuguesa. E, se muitos tentam modernizá-la, na trattoria Da Galileo a receita ainda é a original, de 1959, do seu fundador Ivo Piagneri – morreu, em 2009, mas ainda é conhecido como o rei do cacciuco. Não admira, por isso, que seja dos lugares mais concorridos da cidade. Outra boa sugestão é o bar/restaurante La Barrocciaia, famoso pelos panini à base de produtos locais regados com um molho verde que é segredo de família.
Lucca é uma cidade quase costeira – fica a 20 quilômetros do mar -, onde é fácil se perder por entre ruas quase labirínticas. Importante, mesmo que se perca, é conseguir encontrar o caminho para o Buca di Santo Antonio, restaurante que funciona, pelo menos, desde o século 18, e onde é possível provar, por exemplo, a tradicional sopa de farro, uma variedade de trigo muito usada nessa região. É recomendável guardar algum tempo para subir até à povoação de Colonnata, no extremo noroeste da Toscana, já nos Alpes Apuanos. E por quê? Porque é lá que se produz o lardo, gordura de porco curada com especiarias em blocos de mármore. Uma espécie de toucinho dos deuses. Basta uma pequeníssima fatia para tornar uma simples torrada em algo mágico.
Antes de regressar ao ponto de partida, uma última sugestão de parada: Pistoia, uma espécie de pequena Florença, com largos e edifícios muito bonitos, e uma vida cultural ativa – um dos maiores festivais de blues da Europa realiza-se aqui, todos os anos, em julho. O Voronoi, numa das pracinhas do centro histórico, não é o típico restaurante italiano, mas tem ambiente animado, coquetéis criativos e uma cozinha que arrisca bem mais que o normal por essas paragens: no ano passado, andavam a servir um ovo panado com fondue de parmigiano com 24 meses de cura e raspas de trufa fresca de San Miniato. É ou não uma boa forma de acabar isso?
10 coisas pra saber antes de comer na Toscana
- O pão, regra geral, tem ótima textura, mas não leva sal.
- Mas o azeite é tão bom que rapidamente faz esquecer a insipidez do pão.
- Se quer comer bem, peça pasta. Há 95% de hipóteses de vir al dente.
- Os toscanos gostam muito de vísceras: estômago, tripa, língua…
- …e de carne selvagem: sobretudo javali e coelho.
- Devido à matéria-prima, são bons em fazer estufados e pratos de cozedura longa.
- É possível fazer refeições só à base de queijos e embutidos. Porque há muitos e bons.
- Muitas das sobremesas levam álcool – sobretudo amaretto – na sua confecção.
- E anis – os toscanos gostam de sabores anisados.
- Não se assuste, “morbido”, em italiano, quer dizer cremoso. E “burro” é manteiga.
Confira um roteiro completo por 13 cidades da Toscana aqui