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Paris, Lyon, Avignon: cidades de luz na França

Sempre teremos Paris, como disse Humphrey Bogart; então, que tal acrescer à viagem Lyon e Avignon, às quais se chega de trem-bala? E esticar à Carcassonne?

Por Betina Neves
Atualizado em 1 jul 2019, 19h40 - Publicado em 2 Maio 2013, 01h00

https://www.youtube.com/watch?v=q2bhVCfkfw0

Na primeira vez que o escritor russo Fiódor Dostoiévski foi a Paris, em 1862, escreveu a seus compatriotas que lhe pediam que contasse suas impressões do “estrangeiro”: “Com esse pedido, simplesmente me põem em um beco sem saída. O que hei de lhes escrever? O que direi de novo, que ainda seja desconhecido e não tenha sido contado?” Com um pouco de atraso, eu poderia responder a ele: “Não se preocupe, Fiódor, Paris é inesgotável”. E os cerca de 520 mil brasileiros que estiveram lá em 2012 sabem disso. Mesmo com tanta gente palmilhando suas ruas e entrando em suas portas, a Cidade-Luz tem sempre algo a ser descoberto, além de estar constantemente se renovando e lançando tendências que convivem lindamente com seus cartões-postais e seu forte apego às tradições.

Em meu batismo parisiense, um dia todo dedicado à turisticagem assumida, cansei de ter provas disso. No Louvre, vi as novas galerias de arte islâmica cobertas por um teto dourado que parece um véu. O projeto, que custou US$ 125 milhões (alguns deles vindos de patrocinadores do Oriente Médio), é a maior intervenção desde as pirâmides de I. Ming Pei, em 1989. Depois parti pelo circuito de blockbusters e competi com a multidão pela atenção da Mona Lisa, da Vênus de Milo, das telas de David, Ticiano, Rembrandt. Mas o que mais me impressionou no Louvre foi… o próprio Louvre. As pinturas no teto, as escadarias, os detalhes do prédio erguido a partir do século 13 e transformado com o passar dos anos. Lá fora, delirei com o palácio em forma de U que abraça o pátio e as pirâmides, que de polêmicas se tornaram icônicas. Eu finalmente estava ali, no miolo mais nobre de Paris.

Perto dali, seguem os trabalhos no Forum des Halles, antigo mercado, feioso centro de lojas e hub de metrô e RER (trem metropolitano), em obras até 2016. Caminhei entre os tapumes para almoçar na alegre Rue Montorgueil, boa para fugir dos restaurantes caros e de qualidade duvidosa do 1º arrondissement. No Le Marie Stuart, o menu com entrada (salada com queijo de cabra, que eu comeria todo dia) e cordeiro ensopado avec fites saiu por € 14.

Sem medo dos clichês, fui ver velhinhos jogando pétanque (que lembra bocha) no Jardim das Tulherias, que, mesmo com as árvores secas do longo inverno deste ano, é adorável. Deliciei- me com a vista poética de cima da Ponte Alexandre III e com a arquitetura do Grand e do Petit Palais. Quase não acreditei quando o templo grego que abriga a Igreja de la Madeleine, do século 19, surgiu do nada. Suas colunas dialogam com as da Assembleia Nacional, vista de sua escadaria. Entrei com água na boca no glorioso empório chique Fauchon, logo ali atrás. “O que o brasileiro mais compra são chocolates e chás”, disse-me Flávia Brito, a vendedora conterrânea da loja, que deixou o Rio há cinco anos para viver em outra cidade maravilhosa.

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Espichei o olho, tímida, para dentro das fachadas glamourosas da Avenida Champs-Élysées e suas transversais douradas até o lendário hotel Plaza Athénée, que celebra seu centenário em 2013. Segui para o Palais de Tokyo, que recebeu uma recauchutada geral: seus 8 mil metros quadrados viraram 22 mil e o consagraram como “o” espaço de arte contemporânea na Europa – ajuda também o novo time de curadores. Tremi na base quando subi os 50 metros do Arco do Triunfo e avistei, de lá, a majestosa Torre Eiffel. De cima, Paris dá a impressão de que todo aquele espetáculo urbano foi feito só para você.

O sightseeing obrigatório também me levou a Montmartre, das telas de Toulouse-Lautrec, dos sex shops, da boemia, dos cabarés. Fui no embalo ao show noturno do mais famoso deles, o Moulin Rouge. Meu veredito: 1) custa € 95, que você pode investir em um ou até dois bons jantares; 2) as dançarinas (e os dançarinos) são lindas, há coreografias elaboradas, e a produção é grande, mas a sensação final é a de que é tudo over. Melhor conhecer as ladeiras do bairro de dia e explorar devagarinho as fomageries e charcuteries da Rue Lepic e da Rue des Martyrs, ótimas para comprar quitutes para comer no hotel ou fazer um piquenique. Zanzei até chegar ao alto da escadaria da Basílica de Sacré-Coeur, com a capital francesa escancarada à minha fente. O visual me fez entender toda a deferência que Paris merece em nosso imaginário. “Paris consegue superar tudo aquilo que sonhamos sobre ela”, disse-me a mineira Tatiana Adrien, também em sua estreia na cidade. A imagem não parecia tão piegas até o cara com o violão na escadaria começar a tocar Imagine e a plateia de turistas acompanhar balançando os braços. Mas que seja. Em Paris, pode.

E pode ser que o mais tradicional e caro esteja na Rive Gauche, onde fiquei hospedada, mas não é preciso gastar muito para descobrir a alma encantadora de suas ruas. Veja as floriculturas que espalham seus vasos nas calçadas, as pâtisseries de sonho, as librairies que têm livros de arte a preço de banana, as caves du vin, as chocolateries, o pictórico Jardim de Luxemburgo, o suntuoso Panteão, os points dos intelectuais do começo do século 20 que Woody Allen mostrou em Meia-Noite em Paris. Mesmo entre as butiques dá para achar algo mais em conta; já dizia Inès de la Fressange no best-seller A Parisiense: “O luxo da parisiense da margem esquerda do Sena é uma marca que garanta o bom gosto sem ostentar o preço”.

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Se o tamanho do Louvre assusta, o compacto Museu d’Orsay, na Rive Gauche, abriga e acalenta. Ali está a maior coleção de artistas impressionistas (e pré e pós) do mundo. Você já deve ter contemplado Monet, Sisley, Gauguin e Seurat em algum outro momento. Mas há algo de comovente em vê-los depois de viver um pouco da cidade que os inspirou: saber que a mesma Rue Montorgueil onde eu havia almoçado está no quadro de Monet ou pensar que Renoir pintou Bal du Moulin de la Galette baseado em um baile que viu em Montmartre.

A minha balada de Paris vinha em uma toada perfeita, mas eu devo ter levantado com o pé esquerdo no dia em que fui ao Palácio de Versalhes. Fazia um vento descomunal, e o termômetro não saía do zero. Vencida a comprida fila para entrar, tive apenas uma pista do que seriam os esplendorosos jardins na primavera e no verão, quando dá para ficar horas deitado entre os canteiros geométricos e floridos assistindo aos espetáculos de águas nas fontes… Eles são obra de André Le Nôtre, jardineiro do rei Luís XIV, o mesmo que assinou o Jardim das Tulherias. Foquei então no interior do palácio para ver o luxo da realeza francesa dos séculos 17 e 18. Lembrei-me, na chambre de la reine, o quarto da rainha, de Maria Antonieta no filme de Sofia Coppola reclamando dos exageros da corte. “Isso, madame, é Versalhes”, respondem a ela.

Bistronomando

O Marais já foi lugar de aristocratas nos séculos 16 e 17, que deixaram como legado a formosa Place des Vosges. Hoje coexistem no bairro a comunidade judaica, uma cena GLS e uma impressionante seleção de butiques. A parte norte, o Haut Marais, é mais ou menos delimitada pelo Museu Picasso – que deve reabrir neste verão, depois de três anos de reformas. A região vem sofrendo notável transformação com a chegada de espaços que misturam moda, design e arte. No Boulevard Beaumarchais, a Merci resume bem esse espírito de concept store: tem café, livraria, móveis de design, objetos de decoração, roupas…

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Outro make over da última década se deu na região do Canal Saint-Martin, com incontáveis cafés, restaurantes, bares hypados, hotéis-butique e lojas que transbordam de suas margens e se alastram pelos arrondissements 10 e 11. A vibe jovem e boêmia recebeu um tempero especial de bistrôs que seguem os passos do premiado Le Chateaubriand. Aberto em 2006, ele conquistou posições prestigiosas na lista da revista britânica Restaurant, que classifica os melhores restaurantes do mundo. “Sigo a tendência da bistronomie: jovens chefs fazendo uma cozinha criativa sem o protocolo dos restaurantes estrelados e sem cobrar muito caro”, disse-me o chef basco Inaki Aizpitarte. Cheguei ao salão simplérrimo às 21h30 para comer no segundo turno, o dos sem-reserva, e provar o menu de seis pratos, que muda diariamente, por € 60. Eu e os convivas daquela noite provamos o interessante camarão frito com pó de framboesa e dorade royale, peixe comum no Mediterrâneo, com aspargos e cacau. O chef usa ingredientes fresquíssimos e abusa do sous vide, método de cozimento lento, a vácuo. E tudo fica absolutamente delicioso. Na mesma onda vai o Pierre Sang in Oberkampf, aberto em junho de 2012 pelo chef finalista do programa Top Chef – e onde o menu sai por, voilà!, € 35.

De Belleville, mais ao norte, se faz menos alarde. Injustamente. Nessa região típica da classe operária e de imigrantes africanos e asiáticos, orbitam bons restaurantes orientais, espaços culturais e bares. Depois de uma volta pelos muros grafitados da Rue Denoyez, o rumo certo é a disputada happy hour do Rosa Bonheur, dentro do Parque Buttes Chaumont. Eu me sentei em uma das mesas ao ar livre com gente de todo tipo em um domingo que devia ser temático: havia bandeiras do Brasil penduradas e La Bamba tocando. Achei graça e fui checar a vista que o terreno elevado do parque dá de brinde, e nem sinal da Torre para eu me despedir dela. Com a última noite em Paris caindo, percebi que não tive tempo de subir a seu topo. Mas, tudo bem. Outro gostoso exercício parisiense é escolher o que fazer na hora de voltar à Cidade-Luz.

Lyon comme il faut

Segui a rota do novo trem econômico de alta velocidade Ouigo, que chega em duas horas à estação Saint-Exupéry de Lyon – homenagem ao autor de O Pequeno Príncipe, que nasceu na cidade –, desde € 10 partindo de Paris (mas é preciso pegá-lo longe, na EuroDisney). O dia estava ensolarado na Presqu’île, a península estreita onde fica o burburinho da cidade, e reluziam os rios Saône e Rhône, que a enquadram. Tratei de seguir rapidamente até Vieux Lyon, o pitoresco Centro Histórico e patrimônio mundial que tem ruas de paralelepípedos e casas medievais e renascentistas. Um funicular leva ao Fourvière, onde os romanos fundaram a cidade em 43 a.C. Veja o interior deslumbrante revestido de mosaicos da Basílica Notre Dame de Fourvière e a panorâmica sensacional de lá do alto; dizem que dá para enxergar os Alpes em dias claros.

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A região de Croix-Rousse lembra Montmartre, com uma profusão de “ateliês-butique”. Lencinhos de seda à venda e museus com antigos teares manuais remontam ao início do século 19, quando Lyon era potência na indústria da tecelagem de seda. Conta-se que, por volta de 1790, um tecelão desempregado chamado Laurent Mourguet resolveu virar dentista e, para atrair pacientes, montou um teatro de fantoches e criou o personagem Guignol, ultrapopular até hoje. Eu me meti a conhecê- lo no Théâtre La Maison de Guignol: meu francês não deu conta de entender as piadas, mas a criançada parecia estar adorando.

A veia artística de Lyon aflora no calendário, no qual há eventos como a Bienal de Artes, em setembro, e o Festival das Luzes, em dezembro, que ilumina seus espaços públicos. Lyon, diga- se de passagem, disputa com Paris o título de Ville Lumière. A cidade também já foi casa para uma célebre família que se orgulhava de ter Lumière como sobrenome. Foi lá que Auguste e Louis, por volta de 1895, descobriram como registrar e projetar imagens em movimento. Hoje o Museu Lumière fica na antiga fábrica e mansão da família, onde está exposto o cinematógrafo original usado pelos irmãos para inaugurar a sétima arte.

Se em Paris vi as novidades à mesa, em Lyon busquei o tradicional. Terra natal do célebre e octogenário chef Paul Bocuse, a cidade preza pela cozinha regional nos bouchons, bistrôs simples com pratos típicos como saussine noir aux pommes (chorizo com maçã) e pieds de cochon (pés de porco). Um clássico é a Brasserie Georges, cervejaria de 1836 que teve entre seus clientes Rodin e Balzac. Acompanhada de um bom tinto Beaujolais, pedi quenelle, um bolinho de peixe típico, degustei o cremoso queijo local, o Saint Marcellin, e finalizei com crème brûlée. Désolée, mas fomage de sobremesa não me convence.

Habemus Papam

Ouvi cantarem a musiquinha da ponte no trem. É uma melodia infantil cuja letra repete e repete “Sur le pont d’Avignon / On y danse, on y danse / On y danse, tous en rond”. E gruda na cabeça. Foi cantarolando o refão que cheguei a Avignon, cidade normalmente usada como base para esticar até a Provence. Cercada por altas muralhas, Avignon deve seus encantos à época em que foi sede do poder papal, no século 14, quando o papa francês Clemente V transferiu a corte de Roma para lá. Explorando suas ruelas e seus becos, rapidamente percorridos a pé (veja uma sugestão de city tour aqui), é inevitável dar com o soberbo Palais des Papes, o maior palácio gótico do mundo. Seus halls, aposentos e pátios testemunham a riqueza da Igreja na época. Nem imagino o que diria nosso modesto papa Francisco hoje diante de tanta suntuosidade.

Ao sair, segui as placas para conhecer a tal ponte, que na verdade se chama Saint-Bénezet. (On y danse, on y danse…) Construída em 1185 e reconstruída diversas vezes, teve a maior parte de seus vãos levada pelas águas do Rio Rhône. De cima dela tive vislumbres do palácio provavelmente parecidos com o que teve Paul Signac, discípulo de Seurat, quando pintou Le Château des Papes, exposto no d’Orsay. Tentei sentir perfume de lavanda, mas ainda não era época, e o que veio foi o cheiro enjoado de incenso de dentro da Catedral de Notre Dame des Doms. Tive um respiro de Provence depois de cinco minutos em um ônibus que me levou à pequenina Villeneuve-lès-Avignon, com seu forte do século 14 e seus jardins que ensaiavam um belo futuro florido para a primavera. De lá, despontavam no horizonte a cidade amuralhada e sua famosa ponte… On y danse, tous en rond.

Cassoulet em Carcassonne

O Ouigo não chega à cidade medieval de Carcassonne, meu destino final, mas até Montpellier, a 150 quilômetros de lá. É preciso comprar um TGV de € 18 para cumprir a distância que falta. Pisquei duas vezes quando dei com as 52 torres de contos de fadas de La Cité, cercada por muralhas de mais de 20 metros de altura que remontam a quase 2 500 anos de história. O conjunto foi encontrado em ruínas no século 19, quando Eugène Viollet-le-Duc se encarregou de restaurá-lo – Eugène também cuidou da Notre Dame, em Paris. O trabalho foi tão bem-feito que a cidade recebe hoje quase 4 milhões de visitantes por ano.

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Caminhando pelo labirinto de ruelas de La Cité, eu e uma quantidade inesperada de turistas vimos lojinhas de suvenires que vendem armaduras de cavaleiro e vestidos de princesa. Em certo momento, fui acertada por uma flecha de plástico que veio não sei de onde. “Isso aqui parece a Disney!”, reclamou um casal de espanhóis diante da longa fila para adentrar o Castelo Comtal, um dos landmarks do lugar. O outro é a bela e gótica Basílica de Saint-Nazaire, onde um pianista tocava Clair de Lune, de Debussy. A multidão parou para ouvir.

Quando a fome bater, pare para um bom prato de cassoulet, feito com feijão-branco, linguiça e coxa de pato. No fim da tarde, a procissão de visitantes ruma para fora do conjunto amuralhado pela Pont Neuf até a Ville Basse, que concentra o comércio e os hotéis. A maioria deixa Carcassonne antes de o Sol se pôr; é uma pena, pois a melhor vista para La Cité é ao anoitecer, com o céu mudando de cor na mesma medida em que as torres se iluminam. Contos de fadas não terminam mesmo antes da meia-noite.

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