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Monument Mali

Picos rochosos em pleno deserto, mesquitas de barro, rios sonolentos, etnias milenares. Bem-vindos ao Mali, onde a África é mais blues

Por Caio Vilela
Atualizado em 16 dez 2016, 08h42 - Publicado em 20 abr 2012, 21h22

 

É bastante provável que o Mali não seja o destino onde você deseja passar suas próximas férias. Nem o das seguintes. A monocromia do deserto, os pernoites improvisados em vilarejos, a pobreza e o calor escaldante não são amigáveis. Mas, para quem tem sede de aventura e interesse antropológico, o país africano, colônia francesa até 1960, é uma grande opção. Mesmo que você tenha de esperar um pouco. No final de março, militares derrubaram o presidente, acusado de não combater o terrorismo – um grupo separatista atua desde janeiro no norte do país, região que você e eu não devemos visitar. Eu já sabia que essa região era perigosa, por isso mantive distância.

A nossa viagem começou em Bamako, a capital do país, situada à margem do Rio Níger. Uma brisa quente e empoeirada invadiu o interior do Boeing da Air France assim que a comissária abriu a porta. Era dezembro, em pleno inverno no Hemisfério Norte, e fazia 29 graus. No saguão do modesto aeroporto não havia cartazes de promoção turística nem sinal de visitantes estrangeiros.

Em um táxi caindo aos pedaços, atravessei a cidade rumo ao Sleeping Camel, uma pousada popular entre jovens europeus. Lá encontrei Thomas, um fotógrafo belga que conheci por meio de um fórum de viajantes na internet e com quem havia previamente combinado de dividir os custos de um carro tracionado por dez dias. Bamako, para nós, era apenas um lugar de passagem. Nosso projeto era percorrer por volta de 1 000 quilômetros deserto adentro, conhecer tribos que preservam tradições seculares e paisagens que não devem nada às nossas chapadas.

Junto com o motorista, Issa, elaboramos um roteiro e acertamos o valor de € 100 por dia pelo 4×4, gasolina à parte. Naquela mesma tarde, Issa nos levou ao mercado de artesanato de Bamako, um dos únicos pontos da cidade que atraem estrangeiros (os outros são os bares). Nos corredores do mercado, estatuetas, tecidos tingidos, peças de madeira, joias de prata, cerâmica e máscaras. Os preços começam altos, mas baixam bem após o primeiro sinal de dúvida no rosto dos visitantes.

A odisseia rodoviária começou ao nascer do sol (visto, aliás, pela janela do Land Rover). Pegamos uma estrada espantosamente bem conservada rumo a Djenné. A atração maior do lugar é a Grand Mosqué, mesquita construída com barro e madeira, erguida no século 13 e que se deteriora cada vez que chove forte. Depois de cada enxurrada, ela é laboriosamente refeita da mesma forma primitiva e milenar pelo povo local. Tudo na cidade gira em torno da Grand Mosqué: o mercado, a parada de ônibus, o movimento diário (e minguado) de turistas. Estacionados em frente ao monumento em plena segunda-feira, dia de mercado, flagramos fiéis circulando pelos terraços (não muçulmanos, como eu, são proibidos de entrar). A parede ocre muda de tonalidade conforme o sol baixa, resultando em um jogo de cores lindo, um presente para quem fotografa.

À nossa volta, centenas de mercadores de variadas etnias exibem seus produtos. Um falante vendedor do artesanato de Timbuktu nos adverte contra o perigo de sequestro para quem segue em direção ao deserto. Famoso por ser o último povoado antes de adentrar a porção desabitada do Saara, no norte do país, Timbuktu povoa o imaginário popular dos viajantes. Está presente nos quadrinhos de Tintin, nos desenhos animados, nas biografias dos exploradores e em inúmeras lendas africanas. É o ponto final, a última parada. A partir dali, só há areia até chegar, após centenas de quilômetros, à fronteira com a Argélia. Mas, apesar de todo o mito, o destino em si é pouco atraente. Não há muito para visitar ou fotografar, e esse fato já era um consenso entre os viajantes do fórum online em que pesquisei. Ainda por cima, foi justamente por lá que três turistas holandeses foram sequestrados e um sul-africano foi morto em novembro de 2011 em uma emboscada assumida pela Al Qaeda. Nossa aposta era a região de Hombori, o vale rochoso na extremidade norte do território do povo Dogon, uma das paisagens naturais mais impressionantes da África, habitada por uma das tribos mais primitivas e culturalmente ricas do continente.

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Seguimos viagem até a cidade de Mopti, outra concentração pulsante de etnias à margem do Rio Níger. Pirogas e outras embarcações artesanais deslizam sobre as águas calmas do rio carregando moradores de comunidades ribeirinhas. Roteiros de três ou quatro dias ao longo do rio, com pernoites em pequenos vilarejos, são organizados a partir de Mopti. A viagem lenta (e sonolenta) é popular entre os franceses. Um tour rápido de três horas a bordo de uma piroga típica sacia a vontade. Fugindo dos mosquitos e do risco de malária à beira-rio (o mosquito que transmite a doença dá as caras à noite), minha jornada seguiu por terra, rumo ao que viria a ser a grande surpresa da viagem.

Após três horas na rodovia que liga Mopti à cidade de Gao, chegamos a Hombori, no coração do deserto. Imponentes picos rochosos interrompem a monotonia da paisagem do Saara em um cenário que lembra o Monument Valley, território navajo no Arizona mais conhecido como Terra de Marlboro.

O sol castiga enquanto procuramos sombra aos pés de um impressionante conjunto de cinco agulhas de granito conhecido como Mão de Fátima. “Aparecer por aqui nos meses de verão, nem pensar”, adverte nosso motorista, lembrando a areia que comeu e o calor que passou na última vez que se aventurou pelo Saara em julho. Que o diga o alpinista Eliseu Frechou, que esteve por lá em 1996 para escalar na unha os 550 metros verticais do Kaga Tondo, o “dedo” mais alto da formação. “Além do calorão de 45 graus, houve tempestades de areia e ainda faltou comida”, disse.

O receio de cair em uma roubada se intensifica a cada quilômetro deserto adentro. Qualquer pneu furado ou intoxicação alimentar pode se tornar um problemão, possível de ser resolvido apenas em Bamako, que àquela altura distava pelo menos 600 quilômetros.

No dia seguinte, chegamos à parte mais esperada da viagem. Muita gente vai ao Mali apenas para fazer o trekking pelos vilarejos do povo Dogon. Sua cultura, rica em lendas e crenças, é muito diferente da dos povos muçulmanos, presentes no resto do Mali. Praticamente define uma nação à parte, um país dentro de outro, assim como acontece com os tibetanos na China. O povo Dogon, versado em astronomia, teria registrado no século 12 as luas de Júpiter e os anéis de Saturno, pelo menos cinco séculos antes dos europeus. Uma mudança na paisagem exibe inúmeros mirantes pelos quais começamos nossa caminhada de dois dias. A partir daqui o transporte é a pé. O pernoite será ao relento, e a comida, uma (boa) surpresa a cada vilarejo.

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Após nos despedirmos de Issa, foi a vez de Momo nos guiar. Descemos por uma fenda no paredão que lembra o relevo da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, embora muito menos verde. O cheiro forte das cabras pastoreadas por crianças evidencia a presença humana. Espalhadas debaixo dos abrigos naturais da famosa Escarpa de Bandiagara, pequenas casas de barro se amontoam sob o abrigo rochoso. “A criatividade de nossos ancestrais vai longe”, conta Momo enquanto acende uma fogueira no final daquele dia junto com o Hogon, uma espécie de pajé do povoado. Ouvimos histórias sobre facções religiosas, teorias da evolução, dos astros. Nosso pernoite foi improvisado no topo de uma casa de barro. Chapados de cansaço sobre colchonetes cobertos com mosquiteiros (embora não houvesse mosquitos), apreciamos a Via Láctea sobre nossa cabeça, como se aquilo fosse um hotel de 1 milhão de estrelas.

No dia seguinte, fomos acordados pela luz dourada da alvorada projetada na rocha. Após percorrer as partes planas do território Dogon, reencontramos Issa no vilarejo de Tireli. No caminho de volta a Bamako, percebo que estou levando para casa uma ótima impressão do Mali e de sua gente. A vontade de voltar ao país só pode ser um bom sinal.

Crianças e cabras na região da Escarpa de Bandiagara, Mali, África

 

Malibeat

Difícil encontrar um país africano musicalmente tão rico quanto o Mali; tanto que uma das teorias diz que o blues nasceu ali. Fato é que nomes consagrados como Salif Keita e Ali Farka Touré, este um dos 100 melhores guitarristas de todos os tempos segundo a revista Rolling Stone, são malineses. Conferir os músicos da vez em um giro por Bamako é obrigatório. No Le Hogon (Avenue Kassa Keita Dar Salam), um dos clubes mais clássicos, o grande nome é Toumani Diabaté, um mestre do kora, uma espécie de harpa feita com cabaça e 21 cordas (Arnaldo Antunes e Edgar Scandurra gravaram com Diabaté, em 2011, o CD A Curva da Cintura). O Savana (Rue Korofina Nord) bomba às quartas, quando o popular Djibee 5 mistura reggae com ritmos tradicionais cantados em bambara, idioma de um dos maiores grupos étnicos do país. No Djembe (Lafiabougou), as melhores bandas se apresentam às sextas e aos sábados no agradável espaço ao ar livre.

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Leia na próxima página o Guia VT: onde ficar, como chegar, quem leva, documentos, transportes

 

GUIA VT

Bamako (223)

Ficar

Em Bamako, a pousada Sleeping Camel (Rue 25, Porte 80, Badalabougou Est; diárias desde € 50) ajuda na organização de incursões pelo país. O mesmo se pode esperar do Hotel Tamana (diárias desde € 110).

Panorâmica

No século 14, o Império do Mali foi um importante centro de comércio na África Ocidental. Os franceses dominaram a região no início do século 20 até 1960, quando o país conquistou a independência. Em 1992, Amadou Toumani Touré foi eleito por voto direto, sendo o responsável, nos últimos dez anos, por transformar o país em uma das democracias mais fortes da África. A despeito disso, Touré vem recebendo críticas por não equipar seus exércitos no combate ao terrorismo. Quase metade da população de 14 milhões de habitantes vive com menos de US$ 1 por dia.

Como chegar

A Air France (0800-8889955) voa até Bamako, com conexão em Paris, desde US$ 2 189. A TAP (0300-2106060) faz conexão em Lisboa, desde US$ 2 033.

Quem leva

A Highland (11/3254-4999) tem pacote de 11 noites que inclui Bamako, Segou, Mopti, Kundu e Timbuktu, desde € 5 190. Na Mundus (11/32624-399), o pacote de oito noites com roteiro similar custa desde US$ 2 170, sem aéreo. Informe-se com seu agente de viagens sobre a segurança.

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Documentos

O visto de entrada pode ser adquirido no aeroporto em Bamako (US$ 50). Antes de se aventurar pelo interior do país, dê um pulo na Embaixada do Brasil (Rue 113, Porte 62, Badalabougou Ouest, 2022-9817) e deixe-os informados de sua rota e sua previsão de retorno. Just in case. É obrigatório portar certificado de vacina contra febre amarela. Evite pernoites em hotéis próximos do Rio Níger, pois há risco de malária.

Dinheiro

Leve euros e dólares em espécie para trocar pela moeda local, o franco CFA. Caixas eletrônicos são raros.

Melhor época

De novembro a fevereiro as temperaturas oscilam entre 20°C e 30°C. De junho a agosto o calor é insuportável.

Transportes

No fórum www.lonelyplanet.com/thorntree você pode achar parceria para uma viagem similar e ter informações frescas sobre serviços e segurança. Issa, o motorista contratado para guiar o roteiro desta reportagem, pode ser encontrado no e-mail mamadoutapily@yahoo.fr

 

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Abril de 2012 – Edição 198

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