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O chapadão dos chapadões

Bem-vindo ao Jalapão, no Tocantins. No coração do Brasil, é um lugar com rios limpos, cachoeiras lindas, dunas e a vegetação primitiva do cerrado

Por Mônica Pileggi
Atualizado em 7 out 2020, 14h51 - Publicado em 12 set 2011, 20h31
O Fervedouro visto de cima  (FG Trade/Getty Images)
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Já se passaram algumas horas desde que partimos de Palmas. As extensas avenidas da última capital brasileira totalmente planejada vão ficando para trás. Agora é estrada, estrada, estrada. Depois da Serra do Lageado, a paisagem do cerrado, com suas árvores baixas e o céu sempre azul, ocupa a janela do caminhão adaptado em que estou. É assim por quase 200 quilômetros, quando surge uma cidade, ou quase isso, Ponte Alta do Tocantins, em que vivem 6 mil almas. Ponte Alta é o portal de entrada no Jalapão, um dos postais do ecoturismo no Brasil, estranho e lindo conjunto de paisagens no qual, para fazer uma síntese precária, rios, cachoeiras e erosão pintam formas caprichosas nas muitas elevações – os chapadões – do meio do cerrado. Como no antigo clichê, o destino está bem no coração do Brasil, na divisa do Tocantins com a Bahia e o Maranhão. São 34 mil quilômetros quadrados espalhados por sete municípios. Por grande parte de sua área, em meio às veredas, está o tubérculo que dá nome à região, a jalapa, ou ainda batata-de-purga, boa para tudo, como dizem lá – tem efeito laxante e é também usada para curar doenças de pele e resfriados.

O Jalapão ocupa um quinto da área do Tocantins, mas apenas parte dele é protegida como parque estadual. Nele, cachoeiras, rios de água potável, dunas, estradas improvisadas de terra, pedra e areia. E ninguém para contar a história, já que a densidade demográfica é baixíssima: menos de uma pessoa por quilômetro quadrado. Para curtir a região, não há hotéis, apenas as barracas profissa que a operadora de turismo Korubo instalou numa área perto do Rio Novo – exatamente para onde vou.

O asfalto só chega mesmo até Ponte Alta, e é ali que nosso guia, Mauro Fontoura, avisa a mim e aos outros 18 do grupo que está na hora do almoço. O rancho é numa residência humilde – o Fasano possível do Tocantins. No cardápio, após uma salada de alface, tomate e pepino, vêm arroz, feijão, linguiça e coxa de galinha caipira. Para acompanhar, cerveja, refrigerante ou suco solúvel, do tipo Tang. Alguns sentam-se para comer no sofá da casa, já que não há cadeiras para todos. De volta ao caminhão e lutando contra a modorra, decido subir numa das aberturas no teto do veículo e sentar-me ali, onde quatro bancos foram colocados para aqueles que desejam enganar o calor escaldante com uma brisa no rosto. Mas, quase como numa relação de causa e efeito, o Korubão para. É hora de descer alguns metros por uma trilha coberta de mata para ser apresentada ao Cânion de Suçuapara: uma enorme fenda de cerca de 15 metros de altura e 60 de comprimento por onde desemboca uma pequena queda-d’água. A água escorre por todos os lados, inclusive pelas raízes das pequenas árvores que estão acima de nós, formando um filete cristalino com que mato a sede. Uma gruta ornada com samambaias, musgos e outras plantas que buscam desesperadamente um lugar longe do sol. Se eu fosse esquecida no Jalapão, provavelmente ficaria por ali.

A tarde passa em mais sacolejos na estrada. Os paredões da paisagem, de dia tão distantes, agora se agigantam. Cai a noite quando finalmente chegamos ao Safari Camp Korubo, à beira do Rio Novo, entre a Estação Ecológica da Serra Geral e o Parque Estadual do Jalapão. Ao todo são 12 tendas, cada uma para duas pessoas, sombreadas por cajueiros e mangabeiras. Há também a barraca-restaurante, um redário e uma lojinha improvisada com os famosos produtos de artesanato feitos de capim-dourado da região (aqui mais baratos que em Palmas). O acampamento é ecologicamente corretíssimo. Quando fica escuro, um gerador a diesel é ativado e a iluminação se dá por minúsculas lâmpadas de LED – ou por lanternas a pilha. Já os banheiros coletivos contam com bolsões de lona abastecidos com a água do rio. Os dejetos que deixamos ali são armazenados num reservatório e, semanalmente, viajam para um aterro sanitário em Palmas.

Após a bateria de instruções sobre o funcionamento do local e o cardápio de passeios que faríamos a partir do dia seguinte, aproveito para conhecer melhor os demais viajantes. O jovem casal maranhense Pedro e Raphaella mantém um hábito curioso quando está em férias – trocar de nome. Assim, ele tornou-se Titchio; ela, Caju. Mas fiquei bem mais próxima das paulistas Cristiane, Mariana, Patrícia e, claro, da minha companheira de tenda, Urânia. À noite, quando os outros dormiam, bebíamos, conversávamos, procurávamos estrelas cadentes no céu – meu recorde: seis. Numa dessas noites, fizemos algo mais ousado: fomos nos banhar no rio, nuas, aproveitando a lua cheia.

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Os dias no acampamento começavam sempre com um farto café da manhã, com maçã, banana, abacaxi, mamão, melão, sucos, pão de queijo, bolos, pão francês e frios. Saíamos para os passeios ficavam a não menos de 20 quilômetros de onde estávamos. Num desses passeios, na passagem por Mateiros, o guia Mauro nos contou uma piada que, imagino, já deva ter contado umas 1 800 vezes: “Tem uma placa aqui”, começou ele. “De um lado está escrito ‘Bem-vindos a Mateiros’. Do outro, ‘Agradecemos sua visita’.” Risos gerais etc., mas a verdade é que Mateiros é um pouco mais que a placa (e a piada). Lá vive uma comunidade quilombola que produz bolsas, tapetes e outras peças de artesanato de capim-dourado, feitas do caule de uma sempre-viva colhida na primavera. Além disso, Mateiros é um lugar cheio de buritis e matas ciliares que ornam rios limpíssimos. Ali está também a Cachoeira do Formiga, pequena queda-d’água cercada por uma vegetação viçosa. Seu poço é uma piscina transparente de cor verde-esmeralda. No fundo dela, areia calcária. É esse esquema também nos famosos fervedouros do Jalapão – as nascentes de rios subterrâneos que emergem com tanta força que é difícil para qualquer um afundar. O Rio Novo, um dos principais da região, é muito procurado por praticantes de rafting, canoagem e outros esportes radicais. É nele também que está a Cachoeira da Velha, da qual a água despenca de um conjunto de quedas largas em formato de ferradura a mais de 20 metros de altura. Junto com as dunas, é a atração mais bonita do Jalapão para o GUIA BRASIL 2010. Num dia, seguindo o curso do Novo, chegamos a um dos cenários do filme Deus É Brasileiro, de Cacá Diegues – na produção, Deus era o Antonio Fagundes. Nas prainhas fluviais, a areia é fofa e branquinha e as corredeiras cessam. Infelizmente, há convidados indesejados por ali: mosquitos que não estão muito aí para nossos poderosos repelentes.

De volta à estrada, nós nos aproximamos da mais fotogênica atração da região, as dunas do Jalapão, originadas da erosão da Serra do Espírito Santo. É difícil deixar de deslumbrar-se com o paredão alaranjado que sobressai contra o azul intenso do céu. São milhões de toneladas de areia misturada a argila que parecem querer desabar sobre o riacho às 9 horas, ainda sob um sol clemente. E sempre tínhamos de subir no caminhão, já que as atrações que corre ao lado. A caminhada até o topo é rápida e leve, acompanhada por mutucas bem ativas. O azulão do céu começa a se transformar, e surgem nuanças de rosa e laranja. Não é realmente à toa que os guias da Korubo deixam para levar os turistas às dunas no fim de tarde. O pôr do sol ali é uma epifania em laranja, vermelho, magenta, azul.

Do acampamento até a Serra do Espírito Santo são cerca de 20 quilômetros de poeira e, como sempre, solavancos. Para quem já estava ficando quadrado e com vontade de reclamar, um antídoto – ou, quem sabe, um castigo. É hora de caminhar. Partindo do pé da serra, andamos 4 quilômetros, sendo os primeiros 900 metros de subida íngreme. Não é preciso ser atleta para subir o paredão, mas é exigido certo preparo físico e muuuita água, pois o sol não cessa, principalmente no alto, onde uma recompensa nos espera. Provamos uma dose do “jalapower”, energético local contendo água, sal, açúcar e jalapa, preparado por Mauro e seu companheiro Max, e seguimos. Nossa missão é conhecer o mirante, espécie de “falésia” do cerrado, área em acelerado processo de erosão que dá origem às tais dunas que se formam nas encostas. Uma sensação estranha, meio ancestral, difícil de explicar, me acomete. É como se chegássemos ao começo de tudo, ou do nada – bem, pelo menos ao começo das dunas do Jalapão eu cheguei. Na volta, espero retomar o fôlego para a descida e caminho até a beirada do platô. Fito o precipício e, mais ao longe, as elevações de arenito silenciosamente corroídas pela chuva e pelo vento e escoadas na vegetação rarefeita. Vem à mente Riobaldo, o protagonista do livro Grande Sertão: Veredas, do mineiro João Guimarães Rosa, que, fugindo dos jagunços, vai dar “até” no Jalapão, lugar estranho que chama de “tabuleiro chapadoso”. “Quem conhece aquilo?”, pergunta Riobaldo. Hoje, mais gente que ontem; amanhã, mais gente que hoje. Mas, em qualquer momento, a mesma sensação de isolamento, estranhamento, maravilhamento. Tabuleiro chapadoso.

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