Nas primeiras páginas do livro A Doce Vida na Úmbria, a escritora Marlena de Blasi destrincha algumas das “verdades” que pôde apreender na região, onde ela, americana, foi viver com o marido italiano.
A primeira delas é que por ali as tradições e superstições fazem parte do dia a dia e devem ser preservadas. A segunda, que a idade não envelhece: “Uma vida bem vivida anda para trás”, dizem os antigos da região. A número três é que um legítimo morador da Úmbria é tão íntimo dos seus santos quanto dos parentes e sente-se à vontade com tudo aquilo que é sacro. E a quarta é que os locais lembram sempre a si mesmos e aos demais de que somos muito pequenos diante do mundo.
Tanto a localização quanto a familiaridade com o sagrado explicam a conservação de uma cultura que herdou dos etruscos sua verve agrícola e de São Francisco e Santa Clara, sua face muito católica. No meio do caminho entre o sul e o norte do país, a Úmbria seguiu em frente, mas como antigamente.
As trilhas e estradas da área viram aumentar exponencialmente o número de visitantes que, de mochila nas costas, chegam para seguir os passos de São Francisco de Assis, o filho mais ilustre nascido naquelas terras – há quem atribua o incremento à visibilidade que o papa Bergoglio deu ao santo, ao adotar a alcunha de Francisco pela primeira vez na história do papado. Peregrinos e turistas vêm para visitar os povoados, os conventos fundados por ele e seus confrades franciscanos e as ermidas onde se recolhiam em prece.
Para incrementar o grau de visitabilidade de todo esse patrimônio, a região é uma formosura. Quem chega na primavera ganha um bônus: a visão dos campos cobertos ora por margaridas brancas, ora por lisianto vermelhos e roxos – a marca registrada do lugar.
ORVIETO e CIVITA DI BAGNOREGIO
Uma exploração de responsa pelos encantos da região pode começar por Orvieto, cidadezinha onírica construída em cima de um platô vulcânico. O lugar tem uma bonita catedral, cuja fachada combina mármore branco esculpido ao estilo gótico e mosaicos bizantinos dourados.
Mas, ainda que a igreja ganhe em beleza, a construção mais interessante do vilarejo é o Pozzo di San Patrizio, encomendado pelo papa Clemente VII em 1527. Sua Santidade ficou refugiada ali durante o saque de Roma e temia que o abastecimento de água fosse insuficiente no caso de um cerco.
O resultado é um poço de 53 metros de profundidade, com duas escadarias em espiral que engenhosamente não se cruzam. E não é à toa que Orvieto foi escolhida como abrigo. Desde o século 14, a cidade é protegida pela Fortezza dell’Albornoz, instalada sobre um paredão rochoso que fornece vistonas lindas, e rodeada por um parque público com alguns bancos e gramado, lugar legal para fazer um lanche – embora a cidade tenha um punhado de bons restaurantes para se iniciar nas tradições culinárias locais, como o Duca di Orvieto , que serve receitas da cozinha orvietana do século 16.
Prepare-se para o impacto, porque o ponto seguinte, Civita di Bagnoregio, uma esticadinha no lado de lá na fronteira com o Lazio e mezzo conhecida dos brasileiros por ter sido cenário da novela Esperança, pode ser um dos lugares mais incríveis que você vai ver na vida.
Cercado pelo Valle dei Calanchi, entre formações rochosas pontudas, o pequeno vilarejo ocupa todo o topo de uma colina – e é ligado ao resto da “terra” apenas por uma ponte. É uma visão do paraíso. Fundado pelos etruscos, há séculos perde área por causa de erosões e terremotos. Claro, foi perdendo seus moradores – hoje restam 20 abnegados ali. Como pode sumir do mapa, leva o apelido de “città che muore”, ou cidade que morre.
Pensar que o vilarejo está se acabando é de partir o coração, mas é também nisso que está um de seus encantos. Apenas pedestres, bicicletas e motos passam pela ponte e, uma vez no centrinho, o programa consiste em observar as antigas casas de pedra, muitas delas caprichosamente decoradas com flores.
Fora isso, há apenas uma igreja na praça central e o Cancello della Casa di San Bonaventura, um portão que hoje dá direto para um abismo – as construções que havia ali desapareceram.
Mas nem é preciso muito mais. Extremamente pitoresca, Civita di Bagnoregio é de uma beleza extraída da simplicidade que São Francisco certamente aprovaria.
ASSIS E SPELLO
Seguindo mais duas horas de viagem, chega-se a Assis. A gigantesca Basilica di San Francesco paira suntuosa e solitária no topo da cidade e relembra a todos que, sim, somos pequenos.
Na Collina del Paradiso, é um dos pontos católicos mais visitados do mundo. Assis recebe por volta de 5 milhões de visitantes por ano. Sua construção data da metade do século 13. São duas igrejas sobrepostas: as basílicas Inferior e Superior – a segunda guarda o mais importante afresco sobre a história do pai da Ordem dos Franciscanos, as Storie di San Francesco, atribuído a Giotto.
Ao acessar a Igreja Inferior pelo pórtico dos peregrinos, descortinam-se exemplos incríveis da criatividade da fé: tetos, cruzes, capelas, afrescos. Ao centro, na abóbada do presbitério, está uma das mais famosas alegorias de Giotto, uma forte representação da tríade pobreza, obediência e castidade. As pinturas da Cappella di San Nicola, que retratam os milagres do santo, são, aliás, do mestre toscano.
Mas, antes de chegar à parte alta da cidade, há que se conhecer seu entorno. Do lado de fora da muralha fica uma das pedras fundamentais do franciscanismo, a Chiesa di San Damiano. Foi para lá que a jovem Chiara fugiu da casa da família rica para fazer seu voto de pobreza, fundou a Ordem das Clarissas e morreu, aos 60 – foi canonizada dois anos após sua morte, em 1255.
Ainda hoje, a porta do quarto de Chiara está lá, na parte mais antiga da fachada. Também podem ser visitados o jardim, o oratório, o claustro e o refeitório. A Basilica di Santa Chiara fica a poucos minutos dali, já ultrapassando os limites da cidade murada.
De estilo gótico, tem fachada delicada, revestida de pedras brancas e rosas que mudam de tom dependendo da luz. Em uma capela lateral jaz, incrivelmente bem conservado, o corpo da santa.
A seis minutos a pé, a Cattedrale di San Rufino rememora o tempo em que a jovem Chiara vivia naquela parte da cidade, a mais prestigiada à época, com sua família abastada. Sob o adro da igreja, há uma concentração impressionante de tesouros históricos e artísticos que remetem aos tempos da Roma imperial.
Ao passear pelas ruelas do entorno, chega-se também ao bairro em que viveu Francisco ainda menino e à Chiesa Nuova, erguida, no século 17, sobre o local onde teria sido a casa de sua família.
A poucos passos de distância fica a bonita Piazza del Comune, que abriga o Palazzo del Capitano del Popolo, prédio medieval que hoje é sede da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos, e o Templo de Minerva, do século 1, onde há um grande sítio romano – seu interior, no entanto, hoje guarda uma igreja barroca.
Muito perto dali, entre casas da Idade Média e palácios do Renascimento, na Via di San Francesco, fica o ateliê do pintor e escultor Franco Posperi. Na mesma rua, destaca-se o Palazzo del Monte Frumentario, do século 11, que recebe mostras temporárias. Um pórtico com sete arcos apoiados em colunas bizantinas desenha a sua entrada.
Indo sempre reto na Via San Francesco, no número 3 da Via Giotto fica uma ótima opção para quem procura uma refeição. O Piadina Biologica serve o sanduíche mais típico da Itália central – ali, tudo é orgânico.
E procure, nos mercadinhos locais, os biscoitos rústicos brutti ma buoni (“feios, mas gostosos”), feitos à base de merengue e avelãs, para comer quando colocar o pé na estrada.
Apenas 12 quilômetros separam Assis da pequenina Spello, que se ergue na encosta da chamada Montanha de São Francisco, o Monte Subasio. Com casas de pedra entrelaçadas que vão monte acima, a cidadela conserva praticamente intacta a muralha de quando era um assentamento romano. Além do muro, segue muito bem preservada a Porta Venere, em pé desde antes de Cristo.
Dá para ver a maior parte das atrações de Spello em poucas horas, e quase todas elas se concentram na Via Camillo Benso Conte di Cavour. Vale começar o itinerário pela Chiesa di Santa Maria Maggiore, na Piazza Giacomo Matteotti. A Cappella Baglioni tem um bonito e colorido afresco sobre os primeiros anos de Jesus.
Mas o que há de melhor para fazer por lá é passear pelas charmosas ruas, entre construções em tons de rosa e pêssego, que mudam de acordo com o horário, e achar cantinhos para apreciar a vista.
O Ristorante La Cantina é, de longe, o local mais recomendado para provar a típica comida úmbria. Se conseguir vencer a fila, vá de cordeiro com alcachofra, mas peça o antepasto: o presunto da região é dos melhores da Itália. A Osteria de Dadà, no número 47 da mesma via, tem poucos lugares e comida caseira em porções bem servidas.
O Santuário di Rivotorto, do século 19, fica a cerca de 5 km de Assis. É lá que fica o Sacro Tugúrio, cabana onde São Francisco viveu e compilou os primeiros escritos franciscanos, aprovados pelo papa Inocêncio III, no ano de 1209.
Três pequenos quartos muito simples, um deles transformado em capela, guardam 12 telas de Cesare Sermei, do século 16, que retratam a vida do santo. O espaço é vizinho do antigo leprosário, em que o santo e seus companheiros se revezavam para cuidar dos doentes.
O local foi determinante para a conversão de Francisco: foi ali que o futuro santo, que antes tinha aversão aos doentes, abraçou um deles depois de se sentir tocado pela graça divina.
PERÚGIA E GUBBIO
A capital úmbria fica a menos de 30 quilômetros de Spello. Perúgia também se estende para o alto, em um emaranhado de escadas e ruas morro acima. O centro histórico, a quase 500 metros de altura, exige fôlego e disposição, recompensados com a beleza artística local e os panoramas inesperados.
A Piazza IV Novembre forma com a Fontana Maggiore a dupla imperdível do miolinho central – a fonte é uma obra-prima medieval. Bem em frente, a Cattedrale di San Lorenzo chama a atenção por nunca ter sido finalizada.
Do outro lado do quadrilátero que forma a praça central, repousa o majestoso Palazzo dei Priori, um dos espaços mais preciosos de Perúgia: ali fica a Galleria Nazionale, que reúne uma importante coleção de artistas da cidade, entre eles Pinturicchio e Beato Angelico, que produziram no século 15, e o Collegio del Cambio, que conserva uma sala com afrescos de Perugino, outro renomado artista renascentista local.
Mas é nas ruazinhas escondidas que se descobrem os pequenos tesouros da cidade. A Cappella di San Severo, na Piazza Raffaello, tem um afresco que Raffaello começou, mas não teve tempo de terminar; após a morte do artista, a obra foi finalizada por Perugino (o primeiro assina a parte superior da composição; o segundo, a inferior).
A quatro minutos a pé está o ponto mais alto de Perúgia, a Porta Sole. O pôr do sol visto de lá é incrível. A 1 quilômetro dali paira o Tempio di Sant’Angelo, igreja diminuta em formato circular.
Perúgia é conhecida por ter duas importantes instituições de ensino superior, a Università degli Studi e a Università per Stranieri. Por isso, a cidade possui uma atmosfera jovem e festiva, uma pegada meio diferente da vizinhança úmbria. A Piazza Francesco Morlacchi é um dos pontos de encontro dos estudantes.
Dá para parar na lanchonete La Bottega di Perúgia, que fica na praça e serve bons sanduíches (não deixe de provar os embutidos locais!). Muito perto dali, a Via del Priori, cheia de palácios e achadinhos medievais, é o lugar certo para um passeio despretensioso, principalmente para quem gosta de lamber vitrine e conhecer produtos típicos.
No número 26, a ótica Ozona vende modelos diferentes e exclusivos de armações. A Il Pozzo delle Ceramiche, no 70, tem cerâmicas artesanais decoradas a mão. A Osteria a Priori, com trocadilho à italiana, fica no número 39 e é referência em pratos com ingredientes regionais e em slow food.
A 50 quilômetros ao norte de Perúgia, Gubbio vale uma programação especial, merece um dia inteiro de visita. São Francisco, de novo ele, viveu passagens marcantes por lá. É o local que o acolheu depois que decidiu se dedicar à sua nova vida, totalmente privada de bens.
Foi no hospital de São Lázaro que ele deu início ao seu trabalho com os humildes, prestando assistência a leprosos. A história conta que Francisco acalmou um lobo que aterrorizava a cidade. Em homenagem à sua personalidade apaziguadora, a cidade tem a Chiesa di San Francesco della Pace.
Assim como Assis e Spello, Gubbio também conserva grande parte de sua muralha, erguida no século 13, mas sua fundação data dos idos do século 3 a.C. As ruínas do anfiteatro romano, abertas à visitação, são herança de um passado de riqueza – os romanos só construíam anfiteatros nas cidades realmente importantes.
O melhor ponto de partida para começar a explorar as ruas estreitas de Gubbio é a catedral, que ainda mantém dois órgãos do século 16. Na Piazza Grande, a uma caminhada de cinco minutos da igreja, fica o Palazzo Pretorio, construção gótica inacabada, e, em frente a ele, o maior símbolo gubbiano, o Palazzo dei Consoli, também datado do “Medioevo”, onde ficam o Museu Arqueológico e a Pinacoteca.
As Sete Tábuas de Gubbio, peças de imensurável valor histórico para o povo itálico, foram forjadas em bronze e escritas em úmbrio antigo, dialeto que precede o latim – presume-se que elas tenham sido talhadas entre os séculos 3 e 1 a.C.
Os dois palácios da Piazza Grande foram erguidos na mesma época, quando a cidade se expandia e sentiu-se a necessidade de reafirmar sua importância com um espaço público condizente com sua grandeza.
Cereja do bolo: um dos melhores restaurantes de toda a Úmbria está a 300 metros da praça. A Taverna del Lupo fica em um prédio histórico do século 14, com paredes e pilares de pedras bastante antigas. As massas caseiras são vedetes do local. É bom fazer reserva, principalmente no verão.
O tom pitoresco por ali fica por causa da alcunha de Gubbio, conhecida como a “cidade dos loucos”. O apelido tem origem em uma suposta contaminação química da água da Fontana del Bargello (ou, como preferem os locais, “dos loucos”), que teria provocado um surto de insanidade entre os moradores.
Diz-se também que quem arriscar dar três voltinhas ao redor da fonte fica louco. Há quem faça – e termine o roteiro por essa região incrível levando pra casa um certificado de “matto”.
“O Centro de Perúgia é fascinante, com muitas igrejas, lojas de roupas, restaurantes e bares que esquentam qualquer noite, especialmente nos fins de semana. A Cattedrale di San Lorenzo é uma construção majestosa, com um interior lotado de pinturas, estuques, detalhes dourados e muito mármore, um bálsamo para amantes de arte. E não dá para deixar de passear nas ruelas de origem etrusca!”
Eleonora Occhipinti, Estudante em Perúgia
Hora do sono
Boas opções de hospedagem, entre uma paisagem de cinema e outra
CIVITA DI BAGNOREGIO
Dentro da minúscula Civita di Bagnoregio, há pousadas simples como a La Sentinella Bed & Breakfast .
ASSIS E SPELLO
Em Assis, o Giotto Hotel & Spa tem vista panorâmica da cidade e fica perto da Basílica de São Francisco. O quatro-estrelas Case Brizi está a dez minutos da basílica. Em Spello, o pequeno La Corte del Conte fica dentro da antiga cidade murada e tem um charmoso jardim interno.
PERÚGIA E GUBBIO
Em Perúgia, o Hotel Giò Wine e Jazz Area, perto do Duomo, tem carta de vinhos para quem busca achadinhos enogastronômicos. Já o Hotel San Marco é o que mais se destaca em reservas na internet.
Prepara
Quando ir: Embora seja aprazível até no frio, o período da primavera ao verão (de abril a setembro) é o mais indicado para admirar as paisagens do centro da Itália: além do clima amigável, nesta época os dias são mais longos. E não é só. Entre junho e agosto, os campos de girassóis ficam resplandecentes na Toscana, assim como as planícies verdes cobertas por margaridas e lisiantos vermelhos e roxos, tão característicos da Úmbria. Para quem vai pela gastronomia, as chuvas de outubro e novembro não chegam a ofuscar a caça às trufas brancas em San Miniato, proporcionando ao viajante almoços e jantares inesquecíveis.
Dinheiro: Euro.
Fuso: + 5h no horário de verão na Itália.