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Segredo entre Lençóis: Santo Amaro do Maranhão

Na porta dos fundos dos Lençóis Maranhenses, uma rota alternativa dá acesso à bela e simples Santo Amaro

Por Otávio Rodrigues
Atualizado em 24 jan 2024, 13h38 - Publicado em 1 mar 2012, 20h00
Lagoa entre as dunas de Santo Amaro do Maranhão
Lagoa entre as dunas de Santo Amaro do Maranhão (Marcus Dall Col/Unsplash)
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“Sangue”. O nome do lugar aparece na placa em letras maiúsculas, carcomida pela ferrugem e já meio sem tinta. Tanto no significado quanto na aparência, a indicação lembra os signos de antigos mapas do tesouro, um delírio possível aos cultores dos quadrinhos, dos livros de aventura e do cinema. Mas, neste caso, fantasia e realidade se misturam mesmo: essa é a pista, ou melhor, a placa que sinaliza o momento de abandonar o asfalto da MA-402, às margens do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, e tomar a estradinha secreta, digo, de areia, até Santo Amaro do Maranhão. Essa pequena e preciosa cidade é, por assim dizer, a porta dos fundos do parque, já que é menos conhecida e agitada do que Barreirinhas, base do turismo na região.

Naturalmente é uma experiência um tanto mais rústica, a começar pelo longo caminho no areião, pelas singelas opções de hospedagem e alimentação, pela simplicidade do comércio e dos serviços e outras circunstâncias típicas de um lugar remoto. Vamos imaginar que tudo isso é um baita problema e falar de certas compensações. No reino de Santo Amaro as dunas são mais altas e têm areia mais branca do que as de Barreirinhas. Há um recanto espetacular, a Lagoa da Gaivota, a poucos minutos da cidade. Não há filas para coisa alguma ou caravanas de toyotas nos envenenando com fumaça de óleo diesel nem grupos de excursão fazendo tchibum nas plácidas lagoas azuis. Pela manhã, bem cedinho, ouvem-se os galos, não o alarido e o buzinaço da turba partindo para os passeios. As prainhas que o Rio Alegre inventa quando atravessa Santo Amaro são de um capricho e uma graça que suplantam as do Rio Preguiças em Barreirinhas. Mas, por favor, siga o mapa e não espalhe.

Balançando na boleia

Há uns 15 anos, contratar uma Toyota em Barreirinhas era tarefa casca-grossa. Havia muitas delas por lá, mas poucas destinadas a passeios. A mesma coisa com os barcos do Rio Preguiças, que antes atendiam principalmente a população dali e alguns fins de semaneiros dos arredores ou da capital. A adequação da estrada e os esforços da indústria do turismo acabaram revertendo a situação: há tantos desses veículos e seus turistas de lá pra cá que chega a dar gastura (aflição, em maranhês). As pousadinhas familiares deram lugar a outras bem mais arranjadas, algumas até com prainhas exclusivas, e também hotéis, agências de excursão, restaurantes, sorveterias… Barreirinhas agora está na moda, cheia de gente.

Se não é exatamente isso que você imagina para sua experiência nos Lençóis, a senha é: “Sangue” (não há como esquecer). Junto à placa enigmática presa a dois toscos pedaços de pau fica uma casinha muito vermelha, misto de residência e comércio que serve também de ponto de encontro, chegadas e partidas. É o centro nervoso desse povoado à beira da estrada e, depois dali, será preciso contar com um veículo adequado para chegar a santo amaro.

E, nesses domínios que se estendem a perder de vista atrás da casinha vermelha, veículo adequado é sinônimo de Toyota, um dos personagens mais importantes desta história. Não é novidade (nem merchandising), sua versatilidade e sua robustez mecânica são sempre citadas como ideais diante das agruras da geografia e do clima brasileiros. Na região dos Lençóis, onde tudo é água e areia sobre areia, essas caminhonetes, que os mais jovens conhecem como picapes, tornaram-se uma instituição. Para não dizer entidade.

A maioria dos caçadores de tesouros solicita o serviço dos toyoteiros nas agências de turismo de São Luís. Contatos obtidos com amigos ou amigos dos amigos também podem ajudar nessa hora, evitando acrescentar uma mala sem alça na bagagem. Há também os que chegam com carro próprio e tracionado, entre eles macacos velhos que primeiro ouvem as instruções dos motoristas locais, cabras tarimbados naquelas estradinhas manhosas. De cara recomendam murchar os pneus para fazer o animal projetar suas garras e cravá-las nas areias. Mesmo como passageiro, é bom entrar no espírito, compreender essa liturgia e acostumar-se com as vibrações cardíacas das Toyotas porque boa parte dos dias nesses quadrantes vai se desenrolar na boleia de uma delas.

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Água que deus manda

Santo Amaro do Maranhão tem pouco mais de 13 mil habitantes, uma dúzia de ruas e, não fosse por um ou outro trecho de vias com pedras de calçamento, dava para dizer que é uma cidade nas areias. Casinhas simples, pequenas quitandas e armazéns e uma praça central harmonizam com a natureza da região, pontuada por dunas, buritizais, tufos de palmeira juçara (açaí, em maranhês).

Sua economia, bastante baseada no turismo, gravita ao sabor da peculiar climatologia da região, na qual só existem duas estações: verão (quando não chove) e inverno (quando chove). O verão vai de julho a dezembro, mês que quase sempre termina sob as primeiras tempestades. É no período do inverno, contudo, especialmente entre maio e julho, que a água que Deus manda preenche completamente os baixios entre as dunas e finaliza aquelas pinturas, arte zen da natureza, com lagoas azuis entre montanhas de areia semovente. Mais que apenas elementos em uma paisagem sublime, esses recantos servem também como playground, já que se pode subir e descer nas dunas, nadar nas lagoas ou simplesmente se acomodar em um canto para uma meditação.

Portanto, estando em Santo Amaro e com um toyoteiro legal, a rotina fica resumida a acordar cedo, definir o passeio do dia e entregar-se às surpresas do caminho e do destino. Em nossas jornadas, por exemplo, conhecemos as mais formosas lagoas e dunas escondidas onde raramente se percebe algum sinal de presença humana. Essa sensação de autêntico isolamento, hoje tão rara, repetiu-se no recorte litorâneo de travosa, um povoado a oeste de Santo Amaro. Como ainda conseguimos nos colocar assim, tão sozinhos, em um mundo frenético e superpovoado?

Foi em travosa também que nos envolvemos em um acidente. Durante o café da manhã arranjado em uma residência, um cano d’água arrebentou. Nelton, o toyoteiro, e Raimundo Cabeludo, caseiro em nosso endereço de Santo Amaro, logo estavam na lida ajudando o dono da casa, velho compadre. Ficamos mais que o planejado, porém nos esbaldamos com os diálogos que iam vazando enquanto se tentava solucionar o problema e as digressões da esposa do homem, que é professora, sobre as dificuldades da escola local… Momentos luminosos que uma viagem mais planejada não proporciona.

Em Betânia, descobrimos que o chefe da família que serve refeições aos viajantes, seu Chico Calixto, marido de dona Maria das Chagas, é também o amo do boi (responsável pelo grupo de bumba meu boi local e também seu principal cantador, em maranhês). Depois do excelente almoço regado a goles de uma fortíssima cachaça azul conhecida como tiquira, ele se dispôs a se sentar com a gente e resgatar algumas das mais antigas toadas da paróquia recheando a cantoria com memórias de festas ao luar, lindas moças de saia rodada e caboclos que se lançavam em lendários desafios de rimas.

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Lagoa entre as dunas de Santo Amaro do Maranhão
Em Santo Amaro, não há muvuca nas plácidas lagoas azuis. Crédito: (Marcus Dall Col/Unsplash)

Pura mansidão

Como todo mundo sabe, lugares como Santo Amaro do Maranhão, que combinam vocação turística, riqueza cultural e uma natureza dessas, costumam degradar-se rapidamente quando chega o asfalto. É verdade que esse betume espesso, obtido das entranhas da terra, facilita o acesso, traz recursos, melhora a qualidade de vida no que diz respeito à saúde e à educação, apenas para citar dois aspectos. Todavia, é sobre esse tapete orgânico, outrora matéria vivíssima a povoar o planeta, que chega também o turismo de massa invariavelmente antes de os projetos de infraestrutura, como os de água e esgoto, saírem do papel – e por vezes nunca saem.

Santo Amaro parece não se preocupar muito com isso, ao menos por enquanto. Há na cidade alguns sinais de incivilidade, como lixo espalhado e toyotas circulando em velocidades incompatíveis com o vaivém de gente, mas a mansidão é dominante. Nos fins de semana, aumentam as chances de alguém ligar a radiola (sistema de som, em maranhês) e partilhar seu hit parade com a vizinhança até tarde da noite, e aí só resta rezar para que a programação seja boa. Seduzidos pela magnitude do chamado “deserto brasileiro” (entre aspas, pois não é um deserto de fato), tomados por percepções extraordinárias surgidas depois de mergulhos na água cristalina das lagoas e dos rios, ao fim do dia os viajantes tendem a estar esgotados e felizes demais para se preocupar. Nesses momentos de quase êxtase, qualquer coisa parecerá um grão de areia.

Bumba meu boi

Junho é mês de São João, o que no Maranhão é sinônimo de bumba meu boi. O auto, ou “brincadeira”, que mistura as tradições europeia, africana e indígena acontece nos últimos dez dias de junho e envolve quase toda a população. Os “batalhões” – nome dado aos grupos – surgem nas ruas, quadras e terreiros ao som de bravíssima percussão cantando e dançando sob roupas brilhantes e chapéus de pena e de fita, entre outras alegorias. O boi cenográfico, aparentemente vivo por conta da habilidade do homem que está ali dentro, salteia e avança furioso excitando a turba e desafiando os vaqueiros, personagens da trama.

Embora ocorra em todo o estado, é em São Luís, a capital, que a maioria dos grupos de boi se reúne se revezando nos encontros de rua e nos espetáculos organizados pelo poder público. O bairro de Madre de Deus é um dos mais tradicionais nesse festejo. E, além da brincadeira do boi, nesta época são grandes as chances de trombar com uma roda de tambor de crioula, outra marcante manifestação popular, já reconhecida como Patrimônio Nacional. Tanto pela expressão cultural quanto pela grandeza, o São João maranhense não deve nada a outros encontros juninos Brasil afora. Mais que isso, sua originalidade nos obriga a dizer que se trata de um folguedo único, incomparável.

ONDE FICAR 

Como é de imaginar, Santo Amaro ainda não atingiu o estado da arte no que diz respeito à hospedagem. Dizendo de outro jeito, o conceito das pousadinhas é baseado em quartinhos com piso de ladrilho ou lajota, cama limpa, banheiro, ar-condicionado e janela de alumínio. A melhor escolha é a Água Doce, que tem atendimento cortês, uma área externa agradável e um dos melhores restaurantes da cidade. Outra opção interessante é a Cajueiro, que tem alguns quartos com TV. As duas pousadas são lambidas pelo rio durante a época de chuva. Uma terceira opção, só que sem prainha na porta, é a Bellas Águas, com TV em todos os apartamentos. Cabe ao viajante se perguntar se precisa mesmo de uma TV em um lugar desses.

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ONDE COMER 

O restaurante da pousada Água Doce é o endereço “estrelado” de Santo Amaro do Maranhão. Baseado na simplicidade da culinária local, com peixes, mariscos e acompanhamentos triviais e bem-feitinhos, funciona em um salão rústico, sem paredes e coberto de palha de buriti. Um dos destaques do cardápio é um certo camarão gigante da Malásia. Durante os passeios, é boa ideia levar algum dinheiro vivo e um farnel na mochila com água (fundamental), frutas secas (não espere encontrá-las em Santo Amaro), barras de cereais e outras fontes de nutrientes. Que não derretam.

Em Betânia, combine o almoço no Chico Calixto, que adaptou o quintal de casa e treinou a família para atender os que chegam com fome e sede. Além dos peixes frescos e acompanhamentos, ele tem a tal de tiquira, uma pinga especial e azulada guardada em um luxuoso coquinho seco que sai do fundo da geladeira direto pra mesa. Depois da refeição, dá pra se esticar em uma rede, tirar um cochilo ou refletir sobre o que realmente precisamos nesta vida.

PASSEIOS

Santo Amaro inspira aquelas caminhadas sem pressa para ir observando o movimento do comércio, das pessoas e das nuvens. À tardinha, quando o sol fica com pena da gente, a beira do Rio Alegre vira um clube, com turmas no futebol, no vôlei, crianças brincando de pega-pega ou fazendo castelos na areia fina e muito branca. A água é cristalina, guarda o calor do dia todo, e se sentar ali na beirinha para ver o fim do dia supera o êxtase das banheiras de mármore dos melhores spas. O passeio mais próximo e também um dos mais bacanas é na Lagoa da Gaivota, de água azul e cercada por dunas imensas, um showroom do que o parque reserva aos viajantes.

Em 30 minutos-Toyota se chega a Betânia, lugar de cenários quase bíblicos atravessado por pequenos rios e com ótimas opções de banho em água corrente e limpa. Dali é possível esticar até o Espigão, cerca de 20 minutos além, onde dá pra caminhar, subir e descer dunas, nadar em água de rio e de lagoa. Uma boa surpresa é seguir até Travosa passando pelas localidades de Bebedouro e Boa Vista. Sem pressa, são duas horas serpenteando no areião entre olhos-d’água, bosques de buriti e algumas casinholas. O tesouro mesmo está no fim: quilômetros de praia deserta onde tudo o que se vê são areia, o Atlântico selvagem e escassos ranchos de pescadores sob nuvens que parecem beijar a terra.

Com um tanto mais de tempo e fôlego dá para ir até a intrigante Queimada dos Britos, uma comunidade no coração do parque, a seis horas de caminhada de Santo Amaro. Como aquelas dezenas de almas conseguem viver ali isoladas, sem luz, sem lavoura, sem entrega de pizza? Note bem, esse é um percurso para fazer a pé, pois se está dentro dos limites do parque. Não faltarão toyoteiros afirmando que levam grupos até lá arrepiando a lei – oferta que os devotos de Nossa Senhora do Bom Senso recusam e mesmo desestimulam informando o ilícito às autoridades. Aves migratórias, tatupebas, gambás e cajueiros de fruta doce agradecem.

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VIDA NOTURNA

Ora, é preciso ter algum dinheiro, tempo e energia para estar em um lugar desses, longe dos tipos mais comuns de agitação. Mas, quando for, não é nada improvável que eventos interessantes estejam acontecendo em Santo Amaro ou em uma localidade próxima. Além do São João, Santo Amaro tem a Festa de São Gonçalo, que faz oferendas ao santo com dança e cantoria ao som de violões, sanfona e pandeiro. É data incerta no calendário porque depende muito dos recursos e da boa vontade dos que têm por hábito ou promessa realizá-la. Em julho, é costume haver desses encontros na casa de dona Tereza, em outubro é na de dona Licinha, em dezembro na de dona Lurdinha e assim por diante.

Na ocasião desta reportagem, um acontecimento nos fez rever o conceito de “agitar”: faleceu uma senhora muito conhecida na cidade, tida inclusive como boa benzedeira, e a impressão era a de que metade da população atravessara aquela noite em homenagens. Na casa da mulher, na calçada e na rua, grupos se reuniam ao redor de mesas de jogo, enquanto as crianças corriam de um lado para o outro. Nada de choro, só alegria, como é comum celebrar a despedida em certas regiões do Norte e do Nordeste.

Também na nossa vez, a FM Natty Naifson, uma das mais poderosas radiolas do reggae maranhense, apresentava-se em um povoado vizinho. Ou seja, a dica de ouro nesse quesito é ficar de olho nos cartazetes afixados nos bares e nas portas de comércio, envolver-se com as pessoas, respirar a cidade, entrar na gira.

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