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Belém e Ilha de Marajó: o combo bafônico do norte do Brasil

Festança de sonoras palavras indígenas, gastronomia criativa e paisagens deslumbrantes, essa dobradinha é um passeio pelo exuberante Brasil amazônico

Por Adriana Setti
Atualizado em 23 mar 2024, 07h21 - Publicado em 18 Maio 2017, 14h58
Pilha de frutas ovais que lembram um maracujá
O amarelinho é do bacurí...  (Mauricio Simonetti/TYBA/Divulgação)
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Parece outro idioma: priprioca, jambu, pirarucu, surubim, curimatá, tambaqui, taperebá, bacuri. E tem o céu que desaba em chuva morna. O rio que parece mar. A Amazônia na esquina. A devoção à Nossa Senhora de Nazaré. As revoadas de urubus. As mangueiras do tamanho de cogumelos atômicos. Tacacá na cuia no meio da tarde – e da calçada. Açaí salgado. Égua, aonde mais rola isso?! (E em que outro lugar do planeta “égua” não é apenas a mulher do cavalo?)

Belém, o destino mais exótico que você pode alcançar sem sair do Brasil, nem é tão longe assim. São 3h30 de voo a partir de São Paulo ou do Rio de Janeiro, menos do que os moradores dessas cidades demoram para chegar a Búzios ou a Ubatuba no fuzuê do feriadão.

E, ao alcance de um passeio de barco, lá está a grandiosidade da Ilha de Marajó – um mergulho na exuberante e vagarosa paisagem amazônica, com seus búfalos, seus lindos pássaros e seus manguezais que desembocam em praias.

Três cestos cheios até a boca da fruta açaí
…e esse roxinho é açaí (André Valentim/TYBA/Divulgação)

BELÉM

Nas duas últimas décadas, Belém fez um esforço louvável para se tornar mais interessante e palatável para o turista, com um projeto grandioso encabeçado pelo arquiteto Paulo Chaves, que foi secretário de Cultura do Pará (amado e criticado em idênticas proporções) e faleceu em 2021.

No centro histórico, a grande mudança se nota no complexo Feliz Lusitânia, que inclui o lindinho Forte do Presépio, a Casa das Onze Janelas, o Museu de Arte Sacra e a Catedral, além de outros edifícios que remetem aos áureos tempos do ciclo da borracha.

Praticamente tudo o que a cidade tem de mais belo foi erguido nesse período, entre o final do século 18 e o começo do 19, quando a cidade chegou a ser conhecida como a “Paris da América” e viveu a sua particular belle époque. Vem dessa época, também, a estrutura da Estação das Docas, que revitalizou a antiga área portuária.

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Garrafas de vidro penduradas por cordas amarradas ao pescoço vendem diversos tipos de líquidos. dos lados, garrafinhas também estão à venda, penduradas ao longo estande, e embaixo há uma pilha de cascas de árvore
As instagramáveis mandingas engarrafadas (Hans Von Manteuffel/TYBA/Divulgação)
Uma passarela ao lado do mar cheia de mesinhas e lojas se estende sob o crepúsculo
A Estação das Docas, um boulevard com restaurantes e, que maravilha!, ar-condicionado (Cesar Duarte/TYBA/Divulgação)

O pacote de atrações turísticas que arquitetou a virada belenense se completa com o Mangal das Garças. Inaugurado em 2005, o lugar é um bonito jardim amazônico, com 40 mil metros quadrados, à beira do Rio Guamá. Bom para um passeio no fim de tarde, tem borboletário, orquidário, laguinhos povoados por guarás, mirante e um bom restaurante.

“Anos atrás, muita gente achou que construir tudo isso era absurdo”, diz a produtora de vídeo Dany Colares. “Mas, hoje em dia, os moradores frequentam a Estação das Docas e o Mangal tanto quanto os turistas para comer, ver o pôr do sol, namorar e até pra fazer book de casamento.”

Açaí desgurmetizado

A primeira impressão é a que fica? Pois eu mal cheguei ao Ver-o-Peso e já topei com um sujeito pilando uma jibóia para dentro de uma garrafa coisa rotineira na parte mais instagramável do mercadão, onde benzedeiras e curandeiros oferecem seus enigmáticos pozinhos, suas loções e seus óleos que prometem a cura de unha encravada a dor de corno.

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Um espetáculo à parte é a ala dos peixes acomodada sob uma linda estrutura de ferro, em estilo art nouveau, importada da França e inaugurada em 1901. Logo ao lado, aparecem as barraquinhas das frutas e a sua melhor chance de provar sucos de mucuri, taperebá, bacuri, cupuaçu e outras exclusividades amazônicas por alguns tostões.

Nada de mel, granola, banana ou moranguinho. No Pará, o açaí acompanha o peixe frito na forma de um caldo grosso que não é nem salgado nem doce, misturado com farinha baguda (uma farofa grossa como areia que desafia as melhores dentições). Na hora do almoço, as barraquinhas que servem essa combinação ficam lotadas.

Na primeira colherada, achei apenas estranho. Já na segunda, glop, desceu rasgando, e uma lágrima ameaçou escorrer no canto do meu olho direito. Ciente de que eu passava por um momento difícil, o garçom me trouxe um pouco de gelo e açúcar. Em vão. Derrotada pelo açaí bruto, tracei o pirarucu a seco.

Quem preferir petiscos mais variados e amigos do paladar forasteiro pode arriscar um dos botecos que ocupam a parte mais próxima ao rio. Ali, a cerveja Tijuca, gelada, rola solta, embalando o carimbó e o tecnobrega no último volume, principalmente nos fins de semana.

Barcos lotados de frutas e outros produtos atracam no porto de Ver-o-Peso; em primeiro plano, mangas verdes e maduras empilhadas
Ir ao Ver-o-Peso cedinho pra espiar o desembarque de produtos é um programão (Hans Von Manteuffel/TYBA/Divulgação)
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Cinco da madruga é a hora que você precisa chegar às imediações do Ver-o-Peso para acompanhar o fotogênico desembarque das sementinhas que abastecem a Feira do Açaí, assim como o dos peixes. Como estava hospedada lá perto, pude ver de camarote como funcionam os bastidores do mercado.

Lá pela meia-noite, os caminhões de gelo já faziam fila nos arredores e dezenas de trabalhadores dormiam pelas calçadas (vida dura, duríssima). Em geral, os barcos começam a atracar lá pelas 3 ou 4 da madrugada. Fazer tudo na calada da noite é fundamental em um lugar tão quente, já que a luz e o calor podem estragar tanto o peixe como a fruta.

Uma grande e polêmica reforma do Ver-o-Peso está sendo fervorosamente discutida atualmente. A proposta ainda inclui a restauração do Solar da Beira, um lindo casarão que está caindo aos pedaços.

Sair da feira e entrar na Estação das Docas é quase como mudar de país. Subitamente, o mundo dá uma gourmetizada e acontece o milagre do ar-condicionado. O restaurante mais bacana para petiscar (um suspiro pelo bolinho de pato ao tucupi) e molhar a garganta é o Amazon Beer, que produz boas cervejas artesanais algumas aromatizadas com frutas amazônicas. E não dá pra sair de Belém sem passar na Cairu, cujo sorvete de açaí deveria ser tombado como patrimônio imaterial da humanidade, assim como a culinária paraense.

O tal do tacacá

Camarão cozido em meio a verduras verde-escuras
Outro imperdível: conhecer o Tacacá da Dona Maria (Tricia Vieira/DEDOC/Viagem e Turismo)
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A cozinha local é, provavelmente, a mais rica e original do Brasil. Não é à toa que chefs como Alex Atala, o espanhol Andoni Aduriz e tantos outros estão sempre em busca de referências por ali.

Recentemente alavancado, pelo menos no papel, o Polo de Gastronomia da Amazônia (um centro dedicado à cultura da culinária local) deve ser instalado na linda Casa das Onze Janelas, substituindo o atual acervo de arte contemporânea, que tem obras de artistas como Adriana Varejão e Cildo Meirelles. A escolha do lugar é motivo de outra polêmica, que acabou fazendo com que Alex Atala pipocasse do projeto.

Bafafá à parte, o tacacá é a street food número 1 de Belém. A tradição é tomar um lá pelas 5 da tarde e os locais juram que cura de ressaca a baixo-astral. Servido numa cuia, o caldo leva tucupi (suco extraído da raiz da mandioca-brava), temperos variados e goma de tapioca, além de camarão seco e jambu.

Este último ingrediente (também conhecido como “agrião-do-pará”) é um esporte radical para o paladar. A língua fica levemente amortecida, ao mesmo tempo que a saliva invade a boca. O tacacá está para Belém assim como o acarajé está para Salvador: cada um tem o seu preferido, e isso é tão imutável quanto a paixão por um time de futebol. Uma das maiores “torcidas” é a do Tacacá da Dona Maria (ela faleceu, mas a tradição se mantém com seu filho), próximo à Igreja de Nazaré. Também é pop o Tacacá do Renato, que fica relativamente perto do aeroporto.

MARAJÓ

Pratos e máscaras artesanais com desenhos diferentes e tribais penduradas em uma parede
Peças do artesanato de Marajoara (Edu Lyra/ Pulsar Imagens/Viagem e Turismo)
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Agora é logo ali

Logo de cara, você fará duas constatações sobre a maior ilha fluviomarinha do mundo. O nome dela é Marajó, e tudo por ali é mais grandioso e belo do que você imaginava. Na foz do Rio Amazonas, às margens do Atlântico, esse destino remoto e parado no tempo ficou mais perto de Belém recentemente. Operando desde novembro de 2015, o Tapajós Expresso transformou perrengue em passeio: vai da capital paraense a Soure, o principal vilarejo marajoara, em apenas 1h45.

Até então, a travessia demandava cinco horas entre ferry, van e barquinho. O catamarã sai do Terminal Hidroviário (ao lado da Estação das Docas) às 9 horas da manhã e retorna às 6 da tarde de Soure, de segunda a sábado o bilhete pode ser comprado pela internet. Com capacidade para 132 pessoas, o barco tem banheiros, bar, TVs e wi-fi grátis (que funciona com altos e baixos).

Sendo muito apressadinho, dá até para fazer um bate e volta e conhecer as principais atrações da ilha em pouco menos de 24 horas. Mas o ritmo de Marajó, onde só os motoristas de mototáxi se importam com o relógio, é um convite a desacelerar. A própria Soure é uma surpresa boa, com mangueiras colossais, avenidas largas e restaurantezinhos despretensiosos que servem a especialidade local: o filé marajoara (de carne de búfalo), coberto com o famoso queijo local, o de leite de búfala. Como um requeijão mais durinho, ele é produzido apenas quando chove. Na seca (mais ou menos entre junho e janeiro), época das vacas magras, os animais não produzem leite suficiente.

Um búfalo encara a câmera, cercado pela vegetação de manguezal
Os búfalos, onipresentes no Soure (Portal Pará/Divulgação)

O programa master de Soure é visitar a São Jerônimo. A fazenda do senhor Brito é uma verdadeira celebridade local. Já foi cenário de novela e, em 2015, palco de uma surrealista ópera, em pleno mangue, que teve direito a festim organizado pelo chef Andoni Aduriz. A produção do evento desfalcou as finanças da fazenda, o que talvez explique o preço tão salgado do tour de duas horas.

Mas vale a pena. A empreitada começa com um passeio de canoa por um igarapé em que é possível avistar vários pássaros, inclusive o todo-poderoso guará, que costuma aparecer no fim de tarde. Depois, segue por uma praia deserta arrasa-quarteirão. Em seguida, vem a melhor parte, que é uma caminhada pelo manguezal mais bonito do planeta, sobre uma passarela de madeira. Para voltar à sede, a regra é montar no lombo de um búfalo.

Praia vazia com árvores cujas raízes emergem da terra
Na Praia da Barra Velha, o vai e vem da maré é um espetáculo (Carlos Macapuna/Flickr)

A praia mais próxima de Soure é a da Barra Velha. O acesso é feito por uma passarela que atravessa um outro manguezal lindo de morrer. Eis a sua vantagem em relação à concorrente, a do Pesqueiro, a 15 minutos do centro de moto (combinar o horário da volta é importante, já que os celulares praticamente não funcionam na praia).

Vastíssima e amparada por dunas suaves, é o lugar perfeito para acompanhar o vai e vem da maré. Na baixa, é preciso caminhar um bocado até chegar ao rio, que se mistura ao mar. Mas várias piscininhas naturais cristalinas pelo caminho imploram por um pit stop. Quando a maré “lança”, como dizem os locais, o cenário fica ainda mais espetacular, com um braço de rio (ou será mar?) invadindo a praia, perfeito para nadar.

Ali, aprendi algumas lições marajoaras. É melhor entrar na água arrastando o pé para não correr o risco de pisar numa arraia. E cerveja em Marajó é só de dois em dois dedinhos ou o vento que parece secador de cabelo colocará sua gelada a perder.

Círio de Nazaré

Para o povo do Pará, o Círio de Nazaré é mais importante que o Natal. A principal procissão acontece no segundo domingo de outubro, mas a data é complementada com uma série de romarias, festivais e festas pagãs, como a Festa da Chiquita, uma espécie de parada gay. Para visitar a cidade nessa época, é preciso se organizar com muita antecedência e ter em mente que Belém terá ruas interditadas, horários especiais e tarifas mais caras.

Dicas insiders

“Vale checar a programação da Estação Gasômetro, uma antiga estação de gás dentro do Parque da Residência, onde há um anfiteatro. Para comer, o Santa Chicória é um lugar minúsculo que serve receitas internacionais com ingredientes paraenses. Também não dá pra perder o Bar Meu Garoto, que inventou a cachaça de jambu – a vida em Belém nunca mais foi a mesma depois disso. Outro achado é o Tacacá do Tomaz, que serve as comidas mais típicas do Pará, como tacacá e arroz de pato, que a gente costuma comer na rua, suando, num lugar limpo, seguro e com ar-condicionado.” – Dany Colares, produtora de vídeo

“Pegue um barquinho e passe o dia na Ilha do Combu, onde há vários restaurantes novos. Vale conferir o trabalho de street art do Seba Tapajós. Para comer em Belém, recomendo a Peixaria Amazonas, que tem preço bom e cerveja geladíssima. E inesquecível é o jantar que o chef Ofir Oliveira prepara no seu quintal, o ‘restaurante’ Sabor Selvagem” – Mayra Jinkings, jornalista e turismóloga

 

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