Estamos na semana mais quente do ano aqui em Berlim. Finalmente chegou o esperado verão. Temos dias de céu azul turquesa, sol escaldante, termômetro marcando 35 graus e o ar sofrendo de má circulação.
O fim do dia cai, a temperatura sobe. Ar-condicionado é artigo de luxo, assim como o ventilador, que aqui em casa já providenciamos um para manter nosso bom humor e o casamento em ordem. Também aderimos ao FKK, aka nudismo, caseiro, porque são 35 graus lá fora e aqui dentro.
Como me disse uma amiga enquanto nos abanávamos numa mesa de um restaurante: “Em dias quentes em Berlim ou você está num lago ou você está no Rewe”, a grande rede alemã de supermercados que tem ar-condicionado. Só então entendi o que leva alguém a trabalhar do café do supermercado.
Sinto-me no intensivo “Como curtir o verão na Alemanha”. Tem toda uma técnica da qual sou leiga: manter as cortinas e janelas fechadas durante o dia para o calor não entrar, mudar algumas plantas de lugar para que elas sobrevivam, abrir as cortinas e as janelas quando o sol baixar. Somam-se a isso passar o dia fugindo de abelhas e não esquecer de fechar a boca enquanto pedala para não engolir mosquitos. Eu, que nasci com os dentes avantajados, já desisti de lutar contra eles. Deixo-os morrer dentro de mim.
Eu venho de São Paulo, onde os dias calorentos não são fáceis. Mas por lá sempre tem um ar-condicionado nos esperando em algum lugar. Aqui não tem. Mas não estou reclamando, estou apenas assumindo o meu inesperado despreparo para algo que achei que tinha nascido pronta, o verão.
Preparar-se para um dia de sucesso num lago mais longe da cidade, que não fará você se sentir em Ipanema na véspera do ano novo, envolve muitas coisas. Carregar uma pequena casa nas costas para montá-la na areia ou no meio do mato é uma delas.
Um profissional do lago carrega com ele uma barraca de camping, uma boia grande, uma caixa de som (para qual eu torço o nariz) e um cooler para levar o almoço, o lanchinho da tarde, as frutas da estação, o vinho branco (mais comum aqui do que a cerveja) e a água. Se tiver cachorro, ele vai junto. No meu caso eu ainda estou no nível um: tenho apenas um mini cooler chinfrim que dá para carregar na bike.
O último sábado chegou com os 36 graus prometidos. O meu WhatsApp, para decidir para qual lago iríamos (são cerca de 3 mil em Berlim), estava mais disputado do que em dia de eleição presidencial no Brasil.
Escolhemos um lago lindo de água verde esmeralda, que apelidamos carinhosamente de “Tom Zé” (Tonsee em alemão). Uma bela floresta em volta dele nos garantiu sombra e água fresca a poucos metros de distância ao longo do dia. Cada um achou seu canto entre as árvores, estirou a canga e montou sua casinha temporária. Já no meio da tarde, de repente alguém puxou um violão, formou uma rodinha e aí ouvi:
”…Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí…”
Bateu um delírio tropical nesse momento que cheguei a ouvir alguém gritar ao longe: “Ô mate, ô limão, ô biscoitoooooo”, mas aí lembrei que aqui os ambulantes não existem, apenas a saudade que tenho deles.
E fui ficando, o dia não ia embora, mais pessoas foram chegando, alguém levou vinho gelado, aceitei mais um pouco e fui ficando molinha, imersa numa felicidade sem motivo. Quis ver o sol se por, mas teria que esperar dar 8h40 e ainda eram 5 horas da tarde. Enquanto decidia o que fazer, peguei carona num stand up paddle porque não sei nadar. As pessoas comentavam sobre uma prainha “caribenha” na outra margem do lago que eu quis conhecer. A prancha foi deslizando suavemente pela água calma. Eu fui sorrindo sentada enquanto molhava meus pés na água gelada enquanto esperava chegar do outro lado.
Como disse Drummond: “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.” Cá estou derretendo de calor, mas amando o verão e já sofrendo com seus dias contados.
A nudez alemã
Frequentando Berlim há mais de duas décadas, aprendi que a frase “o ser humano realmente verdadeiro é o ser humano nu”, de Goethe, é levada ao pé da letra. Para nós, que somos da América Latina (e não apenas nós, né?), o corpo nu exposto em área pública é vista como indecência (vide a polêmica sobre a criança que tocou o corpo nu de um artista numa performance em São Paulo em pleno século 21).
O movimento FKK (Freikörperkultur ou Cultura do Corpo Livre) foi criado em 1898 na Alemanha justamente para desconstruir essa relação erótica que temos com o corpo. Em 1920 o país ganhava sua primeira praia FKK. A nudez é hoje permitida nos parques, piscinas públicas, lagos, saunas e praias. Chegar aqui despreparado pode chocar os mais conservadores, afinal a nudez em público é natural e banal no país. Não é atentado ao pudor como na maior parte do mundo.
É comum ter áreas FKK na maioria das praias (incluindo os lagos) e parques, mas você não precisa estar num cercadinho naturalista para se sentir à vontade e tirar a roupa. Para nós, que temos enraizado o pudor à nudez, é um exercício de desconstrução. No início eu estranhava, mas hoje já quase não me chama tanto a atenção (só chama quando vejo alguém em algumas posições pirotécnicas de yoga, mas aí não é só a minha). Eu tenho trabalhado mentalmente para me sentir à vontade com a minha própria nudez em público. Mas o máximo que consegui até o momento foi um topless e trocar de roupa numa praia sem me esconder das pessoas. No fim das contas, a nudez é libertadora e tem o poder de trazer a sonhada paz com o nosso corpo independente de como ele é.
Lalai Persson é publicitária, fundadora do site Chicken or Pasta e se mudou recentemente para Berlim onde tem se dedicado ao estudo de negócios da música. No início da pandemia usou a quarentena para criar a newsletter Espiral, onde compartilha seus achados na sua nova cidade e seu amor pela música; assine aqui a newsletter e siga Lalai no Insta.