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Pedal de Serra

Três dias no Vale Europeu, em Santa Catarina, o circuito mais bacana de cicloturismo do Brasil

Por Maikon Delgado
Atualizado em 16 dez 2016, 09h07 - Publicado em 18 set 2011, 17h07

Gota a gota, o óleo cai sobre o pinhão. Com um impulso, empurro a catraca, que faz girar a roda. Aperto o freio. O outro. Ouve-se o som das rodas em contato com a brita: a minha magrela está pronta. Encosto-a no muro.

Aos poucos e cada vez mais elas se fazem presentes. Nas cidades, no campo, como transporte ou lazer. O pedal é democrático. Não discerne jovens de velhos, homens de mulheres. Ricos de pobres. Pouco importa se ela é esbelta, descolada ou ajeitada. Todas são magras. Só exigem esforço. O resto é no deixar ir. A bicicleta é isso: misto de dedicação com liberdade. Avança no ritmo perfeito. Nem muito devagar para não valer o suor, nem muito rápido ao ponto de perder a paisagem. Sobre duas rodas, você está à mercê do clima. Se é pela manhã, sente nos braços e pernas o fiozinho gostoso do fescor; à tarde, a umidade e o calor do dia. Se der sorte, pega chuva. Com céu aberto, você mergulha no azul porque está debaixo dele. Com a magrela não há molduras.

Enquanto o orvalho fesco da manhã molha os selins, vejo o Chico ajudar os outros com seus alforjes e demais apetrechos. O Fábio e a Jéssica se alongam. A Cris já aquece a câmera. Somos cinco: psicólogo, historiador, advogada, antropóloga e este escritor-viajante diletante.

Elas também são cinco: três Redtek, duas Caloi.

O cenário é o Vale Europeu, um pedaço da região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Aqui se realiza o passeio cicloturístico mais famoso e prestigiado do país, que passa por nove municípios de forte influência alemã e italiana. Idealizado pelo Clube de Cicloturismo do Brasil, o circuito de 300 quilômetros é feito quase que exclusivamente em estradas de terra secundárias e trilhas. O passeio completo foi pensado para uma semana, mas meu grupo resolveu encurtar para três dias.

Mesmo assim, para quem não tem treino, fácil não é, não vou mentir. Difícil não sofer com as subidas fortes ou a exposição prolongada ao esforço. Deve-se estar minimamente em forma para dar conta do circuito parcial, o que dizer do roteiro todo. O problema não é o esforço na hora da pedalada, mas sim a fadiga acumulada dos dias. Sem um bom preparo, são as pernas, braços, costas e nádegas que vão denunciar. Ao que importa. Nossos três dias foram assim:

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1º DIA

Timbó > Rodeio > Doutor Pedrinho

Extensão: 56 km

Trajeto: difícil, com a subida forte e íngreme do Morro do Ipiranga e trechos de terra às vezes esburacados

Já sabíamos que o começo seria difícil. Teríamos de enfentar o famigerado Morro do Ipiranga, com seus oito quilômetros de subida pesada. No plano altimétrico, a gente sai quase do nível do mar e sobe 700 metros. É o momento mais complicado de todo o circuito. Desde os primeiros metros, vimos que o Morro fazia jus à fama. O Chico e a Jéssica, que haviam feito o circuito inteiro, aconselharam: “Poupe energia”. Descobri que empurrar a bike não é vergonha não, ainda mais se você avança mais rápido com os pés do que com pedais. Sábia filosofia.

De qualquer forma, com mais ou menos esforço, desde o início a gente já começa a colher os frutos. Na região toda do roteiro predomina a atividade rural e uma cultura imigrante forte. Os locais descendem principalmente dos italianos e alemães que chegaram a Santa Catarina no final do século 19. As paisagens, verdes, colorem a pedalada e lhe dão ares bucólicos. A vida colonial também. Casas de madeira, fogões a lenha, os lambrequins típicos dos telhados de outros tempos. E os poços: a água ainda vem deles ou diretamente dos riachos.

Logo adiante, tendo já vencido um pouco mais da metade da subida, encontra-se o El Picol Paradis. Hortênsias, fé e 63 anjos descrevem este lugar. Cortesia de Paulo Notari, morador de ascendência italiana que levantou o santuário nos arredores de sua casa para demonstrar sua devoção em Cristo. Ele costuma chamar o lugar de “pequeno paraíso”. Cada uma das estátuas segura nas mãos uma flor. No meio, a maior delas, um pequeno Cristo de braços abertos.

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Mais para fente, outra parada, desta vez “nos italianos”, como disse o Chico. Um casal hospitaleiro que já o havia recebido em sua outra pedalada pelo Vale Europeu. Ô de casa, gritei. Palmas. Entrem, sintam-se à vontade. Seria muito pedir um copo de água? Imagina. Água, sombra e descanso não se nega. Gente da cidade sempre acha gente do interior aberta e gentil. Talvez porque sejam, de fato. A senhora, solícita, nos serve e nos oferece sua simpatia. O senhor, com seu sotaque de colono do Vêneto e seu cigarrinho de palha male male acendido, nos conta da vida. Ou melhor, a vida nos conta deles. Mãos calejadas, pés carcomidos pelo sol e sorriso amigo no rosto torrado de sol. São aposentados, têm um filho caminhoneiro e outro estudando.

Na hora de ir, perguntamos se falta muito para terminar a subida, ao que o senhor responde tantinho assim, depois é só um deus levar. Depois do topo, oscilamos entre subidas e descidas, com predominância das últimas. O resto do caminho até Doutor Pedrinho continua por estradinhas de terra vicinais. É tudo tão ermo que a chegada a Doutor Pedrinho, com 3 000 habitantes, asfalto e carros, parece um reingresso à civilização.

Bicicleta encostada, resta contemplar o arco-íris, que é lindo do alto do morro onde está o Hotel Bella Pousada. Linda também é a noite, com a cidade iluminada embaixo. A conversa mais tarde enveredaria pelos caminhos que fizemos, pelo que vimos, degustamos. Tudo em torno à polenta brustolada (daquelas bem firmes, feitas na chapa) do hotel, uma deliciosa celebração à tradição.

2º DIA

Doutor Pedrinho > Alto Cedro

Extensão: 40 km

Trajeto: de dificuldade média, às vezes por trilhas estreitas

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Na manhã seguinte, já sabíamos de antemão que a pedalada iria ser mais tranquila. Nada de Ipiranga pela fente. Logo no início, um trecho de uns 11 quilômetros de estrada de chão, plana, por entre arrozais e outras plantações. O destino era Alto Cedro, passando pela cachoeira Véu da Noiva.

O dia passa no avanço das rodas. A estradinha, que já era vicinal, vai estreitando até virar uma mera trilha gramada. Uma e outra porteira se lançam no caminho, e o conselho recebido é deixá-las como estavam. Neste dia, também atravessamos dois riachos. Ao lado de um deles, almoçamos. Um touro bravo parecia pretender nos expulsar, mas no final das contas nos aceitou lá por uma hora. Assim como ele dividiu seu canto conosco, nós também compartilhamos a trilha com outros ciclistas. Os novos companheiros nos presentearam com bananas e barras de cereais. A sobremesa estava garantida. Depois disso tudo, seguimos até a Barragem do Pinhal.

Para atravessá-la, entrou em cena Raulino Duwe e seu barquinho. Em duas viagens nos transportou pelas águas da barragem até o outro lado, à sua casa. Além de agricultor, também recebe turistas que vêm à região com ou sem bike. Recostado ao batente da porta, com seu sotaque alemão do interior que não distingue rr de r (daí a piada famosa em Santa Catarina: a caixa do supermercado pergunta ao comprador tristonho: “Queres carinho?”), disse que estava se preparando para receber mais de 70 cicloturistas, e que todos eles iriam se hospedar na propriedade da família.

Sentados à beirinha da barragem, vimos depois as crianças da região tomarem banho. Vinte metros de profundidade naquele ponto, disse uma delas, dentro d’água. À noite, como de costume, mais lembranças do dia. Numa viagem como essa, o caminho é a gente.

3º DIA

Alto Cedro > Timbó

Extensão: 18 km

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Trajeto: Fácil. Há uma descida de serra, íngreme e longa, com trechos esburacados

Dia de voltar ao ponto de origem. Novamente na outra margem da Barragem, passamos por Alto Cedro e de lá, curva após curva, chegamos ao começo da descida da serra, que leva até o ponte de madeira sobre o Rio Milanês. Pela fente, o último e mais tranquilo trecho. Tudo pensado pelo Chico, contemplando a fadiga acumulada. Da barragem até Timbó, nada de subidas. A descida de alguns quilômetros leva minutos. Pode ser um dos highlights para os mais destemidos. Optamos por voltar a Timbó desde Benedito Novo pelo asfalto, mas há estradas de terra que ligam um ponto a outro.

Os três dias que passei no Circuito formaram um roteiro entre muitos possíveis. Podiam ser sete dias, cinco, quatro. Seriam sempre prazerosos, acredito. Pedalar sem exagero e parar aqui e ali para um café camargo e um pão caseiro com linguiça blumenau – isso e mais um dedo de prosa com os locais é uma tradução possível da felicidade.

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