Filho. Fizemos nossa primeira viagem sozinhos, com direito a conexões bizarras, típicas de passagens aéreas adquiridas de última hora e pagas com milhas. Teve também carro alugado, estrada com chuva e todo o rolê pra chegar num paraíso rústico cearense chamado Trairi.
Parece bobeira – e claro que é – mas, nós mulheres, seres que enfrentam tantos desafios no mundo, ainda temos dúvidas sobre nossa capacidade de fazer sozinhas algo que estávamos acostumadas a fazer ao lado de um homem. Eu falo isso com vergonha da Marie Curie, Malala Yousafzai, Gertrude B. Ellion, Ada Lovelace e outros mulherões que mudaram o mundo. Eu, que me achava empoderada para mais de metro, estava com medo. E no fim eu só queria te levar pra uma viagem delicinha no Ceará e te trazer vivo, são e salvo. É pouco, bem pouco.
Aterrissamos em Fortaleza, pegamos nosso carro e foi com um friozinho na barriga que comecei a dirigir nosso potente 1.0 turbo pela cidade. Daí aconteceu a mágica. Coloquei Francisca Valenzuela no som do carro e começou a tocar Normal Mujer! Foi o gatilho pra epifania, ela sempre vem em alguma hora da viagem. Senti um vento imaginário soprando meu cabelo, um brilho, um poder de estar carregando meu filhote no banco de trás, feliz da vida, cantando alto:
“Y no sé cómo ser otra mujer que no es como yo
De las que se sienten bien de ser tal como ellas son
Ser una mujer normal, ser normal mujer
Ser una mujer normal, ser normal mujer, mujer”
Era eu, uma mulher normal por minha conta e risco, dirigindo pela ruas da periferia na segunda capital mais violenta do Brasil segundo um ranking de 2022. Não estou romantizando a violência, longe de mim. Mas o que via pela janela era apenas vida, o cotidiano de uma cidade que poderia estar em outros lugares do Brasil e do mundo. E a gente estava lá, só nós dois. Não sei se foi a influência da música em espanhol, mas a periferia de Fortaleza me pareceu tanto com Havana. O mesmo tipo de vida, alguma coisa em comum na arquitetura, os rostos, as cadeiras nas portas, as crianças brincando, velhos, trabalhadores, jovens no vai e vem da escola.
Uma das coisas mais lindas das viagens é a vida acontecendo enquanto você passa como espectador. Eu juro, vejo tudo em câmera lenta, saturado de cor, tenho minha roteirista particular habitando meu cérebro.
Tanta coisa da vida me passou pela cabeça, tantas cenas de viagens, rostos, sorrisos, paisagens e estilos de vida. Tua carinha curiosa olhava tudo com atenção, felizão de estar viajando comigo.
Eu brinco comigo mesma que agora estou na fase dos downloads. Estou em algum lugar, fazendo outra coisa, dirigindo e de repente vem o insight de algo que minha psicanalista perguntou, jogou no ar e a resposta vem como um coice no peito. Nesta viagem eu descobri muitas coisas, filho. E descobri com você sentado no banco de trás. Foi duro, foi difícil e foi lindo. E digo convicta que dirigir é terapêutico.
A trilha sonora seguiu livre, linda, sincronizada com meus sentimentos, devaneios e uma euforia quase infantil de ser dona de mim. Livre, feliz e mãe do menininho mais esperado e desejado de todos os tempos! Começou a tocar Flotando e não poderia ser melhor. Cantei junto também!
¿Cómo es que te pude encontrar?
Algo nos une, algo nos une
¿De esto se trata al final?
Nunca lo supe, nunca lo supe…
Y así al fin, al fin estar flotando
Flotando, flotando…
É assim, filho, nunca é sobre uma coisa só. É tudo junto, a vida, as novidades, músicas, viagens, sentimentos e ressignificações. Termino esta carta com uma canção chilena com pegada política que poderia cair direitinho neste cenário, El derecho de vivir en paz.
El derecho de vivir
Sin miedo en nuestro país
En conciencia y unidad con toda la humanidad
Nunca deixe de se encantar com as primeiras vezes, as primeiras impressões, o ordinário. Te amo cada dia mais, menino.
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