O dia de ontem vai representar um antes e um depois na vida do meu paladar. Enfim, fui conhecer o mítico Celler de Can Roca. Para quem não acompanha o universo da alta gastronomia, o restaurante vem se revezando com o dinamarquês Noma (atual número 1) na badalada lista dos melhores do mundo da revista britânica Restaurant e ostenta três estrelas na bíblia Michelin desde 2012. Como se não bastasse, os irmãos catalães Joan (o chef), Josep (o sommelier) e Jordi (o pâtissier) estão celebrando um prêmio inédito: o Traveller’s Choise de Melhor Restaurante de Alta Gastronomia do Mundo (entre 353 concorrentes), baseado nas avaliações dos usuários do gigante Trip Advisor. No passado, o Celler havia se posicionado em 4o lugar no ranking. “É claro que é importante para nós o que dizem os críticos, mas o mais fundamental é saber o que pensam os nossos clientes”, disse Joan Roca ao receber o prêmio ontem, em Barcelona. Os ganhadores do Traveller’s Choice são determinados com a ajuda de um algoritmo que faz um cruzamento entre a pontuação dada pelos usuários e a quantidade de avaliações que o estabelecimento recebeu nos últimos 12 meses.
Pouco mais de uma hora depois de receber o prêmio, Joan já estava de volta ao seu QG em Girona (meia hora de trem rápido de Barcelona), recebendo cada cliente pessoalmente ao lado do irmão Jordi. Josep, o sommelier, estava no Japão. “As pessoas investem tempo e dinheiro para conhecer o restaurante e nós assumimos a responsabilidade de que pelo menos um de nós esteja aqui”, disse Joan. A imersão nesse incrível universo começa por um giro pela cozinha high-tech, onde um exército jovem e sorridente trabalha com pinças de precisão e chapelões de mestre cuca. A parte mais importante, segundo ele, é a lousa toda rabiscada, onde são anotadas novas ideias, esboços, projetos. Ela fica no corredor que liga a cozinha à sala. Ambas estão separadas por uma porta de filme de ficção científica, na qual tive o dom de ficar entalada depois de apertar um botão sem querer, para desespero de Jordi, que me socorreu do mico.
Passado o vexame, nos acomodamos numa mesa redonda, num dos cantos do salão com paredes de vidro que se abrem para o jardim triangular. Ao centro da mesa, três pedras que representam os três irmãos. Os recipientes em que os pratos são servidos montam um espetáculo à parte. Além de ser uma catedral da gastronomia, o restaurante também é um dos mais lindos do planeta, sem dúvidas.
A viagem começou com um pequeno bonsai de oliveira (de verdade), enfeitado com azeitonas caramelizadas. Na sequência, bombons de capano com grapefruit e gergelim que explodiam na boca. Depois, o primeiro grande “ohhhh”. Um globo terrestre se abre como um presente e revela uma pequena volta ao mundo com quitutes que representam México (um mini taco: impressionante como tantos sabores podem saltar de uma coisinha tão pequena), China, Marrocos, Coreia e Turquia. No total, foram 20 etapas, com sete aperitivos, 10 pratos e 3 sobremesas (além dos petit fours).
Veja os pratos mais marcantes nas fotos abaixo:
Poderia passar horas descrevendo a sincronia perfeita do staff, o equilíbrio de sabores em cada pratinho, a magia das texturas. Mas deixo isso para a crítica especializada (se é que algo ainda não foi dito) e me limito às impressões. Fui preparada para me surpreender muito com a comida – o que, apesar da altíssima expectativa, realmente se confirmou. Mas não esperava que a seleção de vinhos pudesse ser tão instigante e original. A sensação era de estar numa super montanha-russa, subindo e descendo vertiginosamente, virando de ponta cabeça, fazendo curvas bruscas em alta velocidade. Dava vontade de levantar a mão e gritar u-huuu! Os vinhos catalães foram bem representados (Penedès, Empordà, Conca de Barberà, Pays de Côtes Catalanes). Mas a odisseia de QUINZE TAÇAS teve pisco, brancos alemães e espanhóis de procedências nada óbvias, como Múrcia, Catábria e Andaluzia. Para não dizer que não houve um clássico, um Ribera del Duero marcou presença com um Goyo García Viadero de 1986! Para finalizar, um sake matador: Katsuyama Gozenshu Gen, antes do Pedro Ximenes que acompanhou a sobremesa. Wow!
No começo do ano, meu amigo e colega Fabrício Brasiliense, do Viagens Crônicas, foi ao Celler de Can Roca, não gostou e desabafou num texto honesto e corajoso – clique aqui para ler. Ao sair de lá, ontem, numa espécie de transe, cogitei mandar uma mensagem para o Fabrício para dizer que ele é um freak (brincadeirinha, querido, I love you!). Mas a verdade é que entendo perfeitamente que algumas (poucas) pessoas não saiam do Celler de Can Roca tão felizes como eu saí. Se num restaurante convencional escolhemos os pratos segundo os ingredientes que nos parecem apetecíveis (e, em geral, familiares), nos domínios dos três irmãos o cliente deve estar disposto a deixar-se levar. Para isso, é preciso estar aberto e preparado.
Tanto o menu degustação quanto a seleção de vinhos combinam fartas doses de prazer com algumas provocações e desafios. Fabrício passou maus bocados a intensidade da presença das trufas e patinou na textura de um timbal de foie gras com maçã (que já não está no cardápio atual). Saiu de lá com a estranha sensação de ser o único ser humano a não achar aquilo tudo uma maravilha. Eu tive orgasmos tântricos (o mais intenso deles com o camarão de Palamós em várias texturas, com molho feito da cabeça do crustáceo e perninhas crocantes). Mas também vivi um momento crítico, confesso. Foi com o último prato salgado: coração de pichón (filhote de pomba selvagem), numa belíssima apresentação que lembrava um bombom lustroso de chocolate negro. Como não sou fã de miúdos em geral, tive que contar “1, 2, 3… já!” antes de engolir. E, não, não achei uma delícia. Mas sou do tipo que gosta até quando não gosta, só pela emoção de experimentar algo novo. Para mim, essa aventura (elevada à máxima potência) é o grande motivo pelo qual alguém deve ir ao Celler de Can Roca, pronto para apertar o cinto de decolar rumo ao desconhecido.
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Se você for lá: as reservas devem ser feitas pela internet. No dia 1 de cada mês à meia-noite (horário espanhol) se abre um novo período de reservas para 11 meses mais tarde. O menu completo custa € 190 e mais € 90 com harmonização de vinhos. O táxi de Barcelona até Girona custa € 150. Vá sem pressa: o festim leva pelo menos três horas para ser consumido.
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