Uma Aveiro apetitosa e para além do clichê de “Veneza portuguesa”
Chef do consagrado The Yeatman, Ricardo Costa apresenta iguarias da sua Aveiro natal, como a ostra, o leitão, a caldeirada, as tripas e os ovos moles, pois
O bom filho sempre volta para casa, diz a parábola. Na gastronomia, a história vai ainda mais além: metaforicamente, os cozinheiros nunca saem de seus locais de origem. Eles podem ganhar o mundo, viajar para outras latitudes, mas é impossível que esqueçam dos sabores de onde nasceram e cresceram.
Poucas coisas são tão definidoras da nossa personalidade — e do nosso gosto, claro — como o paladar que desenvolvemos ainda na infância. Comida é tradição, é aquilo que nos conecta a um território, o jeito mais fácil de nos levar de volta para casa.
O chef português Ricardo Costa sabe bem disso: nascido na charmosa Aveiro, cidade do Centro de Portugal, ele hoje comanda um restaurante com duas estrelas Michelin em Vila Nova de Gaia, na região do Porto, ao Norte. No The Yeatman, com vista privilegiada para o Rio Douro, ele serve um receituário de pratos e ingredientes portugueses interpretados com uma dose de inovação.
Do cozido português aos camarões carabineiros, muitas são as inspirações da tradição gastronômica do país que já ganharam novas versões pelas mãos (e pela mente criativa) do chef. Mas em seus menus, há sempre homenagens à sua cidade natal. Aveiro está presente nas ostras, na versão perfeita do leitão assado, nos ovos moles que ele serve — com nitrogênio líquido, pois — como uma das sobremesas.
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Costa saiu de Aveiro, mas Aveiro nunca saiu dele. Por isso, em uma tarde de outono, fui fazer uma expedição com ele pelos produtos da cidade, injustamente conhecida como a Veneza portuguesa, pelos barcos moliceiros que passam pelos canais que a cortam — Aveiro tem identidade própria, dispensa comparações. Conhecer sobre a produção de ostras, comer uma caldeirada de enguias preparada pelo próprio chef numa pequena ilha, e terminar a tarde a provar as melhores tripas locais.
Como toda cidade, Aveiro carrega suas tradições. Ali, onde o mar e a ria (braço de mar navegável) moldam a paisagem e também a cozinha da região, da produção de sal ao passado bacalhoeiro, já que ali se estabeleceu uma das maiores zonas para a salga do peixe que se tornou um dos símbolos da cozinha portuguesa. Entre peixes (frescos e em formato do mais tradicional doce da região), passeio de barco pela ria e um entardecer na Beira-Mar, a região mais conhecida da cidade, fizemos uma rota pelos sabores aveirenses. Abaixo, tudo o que não pode deixar de provar quando estiver na cidade.
Tripas
A receita nada tem a ver com aquela outra, que fez o Porto mais conhecido no cenário gastronômico. No caso de Aveiro, as tripas não vêm dos intestinos de nenhum animal e são, na verdade, um doce muito popular. Fica entre um crepe francês ou um wafer, mas a massa é diferente: mais elástica, porque é intencionalmente “mal cozida” para chegar a textura. Surgiu das bolachas americanas (feitas com base de água, farinha, açúcar, ovos) que vão para a máquina de ferro quente até saírem bem moldáveis dali. Recheadas de chocolate ou ovos moles (os mais tradicionais), senão dobradas para serem devoradas a mão. Deliciosas.
Onde comer? Zé da Tripa (Avenida José Estêvão, Costa Nova) – Onde o doce surgiu, com vista para as casas listradas coloridas que compõem a paisagem da Costa Nova, o local preferido do chef.
Ovos Moles
Talvez a receita mais conhecida de Aveiro, já que a cidade também compõe o “sobrenome” da receita, que nasceu e se difundiu para todo o país aqui. Os Ovos Moles de Aveiro foram o primeiro produto de pastelaria em Portugal a receber a denominação IGP – Indicação Geográfica Protegida, tendo sido incluídos pela União Europeia na lista de produtos a serem distinguidos por tal título. Com origem nos conventos regionais, o doce leva açúcar e gemas até formar um creme amarelo intenso, bastante doce, mas de sabor pungente. Depois, é envolvido em hóstias em moldes que retratam motivos marítimos celebrando a localização costeira e a herança da cidade: conchas, búzios, peixes, barris.
Onde comer? Tricana (Avenida Doutor Lourenço Peixinho – Largo da Estação, 259) – Em frente à estação de trem da cidade, essa doceria e café faz o doce conforme a tradição, em tacho de cobre, e cria os moldes a mão — Ricardo Costa até se aventurou na tarefa.
Leitão assado
Muita gente atribui o leitão à Bairrada, mas há outras cidades que fazem parte da região de Aveiro (como Anadia e Águeda) que também seguem a tradição do leitão assado à lenha, que é um dos pratos mais tradicionais da cozinha portuguesa. Mas o preferido do chef é o feito pelo chef Ricardo Nogueira, do Mugasa, restaurante que fica a 20 minutos do centro de Aveiro. Vale o desvio: situada em Fogueira (Sangalhos), na Bairrada, a casa serve o prato que a fez famosa há mais de 40 anos. O leitão vai para as brasas para cozinhar e, só depois, passa pelo fogo mais quente para ganhar uma pele crocante, mantendo a carne suculenta.
Onde comer? Mugasa (Largo da Feira – Fogueira) – Reservas, só por telefone (+351 234 741 061), e é melhor fazê-las antes de aparecer e ter que encarar a fila que se forma para provar o leitão do assador mais famoso da região.
Ostras
As ostras produzidas na Ria de Aveiro são consumidas há muito tempo, uma tradição que se estabeleceu durante a construção da cidade — antes mesmo dela ter recebido este nome. Como de costume, as zonas de produção próximas de rios (como é o caso aqui) originam ostras com menor intensidade de sal e são mais suaves. Um dos produtores, na Ilha dos Puxadoiros, faz a criação em tanques de antigas marinhas de sal de forma sustentável. As mais premium crescem durante cerca de um ano e meio, ficando mais “carnudas”.
Onde comer? Dóri (Rua das Companhas, Aveiro) – O bacalhau é um dos carros-chefes, mas as ostras frescas vindas direto da ria são uma excelente pedida, afirma o chef Ricardo Costa.
Caldeirada de enguia
É um dos pratos mais reverenciados da cidade: a enguia vem dos viveiros naturais da cidade e ganhou na caldeirada uma receita que se tornou muito popular aqui. São servidas em camadas de batatas e cebolas intercaladas com as enguias em pedaços. O tempero ideal, dizem, é o açafrão, que aporta na cor amarelada e no sabor mais terroso. Mas o segredo mesmo é a “moira”, como é conhecido o molho que acompanha a receita, um pouco do caldo da própria caldeirada, com vinagre, sal, alho e molho picante, mas muito aromático, que Ricardo Costa não economiza na sua receita.
Onde comer? Canastra do Fidalgo (Avenida José Estêvão, 240, Costa Nova do Prado) – Um dos restaurantes mais tradicionais de Aveiro recebe peixe e frutos do mar frescos todos os dias e serve uma das melhores caldeiradas da cidade.