Turismo de vacinação: tendência ou barbárie?
Além de ser um esquema caro por envolver longas estadias, por ora não existe vacina dando sopa em lugar nenhum do mundo
As notícias sobre uma suposta onda de turismo de vacinação ganhou força neste início de ano. Em janeiro, contei aqui como a elite argentina estava de malas prontas para passar uma temporada em Miami e receber as duas doses da Pfizer ou da Moderna, fugindo assim da Sputnik V, a principal vacina comprada pelo governo de Alberto Fernández. Há poucas semanas, o imunizante russo ainda era considerado um vilão por ter sido apresentado com alarde, mas sem comprovação de resultados sobre sua eficácia. Nada como um dia após o outro e, nesse momento, ela é a grande aposta do governo brasileiro.
A Flórida se mostrava dividida com o fato de que pessoas de outras regiões e até países pudessem passar na frente de um morador idoso ou do grupo de risco. Foi o que ocorreu: um grupo de 37 mil pessoas vacinadas em janeiro atestaram que não moravam no estado. O alerta soou no gabinete do governador Ron DeSantis, que decidiu acabar com a festa e passou a exigir comprovante de residência da Flórida de quem for receber o imunizante.
No caso do estado americano, não houve um anúncio do tipo “venham, estamos vacinando”, mas sim uma brecha que possibilitou a ida de forasteiros. Nos últimos dias aconteceu algo diferente. Na quarta-feira (3), Cuba anunciou que pretende produzir 100 milhões de doses de uma das quatro vacinas que está desenvolvendo e planeja imunizar todos os 11 milhões de cubanos até o fim do ano. No anúncio, o entusiasmo do diretor da estatal responsável pela fabricação das vacinas foi tanto que ele disse que haveria doses de sobra para quem viesse a Cuba passar férias e quisesse se vacinar. Dá até pra imaginar o slogan: Caribe, Mojito, Buena Vista e Vacina.
O turismo de vacinação possui um entrave que é justamente o custo. Mesmo sem desembolsar um tostão pelas doses, o viajante precisa ficar de 20 a 30 dias no destino para receber as duas, sem contar a quarentena exigida na chegada – no caso de Cuba é preciso apresentar um teste RT-PCR antes de embarcar para a ilha, fazer um novo teste na chegada e aguardar o resultado no hotel. E não nos iludamos: Cuba é cara para estrangeiros. Em suma, não existe nada certo até agora e, mesmo que seja colocado em prática, será um esquema para bem poucos.
Os super ricos, claro, já estão mexendo os pauzinhos. Houve o caso infame no fim de janeiro do diretor de uma rede de cassinos, Rodney Baker, que embarcou em um jatinho com a mulher rumo a Yukon, região remota no Canadá que faz fronteira com o Alaska, onde acontecia a vacinação de indígenas e idosos. Lá, o casal se fez passar por funcionários de um hotel local, receberam a vacina, mas foram presos horas depois no aeroporto e multados em US$ 1800 por não terem cumprido quarentena ao chegar. A Justiça canadense convocou a dupla a comparecer no tribunal em maio próximo e, caso sejam condenados, poderão pegar até seis meses de prisão.
Outro episódio aconteceu em Londres, onde uma empresa de turismo de luxo, a Knigthsbridge Circle, na verdade um clube de viagens cuja filiação custa 25 mil libras por ano, anunciou um pacote para Dubai que incluía jato particular, hospedagem em resort e duas doses da vacina que seriam aplicadas num intervalo de 21 dias. Foi um bafafá porque nos Emirados Árabes Unidos a vacina que está sendo administrada na população é a da Pfizer, sem custo e somente para moradores. A farmacêutica veio a público anunciar que não vendia vacinas para particulares e a agência de turismo londrina emendou que o imunizante incluído no pacote era da chinesa Sinopharm. É uma história ainda mal contada e a Knigthsbridge Circle suspendeu temporariamente a admissão de novos sócios.
Não seria problema algum pegar um avião e tomar a vacina onde quer que seja. A questão do momento, para além do fato de voos com origem no Brasil enfrentarem sérias restrições em todo lugar, é que não existe imunizante dando sopa em lugar nenhum do mundo. E de nada adiantaria vacinar pessoas que não são do grupo de risco por duas razões: não aliviaria o sistema de saúde pública e quem é mais vulnerável continuaria morrendo. Especialistas argumentam que a vacinação para funcionar precisa ser feita em massa e não para grupos específicos. Vale lembrar: vacina não é remédio, vacina é uma ação de prevenção coletiva. Vacina faz com que a pessoa, na eventualidade de se contaminar, acabe tendo um quadro mais leve da doença e por isso a necessidade de proteger quem corre mais risco – e que provavelmente não é quem estava em congestionamento de jatinhos em Trancoso e nem participando de festas lotadas no Réveillon.
Uma lógica parecida pode ser percebida no movimento que ganha força só no Brasil para que a vacina seja vendida em clínicas particulares. “Se eu pagar pela vacina eu desafogo o SUS.” Errado. Neste momento em que vacinas são disponibilizadas a conta-gotas, o imunizante administrado por uma rede privada estaria sendo tirado da rede pública, que continuaria com os índices de internação lá em cima. De novo, não existe excedente de produção em lugar nenhum do mundo. Não deixe de ler a entrevista sobre a vacina na rede privada concedida pela médica epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, em Washington.
O privilégio de quem pode furar a fila não resolve um problema que é coletivo e mundial. Mas tudo piora porque tem a vontade de querer escapar logo dessa tragédia que virou o Brasil, tem o cansaço pelo abre e fecha da quarentena, tem a crise econômica sem precedentes, tem a politização das vacinas. Enquanto Bolsonaro corre tardiamente atrás de uma para chamar de sua, e assim se contrapor ao imunizante do Doria, o Brasil segue amargando mais de mil mortes por dia. Turismo de vacinação, no momento atual, é barbárie.