Deleite turco
Uma excursão de ônibus pela Turquia, de Istambul à Capadócia, com paisagens de cair o queixo, ruínas romanas e bizantinas, islamismo soft, bazares gigantescos, iogurte com papoula, doces de mel e novas amizades no final
“Excursão”, segundo o Dicionário Aurélio, significa “viagem de recreio, às vezes em grupo e com guia”. Eu incluiria um ônibus desconfortável e, na parte do guia, “com piadinhasna ponta da língua”. Mas essa minha visão tosca de excursão morreu na Turquia, que rodei com outras 14 pessoas em um pacote da Abreu. O ônibus não era um primor, mas a guia turca, falando ótimo português de Portugal, sim. E muito mais veio de brinde.
Foram 11 dias, 2800 quilômetros (450 desses de avião entre Istambul e Ancara), oito cidades, cinco confortáveis hotéis quatro-estrelas e muitos doces de mel na mala. A turma: quatro casais, quatro amigas na faixa dos 35 anos, duas aposentadas. E eu. A comandar o exército Brancaleone, a admirável Ilknur, de 45 anos, graduada em literatura fancesa. Sem véu, mas muçulmana, a guia não desgrudava do iPad que mostrava a nossa localização em tempo real.
Talvez você não saiba, mas o Mar de Mármara está pra peixe. Enquanto a Europa vive essa crise sem fim, a Turquia cresce: em 2011, 8,5%. O skyline de Istambul tem minaretes e arranha céus, e pelas ruas há semanas de moda, shows de jazz, restaurantes contemporâneos. A turquia que viu tantas civilizações ao longo dos milênios é também uma potência turística, o sexto país mais visitado do mundo. Em 2011, 89 mil brasileiros estiveram lá.
Minha primeira manhã em Istambul foi uma sexta-feira, mas não havia tempo para ser casual. Pouco depois das 5 da madrugada eu já estava com o grupo no saguão do Midtown, hotel moderninho na parte europeia da cidade. Embora o escritor turco Orhan Pamuk, prêmio Nobel de 2006, tenha descrito Istambul como cidade “infinita e desprovida de centro”, eu estava exatamente no centro da Istambul que me interessava: entre cafés, pubs e bons restaurantes. A antiga Constantinopla, a velha capital do Império Romano do Oriente (cuja tomada pelos turcos otomanos, em 1453, deu luz à Idade Moderna), tem mais de 10 milhões de habitantes e é caótica, vibrante, com um trânsito digno de são Paulo. Vi meninas de saia curta e Ray-Ban Wayfarer, vitrines da Adidas, mulheres sem véu. “Cadê o Oriente?”, perguntávamos. Embora 99,8% da população turca seja muçulmana, o regime é secular – religião e poder não se misturam. Talvez por isso, como Ilknur contou, a exigência das preces diárias seja relaxada. “Aqui as pessoas trabalham demais. Poucos têm tempo de rezar cinco vezes ao dia.” O mesmo liberalismo eu vi no consumo de bebidas alcoólicas: bebem-se muito cerveja e raki, um licor de anis e uvas secas. E, diferentemente de outros países muçulmanos, é possível abrir uma cerveja em qualquer bar desde que você seja maior de 18 anos.
Nosso ônibus seguiu à tarde em direção à Igreja de Chora. Depois de apreciar mosaicos e afrescos do século 14, dei um perdido no grupo na hora do kebab. Como a seleção de restaurantes de excursões não é lá essas coisas, eis uma estratégia que partilho com você. Optei pelo Asitane, ao lado da igreja, que serve “receitas secretas dos cozinheiros dos antigos sultões otomanos”. Tomei uma sopa de amêndoas com iogurte seco, pasta de pimentão vermelho e menta. Se a receita era mesmo sultanesca, não sei. O preço certamente não era: 12 liras turcas (R$ 14). No dia seguinte fomos desbravar Sultanahmet, região de três must-see de Istambul: a tão esperada Basílica de Santa Sofia, marco dos tempos bizantino e otomano; a Mesquita Azul (que não é azul), repleta de arte muçulmana e com mais de 20 mil peças de azulejos desenhados a mão; e o Palácio Topkapi, que se distribui por 700 quilômetros quadrados. O Palácio, cheio de pavilhões e pátios internos, foi inaugurado em 1459 a mando do sultão Mehmet 2º, o “Conquistador de Constantinopla”, e a partir daí se tornou a sede do poder otomano, residência dos sultões por 400 anos. Há ali coleções de diamantes e de porcelanas, exposição de armas, carruagens, trajes reais. A sala mais concorrida é a do harém, que chegou a ter 700 mulherese concubinas no século 17. O Palácio é lindo, dourado, com as portas e janelas mais bonitas que já vi. Pena não poder apreciar a linda vista do Mar de Mármara – as três horas estipuladas pela guia para a visita davam apenas para algumas salas. Fiquei sem ver as barbas de Maomé.
No dia seguinte fizemos um cruzeiro pelos 32 quilômetros do Estreito de Bósforo, canal que liga o Mar de Mármara ao Mar Negro e divide o lado asiático do lado europeu de Istambul. Nas margens do canal se alinham mansões e palácios construídos entre os séculos 17 e 19, hoje preservados. Depois fomos ao sensorial mercado de especiarias, um passeio obrigatório e que me fez perder a fome do almoço de tanto experimentar. Dá-lhe caviar russo, chás, doces de mel, damascos gigantes…
Alho e Ataturk
No fim do domingo chegou a hora de trocar Istambul por Ancara, a capital do país. Empaquei todo mundo no raio X do aeroporto, pois o espremedor de alho que comprei no mercado pareceu aos agentes uma arma letal. Virei motivo de chacota. No desembarque, a surpresa: simpática, Ancara lembra uma cidade americana, com casas com gramado na fente. Mas as fábricas de cimento dos arredores apagam o céu. Ali fomos conhecer o mausoléu de Ataturk, o “pai dos turcos”, e a suposta aula de moral e cívica foi na verdade um grande programa. Mustafa Kemal estabeleceu a Turquia moderna sobre os escombros do velho Império Otomano, em 1923, fazendo o país adotar o regime secular (relegando o islamismo à dimensão religiosa) e universalizando o voto entre as mulheres. Dentro do mausoléu está o Museu da Guerra da Independência, no qual os quadros ensinam sobre as batalhas que ele comandou para reunificar a Turquia e implantar a República. Viramos fãs do cara.
Deixamos Ancara de ônibus rumo à Capadócia, 340 quilômetros adiante, com parada para admirar um gigantesco lago salgado, o Tuz, de onde é extraído 70% do sal consumido no país. Em seguida visitamos a cidade subterrânea de Derinkoyu, uma das 35 da área. Ficamos maravilhados com as casas construídas dentro da terra. Cláudia Mota, a cearense do grupo, agradeceu emocionada a todos por ter conseguido vencer a claustrofobia e descer com a ajuda de nossas mãos, ombros e incentivos.
Um momento especial. A última parada era em Nevsenir, cidade-base para a primeira noite na Capadócia. Se, por um erro de organização, não dormimos em nenhum hotel escavado na rocha, a vingança veio a cavalo – fomos curtir um banho turco. Eu e mais sete mulheres da turma nos dedicamos ao ritual de três etapas. Na primeira, ficamos todas nuas numa sauna. Para conter o constrangimento, o papo rolou solto: Gláucia Tiemi falou da fazenda em Jesuítas (PR) onde mora; a curitibana Dorenides Guerra, de seus relacionamentos. Aí chegou a hora das “esfregadas”. Com bucha e sabão, quatro turcas, que juntas deviam pesar meia tonelada, se precipitaram sobre nós. Encerramos com uma massagem terapêutica e um descanso na piscina, quando tive ótima conversa com Marly Vieira, a pisciana do grupo.
Os balões que colorem diariamente o céu da Capadócia – Foto: Laura Capanema
O dia seguinte era o mais esperado, o do voo de balão, e o céu azul parecia fazer parte do contrato. Entramos no cesto gigante todos os 15, mais um casal de cariocas e um grupo de americanas. Durante o sobrevoo de uma hora, o comandanteme explicou que nenhum lugar no mundo oferece condições climáticas tão favoráveis ao balonismo quanto a Capadócia. Voa-se até com neve. A região vista do alto é bonita e estranha. Rochas avermelhadas, vales ondulados, formações fálicas sugestivas. O espetáculo também é bonito no céu, que fica repleto de balões. Há dezenas de outros passeios legais ali: caminhadas, trilhas,cavalgadas e roteiros de bicicleta, bom para quem pretende contemplar a paisagem com a calma que ela merece. De noite fomos assistir ao transe coreográfico dos dervixes em Konya, pertinho dali. Por quase uma hora ficamos lá, parados, enquanto eles rodopiavam, rodopiavam, rodopiavam. Os dervixes são sufis, uma corrente mística do Islã – e rodopiar é a maneira com que dizem chegar ao êxtase. Naquela noite o meu cansaço era tamanho que apaguei no ônibus.
A equipe da Globo na Capadócia – Foto: Rede Globo/João Miguel Júnior
Se dizem que a Capadócia é terra de São Jorge, faltou combinar com os capadócios. Sua única representação está na Capela de Santa Catarina, uma das muitas do Museu a Céu Aberto de Goreme, Patrimônio da Unesco. Turcos comquem falei ignoravam que o padroeiro da Inglaterra e do Corinthians nascera ali. A próxima novela das 9 da Globo, com cenas filmadas na Capadócia, chama-se, aliás, Salve Jorge.
No dia seguinte enfentamos 680 quilômetros de estrada, com paradas para o iogurte com papoula, meu vício turco. Da janela eu via mesquitas coloridas, plantações de papoula, ovelhas. Ao chegar a Éfeso, visitamos o monte Koressos, local que, segundo a tradição, foi morada da Virgem Maria. Há uma fonte com água benta, que peguei para minha mãe, e um lugar para deixar bilhetinhos para Maria. Depois visitamos as ruínas greco-romanas, com direito ao templo do Imperador Adriano (o próprio) e um belo anfiteatro. No fim do dia houve ainda uma passagem pelas ruínas de Troia, a cidade da Helena e do cavalo com gregos dentro. Passamos a noite em um hotel-spa de Izmir, cidade linda com vista para o Egeu. O hotel mesclava luxo e cafonice, o elefante de cristal Swarovski da entrada a merecer menção honrosa.
O retorno a Istambul foi na manhã do outro sábado. Dia livre. Eu voltei a Sultanahmet para testar “o melhor sorvete do mundo”, que se come de garfo e faca, na sorveteria Mado, dica de um amigo. Peça o trio em que vêm baunilha, pistache e laranja com calda de famboesa. No fim da tarde fui ao famoso Grande Bazar, de quase 5 mil lojas. Comprovei o que haviam me dito: não há nada ali que não se encontre em outros lugares do país. Para evitar a muvuca, vá no fim da tarde. As muitas vezes que tive de ouvir Michel Teló valeram: saí de lá com uma caixinha de cerâmica linda por € 4.
Meus colegas de excursão eram em sua grande maioria veteranos da “modalidade”. Gostam da segurança do grupo e de “conhecer pessoas incríveis”, como dizem. Não sei se me tornarei adepta, mas posso dizer que ter ido à Turquia desse jeito foi lindo. Conhecer pessoas incríveis também.
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