Você já deve ter ouvido falar que o mercador veneziano Marco Polo (1254-1324) foi o grande responsável em levar para a Itália o macarrão da China (e também, segundo a lenda, o arroz e o sorvete).
Mas ele foi muito mais do que isso.
Quem já leu As Viagens de Marco Polo, livro que conta suas aventuras pelo Oriente, sabe que ali estão relatos que mudaram a compreensão ocidental sobre o lado de lá. Para os europeus, essas histórias foram, por muito tempo, umas das poucas fontes de conhecimento sobre a Ásia. O livro é uma obra fundamental da literatura de viagens e, provavelmente, a mais influente de todos os tempos.
E parte desse roteiro acaba de virar uma série megalomaníaca da Netflix: Marco Polo, do roteirista californiano John Fusco, fascinado desde criança pelas histórias do superviajante. A série estreou no último dia 12 de dezembro e traz cenas de batalhas épicas em cenários asiáticos com boas pílulas de sabedoria oriental. (!)
Mas quem foi esse cara mesmo?
Os episódios de Marco Polo recontam a história dele mesmo: o lendário aventureiro que rodou a Ásia e passou duas décadas a serviço do imperador mongol Kublai Khan, no século 13. Marco, junto com o seu pai Niccolò e seu tio Matteo, foi um dos primeiros ocidentais a percorrer a clássica Rota da Seda. Ele partiu de Veneza em 1271, aos 17 anos de idade. Viajou inimagináveis 24 mil quilômetros (!), desbravando territórios excêntricos e até então totalmente desconhecidos para a maioria dos ocidentais. Quando a família Polo retornou a Europa, meros 24 anos depois, seus compatriotas, que pensavam que eles já estivessem mortos, não os reconheceram.
Mais tarde, Marco Polo foi preso por ter participado de uma batalha em Gênova. Durante a prisão, relatou suas impressões – com exagero, elegância e altas doses de aventura – a um colega de cela escritor, um certo Rustichello, que comprou a ideia e publicou o livro, que acabou virando um dos primeiros best-sellers do planeta (originalmente escrito em francês, logo traduzido para o italiano e reproduzido em série pelos quatro cantos do mundo).
Hoje é muito claro que a narrativa inspirou viajantes célebres e até desbravadores dos mares como Cristovão Colombo e Vasco da Gama, que mais tarde descobririam outros mundos e rotas. Mas Marco Polo também teve suas próprias inspirações: Kublai Khan, conhecido por sua tolerância religiosa, era um imperador “moderno”, que almejava a união das civilizações oriental e ocidental. E Marco, de fato, era um cara descoladíssimo para os moldes medievais, um dos primeiros a iniciar um intercâmbio mundano de cultura e espiritualidade. Com uma sede inenarrável de desbravar novos destinos, ele parecia mesmo ter nascido para a coisa – afinal, não era fácil para um europeu catequizado pelo Vaticano ver com os próprios olhos toda aquela excentricidade. Se para nós, viajantes globalizados do século 21, essa coisa de “desbravar lugares longínquos” já é bastante delicada, imagina naquele tempo? Marco era faminto e voraz, e, graças à ele, o Ocidente começou a abrir seus braços para um mundo novo.
É certo que ele confessou, pouco antes de morrer, que teria inventado histórias fantasiosas para o seu ghost writer – piração total ou síndrome comum de alguém que viajou tanto, por tanto tempo, imerso em culturas tão distintas. De fato, há relatos fabulosos que incluem homens sem cabeça e uma ilha inteira habitada só por mulheres que eram “fecundadas pelo vento”. Acredita-se que ele não tenha vivido, mas ouvido de viajantes árabes, boa parte dos fatos que relata. Alguns historiadores, inclusive, apontam dúvidas sobre seu itinerário de viagem, que dizem ter distâncias inverossímeis.
Porém, nada disso importa. Os relatos de Marco Polo transformaram uma época, enriqueceram o imaginário popular e abriram as portas de um novo mundo espiritual para uma mentalidade prioritariamente católica. A própria corte de Kublain Khan é a metáfora perfeita de um reino medieval repleto de batalhas e fantasias. Prato cheio para uma série de TV.
Marco Polo, a série
Pois é. A Netflix fecha o ano lançando o épico mais grandioso que se tem notícia. Especula-se que ele seja mesmo o mais caro da história das séries – os 10 episódios da primeira temporada, que mobilizaram uma equipe de mais de 500 pessoas de vários países, podem ter custado US$ 90 milhões, quase um terço a mais que uma bateria completa de Game of Thrones, sucesso absoluto da HBO.
A nova série investe em uma receita que tem dado certo (a princípio, a mesma de Game of Thrones). Além de muitas licenças poéticas, dá-lhe violência – com centenas de figurantes bem treinados em artes maciais – e erotismo. Nesse caso, em um contexto específico: ao fazer parte do Reino de Khan e aprender idiomas, caligrafia e montaria; Marco Polo também fuma haxixe, luta kung fu e descobre novas posições sexuais. Mas, segundo os produtores do épico, nada mais coerente com seus próprios relatos originais… (ele falava muito de mulheres e artimanhas eróticas ainda desconhecidas no Ocidente. Sabe aquela história de que os indianos inventaram o Kama Sutra?).
Quem vive o personagem principal é o italiano Lorenzo Richelmy, que até então só tinha participado de produções europeias (e teve de aprender inglês na marra em tempo recorde). Para recriar esse universo elegante e multiétnico do século 13 (pense em um reino com europeus católicos, monges budistas, guerreiros taoístas, cuncunbinas chinesas e turcos islâmicos no mesmo combo), a Netfix alugou um estúdio em Johor, na Malásia, onde construiu o Reino de Kublai Khan (vivido pelo ator britânico de descendência chinesa Benedict Wong). Também há gravações em cenários estonteantes da Itália e do Cazaquistão. Ou seja, o épico tem tudo para ser como o próprio Marco: um clássico.
Quem já assistiu? Como a Netflix é um serviço de streaming, dá para ver todos 10 episódios em uma tacada só.