Há sempre um quê de tensão ao passar pela imigração dos Estados Unidos. Mas nas três vezes em que viajei para o país não tive qualquer problema: bastou seguir a recomendação de responder o que for perguntado, de forma educada e objetiva, evitando piadas, brincadeiras, ironias ou palavras que possam ser mal interpretadas. Por isso, fui pega de surpresa na minha ida à Miami em novembro de 2021.
Cheguei à Flórida no início da madrugada e quase todos os 38 guichês de atendimento estavam fechados. Para agilizar o processo, os funcionários do aeroporto estavam dividindo os viajantes em filas menores em frente aos dois únicos guichês abertos para estrangeiros, o nº 15 e o nº 18. Como havia apenas passageiros do meu voo, que vinha da Cidade do México, o saguão estava particularmente silencioso e não houve muito tempo de espera. Quando dei por mim, eu já seria a próxima a ser atendida no guichê nº 18. Porém, o guichê nº 15 acabou liberando antes e, ao invés de seguiram adiante, os dois mexicanos que eram os primeiros da fila deles fizeram um sinal com a mão para que eu passasse na frente.
Aquilo não fazia sentido algum, já que estávamos em filas diferentes e eu seria atendida em breve de qualquer forma, então fiz que não com a cabeça. Os mexicanos insistiram. Os cinco segundos de atraso no andamento da fila foram suficientes para que alguém bufasse de forma impaciente e para que um funcionário do aeroporto chamasse a minha atenção. “Vámonos”, ele exclamou, em espanhol. Obedeci o comando um tanto contrariada. Por que a bronca tinha sido para mim, que estava simplesmente esperando minha vez, e não para os mexicanos, que tinham causado toda aquela situação?
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Quando cheguei ao guichê, o agente de imigração, que tinha acompanhado tudo, me deu uma olhada rápida e logo se dirigiu a mim e aos mexicanos, misturando inglês e espanhol na mesma frase. “Que cavalheiros vocês, meninos! Você não vai nem agradecê-los? Dar um sorrisinho?”, me intimou. Constrangida, acenei levemente com a cabeça olhando para os mexicanos. “Vocês estão aqui de férias? Para onde estão indo?”, continuou o agente. “Sim, vamos ficar em Miami mesmo”, eles responderam. “E você, para onde está indo?”, o oficial me perguntou. Como essa é uma pergunta de praxe na imigração, me senti obrigada a responder. “Miami também”. “Olha só, vocês estão indo para o mesmo lugar! Talvez vocês possam dividir um táxi”, sugeriu o falastrão.
Na tentativa de acabar com aquela palhaçada, coloquei o meu passaporte em cima do balcão. Mal sabia eu que aquilo só pioraria a situação. O agente ergueu o documento aberto, de forma que a minha foto ficasse visível para os mexicanos, e soltou: “olha só meninos, ainda por cima ela é brasileira!”. “Brazilian”. As mulheres brasileiras que já estiveram no exterior devem saber do que eu estou falando. A palavra ganha uma entonação específica saída da boca dos gringos e pode até soar como uma espécie de flerte, de elogio. Mas não é. Ela vem carregada de preconceitos, generalizações e machismo.
Parte da culpa é do próprio governo brasileiro que, entre as décadas de 1960 e 1980, usou a figura da mulher sensual como um produto turístico nacional. Naquela época, as campanhas da Embratur quase sempre mostravam corpos femininos de biquíni ou até seminus, desfilando no Carnaval. Não à toa, o Brasil entrou na rota do turismo sexual. Esse tipo de campanha publicitária deixou de existir, felizmente, mas hoje são as falas do nosso presidente que não ajudam. “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, afirmou o agora ex-presidente Jair Bolsonaro em abril de 2019.
Mas voltemos ao meu relato. “Você está solteira ou não?”, quis saber o agente de imigração. Tentei pensar em respostas irônicas e grosseiras, mas estava coagida: o oficial, que ainda segurava o meu passaporte, poderia impedir minha entrada nos Estados Unidos ou até coisa pior se eu lhe desse uma resposta mal-educada. O jeito era manter a calma e a seriedade nas minhas respostas. Nesse caso, me limitei a mostrar o meu anel de noivado. “Ah, sinto muito, meninos, ela é comprometida”. Os mexicanos, que até então riam das supostas piadas do oficial, mudaram de postura pela primeira vez e me disseram um “sorry” retraído. Sem mais perguntas, o agente finalmente carimbou e entregou o meu passaporte: “welcome to America!”.
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Revoltante pensar que eu só fui considerada minimamente digna de respeito quando provei que era comprometida. Se eu fosse solteira, onde aquela situação bizarra daria? Por esse motivo, uma das estratégias comuns utilizadas por mulheres que viajam sozinhas é usar uma aliança falsa e/ou mencionar na primeira oportunidade que namora, que é casada, que o dito cujo ficou no hotel, mas já está indo te encontrar… Não deveria ser assim, mas é.
Eu custei a relatar para alguém o meu episódio na imigração de Miami. Primeiro pensei que minha reação poderia ter sido exagerada (eu já tinha passado por coisa bem pior no Egito) e me culpei por não ter tido mais jogo de cintura para lidar com a situação. Depois categorizei o ocorrido como sendo algo “normal”, parte do assédio nosso de cada dia, talvez na tentativa de negar uma dura realidade. Mas é preciso encarar os fatos: não é fácil ser mulher. E o ato de viajar sozinha, por mais acostumada que você esteja e por mais seguro que supostamente seja o destino, sempre vem acompanhado de um certo estado de alerta. Como bem disse a minha vizinha de blog Adriana Setti, “viajar sozinha é um ato de resistência feminista“.