Tempura de gema de ovo. Ploft. A casquinha rompe e o líquido se espalha pela boca. De olhos arregalados, mergulho a colherinha na louça delicadíssima que mimetiza uma casquinha de ovo: gelatina de cogumelos trufados. Como um montanhista a cravar uma bandeirinha no topo do Evereste, sinto que cheguei ao ponto mais alto do jantar. Mas não. A viagem alucinante para a estratosfera continua com um sanduíche “aéreo” de caranguejo e abacate. Surpresa! O pão simplesmente deixa de existir em contato com os lábios. Não há dúvidas de que o espírito do El Bulli, o restaurante mais revolucionário de todos os tempos [fechado em 2011 e reaberto como museu em 2023], reencarnou nas cerâmicas multicoloridas do Disfrutar.
Os chefs Oriol Castro, Eduard Xatruch e Mateu Casañas fizeram parte do núcleo central de criação da cozinha do El Bulli, trabalhando lado a lado durante 15 anos com os irmãos gênios Ferran e Albert Adrià – com quem colaboraram na elBulli Foundation. Num antigo armazém em frente ao espetacular Mercado de Ninot (clique aqui para ler o post), no bairro modernista do Eixample, o restaurante tem paredes decoradas com composições de cerâmicas vazadas. De fora, parece apenas um bar. Mas um corredor estreito que atravessa a cozinha (100% à vista) leva a um belo salão com um paredão de vidro que se abre para um jardim. Alguns painéis no teto trazem a imagem do céu e dão leveza ao ambiente.
Não há toalhas de mesa, o staff é jovem e informal. Não há separação entre sala e cozinha. Os 25 cozinheiros executam um balé preciso e silenciosos diante do público. Oriol controla a saída dos pratos, retoca, observa a reação da “plateia”. Eduard absorve o fluxo de entrada dos pedidos, cantando os pratos. “O mais impressionante deste restaurante é a rapidez da mente do Eduard, que sabe na ponta da língua quais receitas levam glúten e outros elementos que podem ser substituídos na hora a pedido dos clientes”, me conta o jovem e eficientíssimo garçom Vicente.
“O estilo do El Bulli está dentro de nós, a partir daí criamos uma cozinha moderna, divertida e com surpresa lançando mão dos recursos relativamente limitados que temos aqui”, diz Oriol Castro, que se levanta todos os dias às seis da manhã para chegar ao restaurante antes das oito, e seguia firme e forte no passe da cozinha lá pela meia noite, quando nos despedimos. Que estilo é esse? Ravióli transparente (!) de pesto, feito com um plástico comestível japonês à base de algas. Desfile de esferificações, a alquimia que transforma sabores diversos em bolinhas que explodem: de balsâmico, de ervilha, de azeitonas (uma delas secretamente recheada com suco de laranja sanguínea), de milho. A técnica, hoje reproduzida à exaustão por restaurantes mundo afora, foi inventada por Ferran Adrià. Outras loucurinhas: doce para começar, sobreposição de temperaturas, brincadeiras com as formas e texturas – que tal um biscoito de “pó” de tomate e um bombom disfarçado de pimentão?
A Alexandra Forbes, sem dúvida a jornalista gastronômica brasileira mais atualizada e por dentro do panorâmica internacional, cuja opinião respeito muito, foi um pouco dura em sua resenha sobre o Disfrutar, publicada na sua coluna da Folha de São Paulo (clique aqui para ler). Ela gostou do que viu, mas com uma ressalva bastante pungente. “No Disfrutar há uma série de bocados que parecem filhos bastardos das incríveis maluquices comestíveis de Adrià. Falsos raviólis transparentes. Falsos rigatones feitos de caldo de presunto. Doces que replicam pimentões. Excitante para os que sempre quiseram ter um gostinho do que se servia no El Bulli, mas cheira a plágio disfarçado.”
Eu sou da opinião que uma pessoa não pode plagiar a si mesma. Me explico: ao meu ver, essas técnicas “pertencem” tanto a Ferran Adrià como o trio de chefs do Disfrutar, envolvidos até a medula com o espírito El Bulli e parte essencial de tudo o que foi produzido ali. Ao assuntar com a Alexandra sobre seu texto, ela mesma reconheceu que talvez “plágio” tenha sido uma palavra um pouco forte demais para a ocasião. E explicou melhor: “Não comi nada idêntico, mas algumas coisas me lembraram MUITO o El Bulli…. Acho, para resumir, que deveriam ter procurado distanciar mais sua cozinha da do ex-patrão, mas também acho que estava tudo delicioso e executado e – o mais importante – que com o tempo eles irão achando seu próprio caminho naturalmente”.
Para você que, como grande parte da humanidade, está mais preocupado com a experiência do que com todas as questões gastro-filosóficas por trás de cada pratinho: prepare-se para decolar. Trata-se de uma cozinha sem amarras, feita para mentes abertas. Os caretas alimentares não combinam com esse tipo de lugar. Ao meu lado, uma mesa de italianos, pasma, mandou voltar o inacreditável rigatone, cristalino como água e temperado com uma espuma de carbonara. “Digno de nota, e com louvor, a massa feita com gelatina de presunto, finalizada na mesa com espuma de carbonara e parmesão ralado, é um prato de última geração”, defende o respeitado crítico gastronômico catalão Pau Arenós. Azar o dos puristas!
Sobre as reservas: Atualmente dá para conseguir uma mesa com cerca de um mês de antecedência, sempre reservando através do site. Mas um inescrupuloso verão se aproxima, e com ele milhares de turistas. Se você está planejando vir à cidade nos próximos meses, não deixe de fazer a reserva desde já!
* As fotos marcadas com asterisco são de Francesc Guillamet/Divulgação