Sempre associei Antuérpia aos diamantes. Lembrei que era a capital dessas preciosidades pela ação de Franky Quatro Dedos, vivido por Benicio del Toro em Snatch – Porcos e Diamantes. Com três comparsas, Franky vai à cidade e rouba vários, entre eles uma pedra de 84 quilates. Essa joia rendeu desdobramentos retumbantes na vida dos personagens.
Óbvio, é uma ficção, você não é gatuno(a) e talvez nem compre um diamante lá. Mas, sim, a estada em Antuérpia proporciona sensações marcantes ao viajante, ainda mais àquele que não preza lugares tão turísticos, com fila para todo lado. Alcançada em 50 minutos de trem a partir do aeroporto de Amsterdã ou 40 minutos a partir de Bruxelas, a cidade habitada por 500 mil pessoas, e com preço médio europeu, é cheia de bons motivos para ser o começo de uma jornada belga.
É chegar e notar que Antuérpia parece a Holanda, uma Flandres genuína. A língua oficial dessa que é a região norte da Bélgica, o flamengo, ou flemish, é, na prática, o holandês. É tipo a gente a ouvir o português luso. A semelhança também aparece pelas construções de tijolo que se mesclam às modernas, pelas bikes em profusão, pelo tram, um meio de transporte delicioso e eficiente que tilinta para te atentar que está passando.
Ok, sem moças na vitrine ou coffee shops, mas parece ainda mais a Holanda por ser um lugar plano que pede caminhadas, com moda e arte aqui e acolá. Até as placas dos logradouros se orgulham de palavras como straat (rua, em flamengo). E é bom se acostumar com essas placas para se situar. Na Bélgica, o melhor para se deslocar é andar e pedalar. As cidades são pequenas, tudo é perto.
Amante diamante
O acesso mais usual à cidade é pelo desembarque na formosura da Centraal Station, onde há um parque de diversões anexo, o Comics Station. Pequeno, tem como temática um orgulho nacional: os quadrinhos. É um tributo a Smurfs, Jommeke e outros clássicos do gênero. E é um bom passeio também para fazer com as crianças, pois logo ali do lado já havia um zoológico.
Mas os diamantes são um atrativo maior, sobretudo para os adultos que vararam noites nos anos 1990 jogando Sonic. Para barganhar um anel, o lugar é a Square Mile. Existem joalherias enormes como a Diamondland, que organiza visitas gratuitas às suas instalações.
Bom para entender como 80% das pedras de qualidade do mundo são lapidadas na cidade, algo que representa cerca de 8% do PIB belga. Tem de garimpar, pois há tudo que é preço. Veem-se mestres ourives, compreende-se a classificação dos diamantes… E a coisa vai se revigorando. Antuérpia até viu fechar o Diamantmuseum, mas já inaugurou outro grandioso museu, em maio de 2018: o Diva.
Antuérpia fashion
Vão-se os anéis, vem um quê fashion, um fuzuê de gente meio moderninha, meio tradicionalista. A cidade tem um vínculo com a moda desde o século 15, quando o comércio e o tingimento de roupas foram a chave para torná-la uma das mais-mais no ramo. Outra razão da fama da moda belga atual é o The Antwerp Six, grupo de seis estilistas de vanguarda e cultuados que saíram da Royal Academy of Fine Arts: Dirk van Saene, Dries van Noten, Walter van Beirendonck, Ann Demeulemeester, Dirk Bikkembergs e Marina Yee.
Daí tantas grifes descoladas no quadrilátero entre a Wapper e a Nationalestraat, que sedia o museu da moda, o MoMu, atualmente fechado para renovações. Outra rua boa para comprar é a Meir, também famosa pela The Chocolate Line, loja com deleites instalada em um palácio que pertenceu a Napoleão.
Moderno x Antigo
Exemplão da hibridez de Antuérpia, no povo e nas construções, é o Port House. Ele está para Zaha Hadid como a Sagrada Família de Barcelona está para Antoni Gaudí, já que a iraniana dona do Prêmio Pritzke, o Nobel de arquitetura, não pôde ver sua obra-estrondo finalizada – faleceu seis meses antes.
No segundo maior porto de embarque da Europa, Zaha concebeu uma construção que “flutua” sobre o antigo edifício, acoplada nele mas respeitando suas fachadas. Sustentável e envidraçada, reflete os tons do céu de Antuérpia. É de embasbacar a iluminação natural, o pátio, a biblioteca. Almoce pela região, quiçá um stoverij, que é um picadinho no molho de cerveja escura; ou, já que estamos no porto, um sole, peixe similar ao linguado.
Uma fatia tradicionalista dos nativos considerou a Port House moderna demais, segundo minha enquete informal. Foi do mesmo jeito com o MAS, museu instalado numa edificação de arenito, expoente provocador, logo à beira do Rio Escalda – o acesso ao seu terraço é gratuito e o restaurante, o ‘t Zilte, tem três estrelas no Michelin.
Edificações antigas, porém, me seduzem mais. As mais legais se concentram na meiúca da pequena cidade, o gracioso centro histórico que pede de uma a duas tardes agradáveis gastando sola de sapato. É andar e deparar com atrativos como o Vlaeykensgang, um beco medieval labiríntico e intrigante; o Plantin-Moretus, museu que retrata os primórdios da imprensa; e o Museum Mayer van den Bergh, com obras góticas e renascentistas de grandes mestres flamengos das artes. Caso de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), pintor holandês radicado em Antuérpia que, aliás, protagonizará a mostra inaugural de outro complexo pujante, o Museu Real de Belas Artes, que virá em 2019 como o maior museu do país.
Rubão e o idolatrável
Outro capítulo legal, convicções à parte, são as igrejas. Prodígios como a barroca Saint Carolus Borromeus e a gótico-romana Catedral de Nossa Senhora, edificada entre 1352 e 1521. Com uma torre de 123 metros, pode ser vista de vários pontos da cidade. Conforme ela vai se aproximando, vai batendo um furor como o que senti no Duomo de Florença.
A igrejona passou por poucas e boas: um incêndio em 1533, vandalismo calvinista em 1581, ameaça de derrubada pelos franceses que dominavam o território no século 18, entre outras. Lá dentro, desbunde e torcicolo de tanto olhar para cima: estão ali alguns dos golaços do ídolo local, o maior dos mestres do barroco flamengo, o Van Gogh flemish, Peter Paul Rubens (1577-1640). Ligue-se nos gigantescos e lindos trípticos como A Elevação da Cruz (1610) e A Ressurreição de Cristo (1612).
Rubão, porém, não ficou somente no sagrado. O cara mereceu até estátua ali na Groenplaats, praça rodeada de restaurantes e bares. Pintou tudo que é segmento, quadros históricos que retratavam cães, cavalos, mães amamentando. Na linha do Renascimento italiano – aprendeu muito com Caravaggio -, só que mais naturalista. Rubens também foi escultor, tapeceiro, escritor e até diplomata/espião a serviço de Flandres, de tão simpático e afável que era. A história dele está toda retratada ali perto da catedral, na Rubenshuis, a velha mansão do pintor. Com jardim e quase inalterada desde o século 17, exibe uma coleção que sintetiza como se vivia à época.
Seguindo pelo Centro, salta à vista a razão de a majoritariamente católica Bélgica ter feito uma revolução para se separar da protestante Holanda. Os belgas se declararam independentes do Reino Unido dos Países Baixos em 1830. É que há até figuras sacras pequenas, quase subliminares, perto de postes e acima de placas de ruas, como na Sint-Pieter en Paullus, coisa do século 16.
Visita boa nessa região é a Grote Markt, praça com a majestosa construção da Stadhuis, a prefeitura. No meio dela, uma estátua desabrocha. É Sílvio Brabo, figura mítica, arremessando uma mão. Reza a lenda que havia um gigante no Rio Escalda que exigia pagamento a todos os que nele navegavam; cortava a mão de quem se recusava a pagar. Até que Brabo duelou com esse gigante, o matou, decepou sua mão e a atirou no rio. Daí as antwerpse handjes, mãozinhas-molde para biscoitos e deliciosos chocolates, como os da Leonidas, loja onipresente.
Mini-Berlim
Antuérpia ostenta algo de mini-Berlim, ambas velhas e novas, clássicas e descoladas, com uma inegável tendência hipster. Então convém falar da noite. Adeptos de um jantar com pegada happy hour procuram ruas do Centro como a Suikerrui, endereço do De Bomma, “Da Vovó”, em português, como denuncia o xadrez dos aventais do staff.
Tendência mundial, ali o gim transborda como base de drinques – em geral, eles saem de € 7 a € 12 país afora. Jantei a típica chipolata, uma linguiça fina enrolada em espiral, e a água foi cortesia. Baladas? Existe jazz pelas ruas Hoogstraat, Pelgrimstraat e Pieter Potstraat; rock na Stadswaag; e eletrônico e afins nas imediações da Centraal Station.
Seja qual for o seu perfil, você está na Bélgica e quer cerveja, então bora considerar o Kulminator, um bar certeiro com seus 550 rótulos, alguns deles estocados há 25 anos. Um bom lugar para brindar ao Rubão, ao Sílvio Brabo, a Antuérpia.
De abril a junho, na primavera, o clima é agradável e as paisagens atingem o ápice. De julho a setembro, os turistas chegam em peso para os festivais e os preços sobem um pouco. Ainda que chuvoso, o outono, de setembro a novembro, deixa os bosques alaranjados. O inverno é rigoroso, venta muito – vale para quem procura os mercados de Natal de Bruxelas e Bruges.
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