Olha o mundo, filho!

Ana Claudia Crispim achou que Cinquenta Tons de Cinza definiria a segunda metade da sua vida, mas hoje tem na cabeceira um exemplar de Criando Meninos – o que não quer dizer que tenha desistido de encontrar um Christian Grey. Aqui, ela escreve cartas sobre os seus lugares favoritos do mundo para o pequeno Nando.
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Chegadas, impressões e as fichas que caem quando se está ao volante

Uma das coisas mais lindas das viagens é a vida acontecendo enquanto você passa como espectador. E dessa vez eu tinha você, filho, sentado no banco de trás

Por Ana Claudia Crispim
Atualizado em 27 mar 2023, 14h03 - Publicado em 28 abr 2022, 20h31

Filho. Fizemos nossa primeira viagem sozinhos, com direito a conexões bizarras, típicas de passagens aéreas adquiridas de última hora e pagas com milhas. Teve também carro alugado, estrada com chuva e todo o rolê pra chegar num paraíso rústico cearense chamado Trairi.

Parece bobeira – e claro que é – mas, nós mulheres, seres que enfrentam tantos desafios no mundo, ainda temos dúvidas sobre nossa capacidade de fazer sozinhas algo que estávamos acostumadas a fazer ao lado de um homem. Eu falo isso com vergonha da Marie Curie, Malala Yousafzai, Gertrude B. Ellion, Ada Lovelace e outros mulherões que mudaram o mundo. Eu, que me achava empoderada para mais de metro, estava com medo. E no fim eu só queria te levar pra uma viagem delicinha no Ceará e te trazer vivo, são e salvo. É pouco, bem pouco.

Casario colonial ao fundo com homem carregando balões coloridos.
Poderia ser São Luís, poderia ser Havana, mas é Lençóis, na Chapada Diamantina (Ana Crispim/Arquivo pessoal)

Aterrissamos em Fortaleza, pegamos nosso carro e foi com um friozinho na barriga que comecei a dirigir nosso potente 1.0 turbo pela cidade. Daí aconteceu a mágica. Coloquei Francisca Valenzuela no som do carro e começou a tocar Normal Mujer! Foi o gatilho pra epifania, ela sempre vem em alguma hora da viagem. Senti um vento imaginário soprando meu cabelo, um brilho, um poder de estar carregando meu filhote no banco de trás, feliz da vida, cantando alto:

“Y no sé cómo ser otra mujer que no es como yo
De las que se sienten bien de ser tal como ellas son
Ser una mujer normal, ser normal mujer
Ser una mujer normal, ser normal mujer, mujer”

Mulher preta vestiem primeiro plano vestindo camiseta rosa, costurando. ao fundo casa azul com cerca de taipa.
Uma “mujer normal” em algum lugar da Chapada Diamantina (Ana Crispim/Arquivo pessoal)
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Era eu, uma mulher normal por minha conta e risco, dirigindo pela ruas da periferia na segunda capital mais violenta do Brasil segundo um ranking de 2022. Não estou romantizando a violência, longe de mim. Mas o que via pela janela era apenas vida, o cotidiano de uma cidade que poderia estar em outros lugares do Brasil e do mundo. E a gente estava lá, só nós dois. Não sei se foi a influência da música em espanhol, mas a periferia de Fortaleza me pareceu tanto com Havana. O mesmo tipo de vida, alguma coisa em comum na arquitetura, os rostos, as cadeiras nas portas, as crianças brincando, velhos, trabalhadores, jovens no vai e vem da escola.

Grupo de pessoas conversam em frente ao casario antigo de cor ocre.
A vida acontecendo em La Habana Vieja, mas poderia muito bem ser em qualquer cidade brasileira. (Ana Crispim/Arquivo pessoal)

Uma das coisas mais lindas das viagens é a vida acontecendo enquanto você passa como espectador. Eu juro, vejo tudo em câmera lenta, saturado de cor, tenho minha roteirista particular habitando meu cérebro.

Dois meninos, um sorridente, compram azeitonas numa banca em Fez. O vendedor olha desconfiado direto para a câmera da fotógrafa
Uma cena singela em Fez, no Marrocos. (Ana Crispim/Arquivo pessoal)
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Tanta coisa da vida me passou pela cabeça, tantas cenas de viagens, rostos, sorrisos, paisagens e estilos de vida. Tua carinha curiosa olhava tudo com atenção, felizão de estar viajando comigo.

Eu brinco comigo mesma que agora estou na fase dos downloads. Estou em algum lugar, fazendo outra coisa, dirigindo e de repente vem o insight de algo que minha psicanalista perguntou, jogou no ar e a resposta vem como um coice no peito. Nesta viagem eu descobri muitas coisas, filho. E descobri com você sentado no banco de trás. Foi duro, foi difícil e foi lindo. E digo convicta que dirigir é terapêutico.

Mulher usando burca sentada em frente a um casario terracota com o letreiro escrito
Marrocos e o inusitado. (Ana Crispim/Arquivo pessoal)

A trilha sonora seguiu livre, linda, sincronizada com meus sentimentos, devaneios e uma euforia quase infantil de ser dona de mim. Livre, feliz e mãe do menininho mais esperado e desejado de todos os tempos! Começou a tocar Flotando e não poderia ser melhor. Cantei junto também!

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¿Cómo es que te pude encontrar?
Algo nos une, algo nos une
¿De esto se trata al final?
Nunca lo supe, nunca lo supe…
Y así al fin, al fin estar flotando
Flotando, flotando…

Uma senhora comprando frios e laticínios numa banca típica da Toscana
O cotidiano rolando em Cortona, o cenário de Sob o Sol da Toscana. (Ana Crispim/Arquivo pessoal)

É assim, filho, nunca é sobre uma coisa só. É tudo junto, a vida, as novidades, músicas, viagens, sentimentos e ressignificações. Termino esta carta com uma canção chilena com pegada política que poderia cair direitinho neste cenário, El derecho de vivir en paz. 

El derecho de vivir
Sin miedo en nuestro país
En conciencia y unidad con toda la humanidad

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Mesas de restaurantes na calçada numa rua com poças de água e motos estacionadas
Roma sendo Roma. (Ana Crispim/Arquivo pessoal)

Nunca deixe de se encantar com as primeiras vezes, as primeiras impressões, o ordinário. Te amo cada dia mais, menino.

Carro antigo azul royal em Cuba visto através da janela de um outro carro
As primeiras cenas na chegada em Havana, com Buena Vista tocando no táxi e eu chorando largada no branco de trás. (Ana Crispim/Arquivo pessoal)

[Leia mais sobre viagens y otras cositas da vida de uma mãe 360º no meu Instagram @rivotrip.oficial]

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