Socorro, onde ainda se vive. Tais dizeres, vistos no pórtico de entrada da cidade por quem vem da Rodovia das Águas, definem o destino na Serra da Mantiqueira, a 138 quilômetros da Pauliceia. Além das águas medicinais, se destaca pelo turismo de aventura e, desde a década passada, pela acessibilidade em cartões-postais, hotéis e atividades radicais: entre os mais de 20 esportes espalhados por tantos parques de aventura, dez são adaptados para cadeirantes (como eu) e afins.
Fora o salto de 500 mil para 1,3 milhão de turistas/ano, Socorro, de 37 mil habitantes, recebeu láureas como o prêmio Rainha Sofia de Acessibilidade, do governo espanhol. Isso tudo é legal não somente para 23,9% da população com alguma deficiência. É joia para quem vai com crianças, idosos, engessou a perna… Ir de carro é melhor para explorar os corredores turísticos – ou invista nos receptivos e transfers dos hotéis para a locomoção.
Dia 1
10h – Hotéis e perfis
É chegar e fazer o check-in num dos tantos hotéis com pensão completa, algo que encarece a diária, mas assegura um domínio maior sobre os gastos, já que as refeições estarão garantidas. Opção, sobretudo para quem vai com os filhos, é a Fazenda 7 Belo, de bom custo/benefício e com aquela infra clássica: fazendinha, minigolfe, piscina quente eficiente, já que, cadeirante que sou, não dá para desfrutar dos escorregas, da quadra de tênis, da cavalgada e da tirolesa.
Ainda bem que, para quem tem problema para andar, Socorro é tipo um Havaí para surfistas, uma Amsterdã para bicicleteiros. Tem picos que me permitem o uso do chavão: é um lugar para chamar de meu. Falo da Fazenda Campo dos Sonhos. Com pensão completa, não faz uma comida de suspirar, mas o hotel é na medida para quem tem alguma limitação e quer atividades radicais.
Seu Zé Fernandes, o dono, conta que os quartos adaptados em 2006 agradam até a quem não tem problemas de locomoção, pois são amplos; e têm canil para cão-guia que também pode acomodar o seu totó. Lá, a sustentabilidade pauta tudo. Eles praticamente tratam 100% de seus dejetos. Por mês, 4 toneladas de lixo orgânico são jogadas sobre 250 mil minhocas, divididas em dez canteiros; elas comem o resíduo e o eliminam nas fezes, fazendo a decomposição e gerando 2 toneladas de pasta-adubo. E, no lugar de cercas de arame ou portões de madeira de árvores derrubadas, há sansão-do-campo, uma curiosa planta espinhosa.
Por fim, quem dispensa a pensão completa e quer privacidade pode adotar a Mata Que Canta, simplona, porém com rede e vista das montanhas da Mantiqueira. Fica diante do Parque do Monjolinho, com atividades radicais também para crianças.
12h – Até Minas de tirolesa
Durma onde dormir, a essa altura estarás alimentado e a postos para curtir. Na Campo dos Sonhos, onde também tem day use, há um tanto de coisa, ainda mais para quem tem limitação física. Vejo cadeira para trekking, pequenos cadeirantes embarcando na charrete com rampa, uma tarde feliz para quem não sabe o que é ir e vir. Aí vou eu.
Para galopar no cavalo, cuja sela tem encosto que me manteve estável, já que o controle de tronco não é dos melhores, me posicionaram com a cadeira de rodas numa rampa de cimento que fica na altura do animal – aí o pessoal dá uma força para montar. Tirolesa? No hotel tem uma pequena, na qual a gente veste o equipamento no chão e é alçado à aventura.
Talvez ela seja muito light, então encare o complexo de tirolesas do Parque dos Sonhos, o outro hotel do Zé Fernandes – quem dorme na Campo dos Sonhos tem direito a day use no Parque e vice-versa, senão custa R$ 10 a entrada. Me deram uma cadeira motorizada para circular por lá, tem até cachoeira. Os hotéis do Zé cumprem todos os requisitos de acessibilidade, algo inédito país afora. Não sou fã de altura, mas insistem que é incrível entrar no caminhão e rumar às tirolesas. Com um quilômetro de extensão, a Do Pânico decola da paulista Socorro e termina em Bueno Brandão, já em Minas.
16h30 – A boia, a gruta e o stand-up paddle
Socorro tem cinco cursos fluviais, e o Corredor Turístico do Rio do Peixe é o Maracanã deles. Não dei sorte em meu primeiro contato com esse templo. O dia quente, sem chuva, joga contra o faniquito aquático – o nível dos rios sobe mais de novembro a março, sobretudo em janeiro e fevereiro.
Assim, o boia cross do Parque dos Sonhos soou um pouco como “boring” cross, pois entediou ter de sair do rio baixo. As pedras impediram o meu descer na boia, então o staff deles, que também arma raftings para todos os níveis de dificuldade e limitação física, tinha de me pegar no colo, me tirar da água, ultrapassar o trecho das pedras protuberantes e voltar ao rio para continuar a descida – por ali, a adrenalina viria no dia seguinte.
Com o rio preguiçoso, invista em outro marco do Rio do Peixe, a Gruta do Anjo, aberta para visitação de terça a domingo, das 9h às 16h30, que rende fotos para Instagram nenhum botar defeito. Antiga mina de quartzo desativada, hoje guarda um lago gelado, com pedalinho. Crianças de até 5 anos não pagam e piram com as formações diferentonas, resultado das dinamites que auxiliavam a extração de minérios.
Pena que não ando, senão levaria minha cadela Paçoca para fazer um stand-up paddle ali do lado, na D’Pé na Prancha. Se bem que o shape não aguentaria a obesidade dela. A aventura acaba na cachoeira.
20h – Pasta, posto e praça
Dispa-se de preconceito. Existe restaurante legal em posto de gasolina, um com frentistas caracterizados de caubói e teto de madeira rústica, perto da entrada da cidade. É o D’Napoli, que rende um jantar com bons ítalo-pratos – o mignon à parmegiana e a lasanha são generosos. No fundo do salão, tem parquinho lúdico.
Se o lance é tomar umas, devotos do rock se garantem no Old Stuff, boteco com o chope Quinta do Malte, de Socorro. Fica na icônica praça da eclética Igreja Matriz, com vitrais e pinturas do italiano Mario Tomazzo. Lá tem coreto, banheiro público e mais opções para comer e beber, como o Jota Bar.
Dia 2
8h – Conga, la conga
Apesar de conhecer a cidade, não sabia da faceta artística. Após passar pelo Cine Cavaliere Orlandi, de rua e com ares de Cinema Paradiso, chego à Praça da Matriz, a da igreja, com rampas e piso tátil e pedras chatas na hora de atravessar.
Arremato um licor de jabuticaba no Empório Caipira, cujo quiche é bem melhor que o enrolado massudo, e deparo com o primeiro expoente socorrense: o sorridente Seu Alcindinho, que abre seu lar, no número 240 da praça, para expor e vender suas telas, algumas picassianas.
Dali, uma curta vagada pelo Centro (precisei de ajuda numa descidinha) revela um grafite do Belchior na parede, até desembocar no Museu Municipal. O acervo revive a história da cidade. Ali, no fim de 2017, houve uma Bienal Internacional de Arte Naif. Concluído em 1881 em taipa de pilão no térreo e pau a pique no piso superior, o prédio ganhou um anexo em 2014 – é curioso sair de uma construção do século 21 e, via um pequeno túnel, cair numa do século 19.
No museu, fui recebido por outro expoente socorrense: Marinilda Boulay. Simpaticíssima, estudou artes na França e voltou para continuar o legado da mãe, que sempre atuou pela congada, manifestação cultural de origem africana em extinção no Brasil. Havia 70 grupos ativos até 1930, mas a crise do café minguou os investimentos dos mecenas fazendeiros, restando somente quatro, mas a manifestação vive.
Se a visita ocorrer numa sexta à tarde, na praça vizinha ao museu rola uma feira de orgânicos barata.
13h – Desbrave Pompeia
No início do Corredor Turístico da Pompeia, tem fábrica de cerveja, a Ecobier, feita com a celebrada água local e que domina os menus e luminosos de bares e restaurantes. Não há visita guiada, mas é a sua loja que se mostra a melhor para arrematar suvenires na cidade: faca de churrasco, cooler, avental, kits com cervejas e três tipos de chope em barril, que podem ser degustados.
Mais adiante, um point que até a virada do milênio era o maior atrativo turístico: o Balneário, cuja água rica em sais minerais tem propriedades medicinais. Administrado pela Afpesp, é aberto ao público, que pode aproveitar a imersão, a hidromassagem e a ducha escocesa. Mas o lugar, pasme, não abre aos domingos, quando a cidade coalha de turistas.
Em frente ao Balneário, a maria-fumaça desaponta, a não ser que você só queira uns cliques no vagão que fumegou até os anos 1960. Ele fica estacionado, nada de fóóón e nem passeio. O bom é que, subindo um pouco, se chega às fontes com água de beber. Leve a garrafinha. Se você não estiver num hotel com pensão completa, hipótese para um lanchinho caipira é o Rancho Pompeia, propriedade rural com cavalinhos, bom para a garotada.
16h – Bote do Charles
Quando estou na maria-fumaça, soa o telefone. É que, entre o fim da tarde do dia anterior e esta manhã, caiu uma chuva tão forte que deixou o Rio do Peixe revolto, propício ao rafting nível 4; então, fui avisado pela galera da PróximAventura Canoar.
A prática é comum: muitos ligam para as empresas para saber como anda o rio e, estando cheião, saem de suas cidades e vão para lá atrás de frenesi molhado. O camarada que pilota a expedição é o Charles, um cara pândego que manja do riscado e deixa a galera segura em relação a revezes como quedas do bote.
Como de costume, não me apoquento com gente me pegando no colo e me botando no bote – deficiente tem de fazer as coisas de algum jeito. Só não pude pegar o remo, já que não tenho estabilidade no tronco sem cadeirinha com encosto, como havia no Parque dos Sonhos. Mas isso não prejudicou em nada a diversão durante os sete quilômetros de trajeto: me agarrei ao bote, que cruzava raivosas corredeiras. Tudo isso supervisionado por um cão, que nos seguia pela mata à beira-rio.
Imagino como é turbinada a emoção no Rafting da Lua Cheia, que só é cancelado no caso de uma chuva muito intensa. Noturno, exige que os tripulantes usem coletes com fitas refletivas e pulseira de neon.
À noite, de volta ao Centro, tinha de ter hambúrgueres e cervejas artesanais – é a vanguarda no Temple Burger. Há opção vegetariana, mas o que mais sai é o gaúcho, hambúrguer de costela com queijo prato, bacon em fatias e molho barbecue. Entrega na pousada.
Dia 3
9h – Cristo e compras
É engraçado como tantos municípios da Rodovia das Águas têm um Cristo Redentor para chamar de seu. Lá, a acessibilidade é latente: instalaram piso tátil e elevador para que até os cadeirantes garantam a melhor vista da Mantiqueira aos pés do Pai. Rola até playground adaptado.
A fama de acessível e radical foi precedida pela pecha de polo de vestuário, com mais de 400 confecções vendidas em dois complexos na Estrada Deputado Antonio Silvio Cunha Bueno – que também sedia o Horto, que tem um jardim aromático com sinalização tátil (pisos alerta e direcional, mapas táteis e placas em braille).
O galpão Feira de Malhas e, defronte, o shopping Moda de Fábrica, tem em comum os preços baixos sobretudo no atacado e o ar cafona, a não ser que queiras arrematar um vestido na Dudanina, sim, uma loja “cover” da Dudalina. Melhor comprar cápsulas do café local 7 Senhoras ou conferir o Prime Outlet (Avenida Doutor Plínio Salgado, 5647), na estrada que liga a Bragança Paulista, já em território bragantino. Vende Ellus, DKNY e calça Levi’s a R$ 79,90.
15h – Pão inca, sol poente
Após o almoço no hotel pré-check-out, malas ao carro. Antes de ir para casa, rumei à Pedra Bela Vista, 1.200 metros acima, numa rota cujo solo melhorou muito. Para entrar, passa-se por uma loja com tudo que é suvenir local, até sabonete de colher, aí vem aquele mirantaço. As cidades do circuito das águas estão ao longe, pequenas.
Tem um bar-restaurante com comanda individual para provar o pan de palo, receita peruana. “Os indígenas faziam suas artes e andavam um tanto pelos Andes para vendê-las”, conta o fotógrafo Daniel Rosa, “e, quando sentiam fome, pegavam essa massa, faziam fogueira e a esquentavam.” Recebi um pau de madeira comprido com a massa, cozi na fogueira na pedra e devolvi para botarem o recheio.
Experiência bacana também é dormir na Pedra Bela Vista, nas Cabanas Triangulares, estilo soft camping australiano. Quem anda ainda pode fazer rapel, trekking em grutas até para crianças e arco e flecha, além de slackline e downhill grátis. Mas o epílogo é mesmo o pôr do sol sentado na pedra ou, no meu caso, na cadeira de rodas. A brisa batendo. Na mente, a Oração ao Tempo. Ah, se todos os políticos pensassem assim em inclusão… “Ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos, tempo, tempo, tempo, tempo, num outro nível de vínculo, tempo, tempo, tempo, tempo.”
Publicado na edição 271 da revista Viagem e Turismo