Paratodos

Após viver o bug do milênio, no caso, ter ficado cadeirante em janeiro de 2000, Bruno Favoretto compartilha experiências que servem (mas não só) para quem tem algum problema de mobilidade, ainda que momentâneo
Continua após publicidade

Calçadas: o maior desafio pra quem viaja de cadeira de rodas

Eu perco o chão, eu não acho as calçadas adequadas em qualquer lugar, mas não deixo de rodar por aí de cadeira

Por Bruno Favoretto
Atualizado em 19 mar 2021, 20h00 - Publicado em 31 mar 2017, 18h59

“Uma conduta irrepreensível consiste em manter cada um à sua dignidade sem prejudicar a liberdade alheia”. Voltaire morreu lá em 1778, mas a frase do filósofo francês é um manifesto vanguardista de um cadeirante, como eu, e de quem anda de muleta, bengala, prótese ou não enxerga. A pensata é na medida para divagar sobre as calçadas do mundão.

cartagena gabo bruno favoretto
Concordo, Gabo, mas poderia haver rampa em Cartagena (Arquivo Pessoal)

E não estou advogando apenas em causa dos 23,9% da população varonil com alguma deficiência. Uma calçada minimamente asfaltada e plana também facilita a vida daquela sua tia de Minas cuja artrose a impede de vagar com a destreza dos tempos da brilhantina. Ajuda até o turista com suas malas, quem engessou a perna pré-voo, uma galera.

DSC01750
Nova York sem segredo, com um piso simples e eficiente (Bruno Favoretto)
madrugada0014
Isso é uma rampa “ruim” em Manhattan (Alexandre Battibugli)

Mobilidade tem a ver com um tanto de gente, mas, claro, o cadeirante viajante sente mais o solo. Fica de olho no peixe, no gato e no cão, animais que amo, e que espalham em demasia seus respectivos números dois pelo chão em Buenos Aires. O solo portenho é um campo minado, cheio de vidros ameaçadores aos pneus e buracos que podem provocar quedas.

Continua após a publicidade
DSC02357
Caminito, o mala (Bruno Favoretto)

A coisa não melhora muito na Colômbia, de uma Cartagena com meios-fios de estapafúrdia altura, e no libertário Uruguai, onde uma rampa é artigo mais raro que sanidade na cachola de Trump. Nesses casos, o jeito é ir pelo meio da rua.

IMG_3720
Mujica, você é joia, mas essa calçada de Montevidéu… (Bruno Favoretto)

Antítese é o Chile e seu programa Santiago Caminhável: o país está planificando suas calçadas e a mania se espalhou por 48 municípios, algo muito visível sobretudo na capital e em Viña del Mar. Não tem segredo: é um asfalto plano, cimentão mesmo, verdadeira festa da cidadania, com rampas adequadas de se encarar – por vezes, a calçada se nivela à pista de carro. Maravilha, é o cadeirante sem receio, sem siricutico.

Continua após a publicidade
plano
O programa Santiago Caminhável (Reprodução)

O Chile alcançou o padrão de Nova York, Canadá, Berlim, cujas rotas dos pedestres são um tapete, assim como na Europa em geral, claro, desconsiderando alguns lugares mega-históricos, que preservam o calçamento de pedra, às vezes na subida – aí a gente pede ajuda.

Berlim
Berlim: além de ter bons chãos antigos, fazem também os novos (à direita) (Bruno Favoretto)
DSC04342
Toronto também facilita a vida (Bruno Favoretto)
Continua após a publicidade

Na Itália, por exemplo, a coisa oscila. A siciliana Palermo me recebeu com um belo chão, rampas e incidência de banheiros apropriados para os disabili – parece que a desalmada máfia quer que acidentados e idosos circulem. Só não me pergunte da encantadora Siena, palio duro na relação solo/topografia.

DSC00358
A siciliana Palermo surpreendeu (Bruno Favoretto)
DSC04847
Ladeiras de Siena: palio duro (Bruno Favoretto)
Mais subida toscana em Fiesole…
Mais subida toscana em Fiesole… (Bruno Favoretto)
Continua após a publicidade

No Brasil, costumo escutar de estabelecimentos responsáveis pelas calçadas e do poder público coisas como: “ah, mas é muito antigo pra ter essas facilidades”. Então, cara-pálida, o que dizer da turca Éfeso, que data de 1 000 a.C. e tem pallets como calçamento e como rampas para possibilitar o ir e vir? E olha que eles ainda estão escavando o chão para descobrir mais ruínas do Império Romano, mesmo assim não excluem ninguém.

DSC03645
De 37 d.C., a turca Casa da Virgem Maria tem rampa (Bruno Favoretto)
DSC03642
Mobilidade ao chegar à antiga morada da Virgem (Bruno Favoretto)

“Ah, mas a calçada da Avenida Paulista foi asfaltada”. Ok, mas, na hora de descer ou subir as esburacadas e inclinadas rampas, o risco de vida é iminente, ainda mais no quarteirão do Masp, aquele exemplo de urbanismo provocador esculpido por Lina Bo Bardi. E o resto da cidade? E o resto do Brasil?

Continua após a publicidade
DSC03673
Gambiarra preciosa nas ruínas de Éfeso, do ano 1000 a.C. (Bruno Favoretto)
DSC03676
Há rampas em Éfeso, mas o Brasil tem lugares “antigos” não adaptados (Bruno Favoretto)

Diria Luis Fernando Veríssimo, a única pessoa livre, realmente, é a que não tem medo do ridículo. Daí o barato de não deixar de ir a lugar algum, por mais inóspito às rodas, como aquela trilha na mineira Serra do Cipó que fiz sentado num carrinho de mão. Caindo ou não, a Maracangalha é logo ali.

DSC04938
Uma das poucas (e ordinárias) rampas em Cartagena (Bruno Favoretto)

Leia Mais:
– Fernando de Noronha é possível para cadeirantes
– Meu comentário na CBN: o renascimento de Detroit em um roteiro
– Meu comentário na CBN: um passeio a pé pela Bogotá essencial

Publicidade
Publicidade