Teerã, 20h30: com cânticos de “Deus é grande”, os alto-falantes das mesquitas convidam os muçulmanos às orações. Quase ao mesmo tempo, dezenas de pessoas com roupas pretas aparecem em meu caminho.
Acabo de chegar à capital iraniana e fico incrédulo com o que vejo: sob a luz amarelada da cidade, a multidão que vem na minha direção não é nenhum grupo de senhoras de xador (o manto negro que cobre muitas mulheres no Irã) a caminho dos templos, mas uma turba de roqueiros cabeludos indo, na mesma hora da reza islâmica, a um show de heavy metal.
Resolvo segui-los e, de repente, me vejo na entrada de um teatro sob a Torre Azadi, monumento de mármore que homenageia o Império Persa, pedra fundamental da nação iraniana.
“De onde você é?”, me pergunta Heidi, a moça da bilheteria, uma linda nativa de grandes olhos negros e franja vermelha que ondula para fora do véu colorido. Ao ouvir “Brasil”, sua tréplica é rápida: “O ingresso custa 200.000 rials (cerca de 20 reais), mas, para você, é de graça. Bem-vindo ao Irã”.
Na frente do palco, se espremem pelos menos 200 pessoas com camisas do Sepultura ou Black Sabbath, que urram quando a banda Kahtmayan entra. São quatro músicos (guitarras, baixo e bateria), com jubas generosas. Em uma hora de show, fazem o barulho de um jato de guerra. A plateia bate cabeça, faz chifrinhos com as mãos, grita quando o concerto acaba.
Sim, essa foi a minha introdução à República Islâmica do Irã.
País em transição
Não, o Irã não é um lugar em que Ozzy Osbourne passaria a aposentadoria. Shows como o do Kahtmayan ainda são raros, e a banda não pôde cantar um verso sequer: letras, nesse contexto roqueiro, são vistas pelo governo como potencial fonte de mensagens anti-islâmicas, e, por isso, estão vetadas.
Mas o cenário que encontrei ilustra a encruzilhada onde o país está: de um lado, poderosos líderes religiosos zelam para que o alicerce moral da sociedade sejam as ideias da Revolução Islâmica de 1979 – que instalou um regime teocrático em que grande parte das leis está baseada no Corão. O país convive, por exemplo, com a proibição do consumo de álcool e a resistência a influências da cultura ocidental (o Facebook é proibido).
De outro lado, surge uma população jovem ávida por se expressar e um presidente reeleito, Hassan Rouhani, apontado como moderado e disposto a abrir o país a visitantes. A meta do governo é de que o Irã receba, a partir de 2025, 20 milhões de estrangeiros por ano (em 2017 eram 6 milhões; em 2004, 1,9 milhão).
E, assim como eu, os viajantes se surpreendem. Em vez de um lugar fechado, o Irã aparece como nação de paisagens fotogênicas, cenas inusitadas e uma população hospitaleira, que, vestindo xador ou jaqueta do Metallica, faz o forasteiro se sentir em casa.
E roupas? As mulheres, mesmo estrangeiras, devem cobrir os cabelos com um véu e o corpo com roupas compridas em público – calça jeans e camisa de manga longa são suficientes. (Casos de assédio são bem mais raros no Irã que em outros países do Oriente Médio – e até que no Brasil.) Para homens, é aconselhável que vistam calça e, pelo menos, camiseta de manga curta em locais públicos. Estrangeiros que usam short na rua costumam receber olhares meio tortos por lá. |
No bazar
Teerã é uma cidade pulsante. Tem mais de 8 milhões de habitantes e um trânsito infernal, que pode ser driblado com um metrô com mais de 100 estações.
No Centro, todos os caminhos levam ao Grande Bazar, labirinto com 10 quilômetros de vias cheias de tendas de especiarias, casas de chá, lojas de objetos de cobre e ouro. Por ali, os viajantes não são assediados pelos vendedores, algo comum em outros países mais visitados do Oriente Médio, como Turquia e Egito. Mas vale barganhar nas compras mais caras: os comerciantes até esperam por isso.
Em meio ao aroma doce da fumaça da qalian (como é a chamado o narguilê em farsi, idioma oficial iraniano), é possível comprar deliciosas tâmaras, cerejas e damascos e temperos como cardamomo e açafrão.
As vielas são forradas pelos tapetes persas – tão ricos em detalhes que é difícil se chocar ao saber que alguns custam mais de 2.000 dólares, e podem alcançar preços até dez vezes maiores no mercado. Mas há versões na faixa das centenas de dólares. Retratos do carrancudo aiatolá Khomeini, líder da revolução de 1979, aparecem por todo o Grande Bazar, até mesmo ao lado de uma área com lojas de provocativas lingeries.
Por lei, quando estão em espaços públicos, as mulheres, inclusive estrangeiras, devem cobrir a cabeça com um veú e usar roupas que deixem apenas o rosto, o pescoço e as mãos à mostra. A vaidade das iranianas, no entanto, não se deixa abalar pelas regras. No bazar de Teerã e nas ruas de todas as grandes cidades do país, é possível vê-las com exuberantes penteados saindo dos veús, roupas estilosas e narizes padronizados: finos, pequenos e arrebitados, resultado das cirurgias plásticas que viraram febre por lá.
Metrópole persa
Mesmo sem muitas placas em inglês, o Centro de Teerã pode ser explorado a pé. Ao sair do Grande Bazar, perco-me por algumas quadras, mas logo encontro um solícito iraniano, que me mostra onde estão as principais atrações da área.
Cruzo o tranquilo Parque Shahr, linda área de 26 hectares com gramados onde famílias fazem piqueniques, e passo pelo perturbador Museu da Paz de Teerã, com exposições sobre os ataques químicos de Sadaam Hussein contra as tropas iranianas na guerra Irã-Iraque, nos anos 1980 – e fotos de adultos e crianças deformados pelos efeitos do gás sarin.
No horizonte, aparece outro símbolo da capital do país: a Torre Milad, construção de 435 metros de altura com um mirante com vista para a cordilheira nevada do Alburz, que cerca Teerã e abriga resorts de esqui muito visitados entre dezembro e março.
Igrejas também fazem parte da paisagem: apesar de ser uma República Islâmica, o Irã permite o exercício de outras religiões monoteístas. A comunidade judaica, por exemplo, soma mais de 20 mil membros por lá e tem sinagogas espalhadas pelo país.
Atrações em Teerã
E quer saber mais sobre os atritos entre Irã e Estados Unidos? Pegue um metrô até a estação Taleghani, a poucos minutos do Centro, e vá ao “covil da espionagem“, a antiga embaixada americana em Teerã. Hoje, o lugar é um museu que mostra a visão iraniana de um dos tantos momentos complexos entre os dois países.
E narra como o governo americano contribuiu para o golpe de Estado contra o primeiro-ministro iraniano Mohamed Mossadegh (que entrou em conflito com a América após planejar a nacionalização dos campos de petróleo de seu país) e se esforçou para barrar a Revolução Islâmica. Em um de seus muros, aparece uma “obra de arte” célebre: um grafite da Estátua da Liberdade com a face em forma de caveira.
Em Teerã, começa também um percurso pela história imperial do Irã. Na região central da cidade, está o Palácio do Golestão, finalizado na monarquia dos Qajar (no poder de 1785 a 1925) e que, depois, serviu como local de coroação da dinastia dos Pahlevi, derrubados pela revolução de 1979.
Com um jardim magnífico, o complexo abriga o famoso Trono de Mármore, sustentado por figuras humanas perfeitamente talhadas. Ao redor dessa obra de arte, se espalham halls que poderiam estar no Palácio de Versalhes. Usados no passado para cerimônias oficiais, são espaços forrados por espelhos e cristais. É um ambiente brilhante que beira a psicodelia.
E mais além Tabriz: No noroeste do país, perto da Turquia, a cidade tem o que talvez seja o bazar mais lindo do Irã, um labirinto de ruelas em que são vendidos ouro, roupas, tapetes e especiarias. Mashhad: No nordeste do Irã é onde está o fascinante templo do imã Reza, uma das figuras sagradas do xiismo, vertente do Islã predominante no território iraniano. |
Patrimônios culturais
Por causa de sua arquitetura e história, que remontam a mais de 400 anos, o Palácio do Golestão é um dos 21 patrimônios culturais da Unesco no país. Um dos outros é a Naqsh-e Jahan, principal praça de Isfahan, cidade imperdível a 340 quilômetros de Teerã.
Diariamente, o pátio retangular é percorrido por carruagens com casais que passam por joias da era safávida, uma dinastia iraniana. O caminho começa ao lado do Palácio Ali Qapu, do século 16, continua pela Mesquita Jame Abbasi e seu domo azul-turquesa e vai até a Mesquita Xeque Loftollah.
É ali que fica o que talvez seja o interior mais lindo do país: uma série de corredores cobertos de azulejos com fundo azul e motivos florais que leva até uma câmara com um domo dourado, cheio de arabescos. Uma imagem caleidoscópica que hipnotiza os turistas.
Tenho a sorte de visitar o lugar praticamente sozinho – o Irã permite esse tipo de coisa. E, no momento em que o dia cai e o sol entra nas frestas do domo, há um efeito lindo. Assim como o catolicismo fez na Itália, o Islã gerou obras de arte sublimes no Irã.
Uma casa iraniana
Com ruas planas, seguras e arborizadas, Isfahan é uma das melhores cidades para caminhar no Irã. Ao sair da Naqsh-e Jahan, ando por 25 minutos até a Ponte Si-o-Seh, outro cartão-postal, uma construção de 300 metros que cruza o Rio Zayandeh e tem dois níveis de arcada que parecem se estender ao infinito.
Embaixo dessa edificação de quase 400 anos, um grupo de velhinhos bate palmas e canta músicas persas, com a voz ecoando sob a estrutura de pedra. Um jovem estudante de inglês chamado Farhad, de 17 anos, se aproxima e me explica que é uma tradição local. “Sempre venho aqui para ouvi-los cantar. As letras falam das belezas naturais do Irã, como montanhas e rios.”
Como já havia acontecido em outras conversas com iranianos, Farhad me convida para jantar em sua casa. Dessa vez, resolvo aceitar. Ele pega o celular, liga para a mãe e pede para preparar um fesenjan (receita de frango, amêndoas e molho de romã).
Pouco depois, sou recebido pelos pais de Farhad e suas três irmãs – todas as mulheres cobertas com o xador – em uma ampla sala com tapetes persas cobrindo o chão, uma foto de uma cachoeira forrando uma parede inteira e objetos de cobre nas estantes. O Corão aparece aberto sobre uma mesa e, ao lado, uma televisão ligada na MTV mostra Miley Cyrus, seminua, rebolando em um videoclipe.
Nos sentamos ao redor do banquete, e Farhad, o único fluente em inglês, foi traduzindo a conversa. Pergunto por que eles gostam de Miley Cyrus. O pai responde: “Somos uma família muçulmana, mas é muito chato acompanhar os canais daqui. Os programas só mostram os mulás (clérigos) falando de Alá. Sou caminhoneiro. Quero me divertir quando chego em casa”.
Enquanto sou tratado como um rock star – não param de me servir fesenjan, frutas secas e chá -, a conversa segue. Eles falam com reverência sobre o futebol do Brasil, eu pergunto sobre o tratado que o Irã firmou com potências ocidentais se comprometendo a frear o desenvolvimento de energia nuclear em troca da queda de sanções econômicas. “Acho que fizemos um bom negócio. Mas temos que esperar. Israel e a Arábia Saudita querem barrar o acordo. São eles nossos verdadeiros inimigos. Não os Estados Unidos.”
Ir e vir
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Visitando Shiraz
Shiraz, no sul do país, é um dos principais destinos turísticos do Irã e tem uma infinidade de atrações. Para começar, é onde nasceu e está enterrado Hafez (1315-1390), autor de versos cheios de lirismo conhecidos de cor por grande parte dos iranianos. Cercado por um belíssimo jardim, o túmulo do poeta é ponto de peregrinação e tem alto-falantes que ecoam seus versos.
Poético é também o interior da Mesquita Nasir al Molk, o cartão-postal da cidade. Na parte da manhã, o sol bate em seus vitrais coloridos e forma imagens caleidoscópicas. O espetáculo de cores atrai muitos turistas: chegue cedo para evitar as filas. Entre o túmulo de Hafez e a Nasir al Molk, Shiraz tem bulevares arborizados e um bazar com tapetes por ótimos preços.
Mais cidades
Shiraz também é ponto de partida para tours a Persépolis, a 60 quilômetros de distância. Fundado há 2.500 anos como capital cerimonial do Império Aquemênida, o lugar foi destruído quando Alexandre, o Grande invadiu a região, por volta de 330 a.C.
Algumas das colunas que cercavam os palácios reais permanecem de pé, fazendo sombra em muradas com baixos-relevos que retratam episódios da história aquemênida. Mas a verdade é que sobrou pouco da antiga cidade por ali.
Para nós, brasileiros, pode ser mais interessante visitar… Pasárgada! Citada no famoso poema de Manuel Bandeira, o lugar em que ele seria amigo do rei e teria a mulher que quisesse, na cama que escolhesse. O local hoje não é bem essa festa. É um silencioso terreno desértico, com ruínas de construções do Império Aquemênida.
Mas também reserva um encontro com um monarca: é onde, supostamente, está enterrado Ciro, o Grande, um dos líderes da história persa que controlou vastos territórios na Ásia no século 6 a.C.
À noite, o céu estrelado sobre o sítio arqueológico, longe das luzes das grandes cidades, é uma cena que caberia em um poema de Hafez. Não são apenas as letras do Corão que irão escrever o roteiro de sua viagem pelo território iraniano.
Quando ir: Cercado por desertos, o Irã tem temperaturas extremas no verão e no inverno. De março a maio e de setembro a outubro, o clima é mais ameno. Na última semana de março, o comércio fecha por causa do No Ruz, o Ano Novo persa. No Ramadã, o nono mês do calendário islâmico, é proibido comer ou beber em público – em 2018, o Ramadã vai acontecer de 16 de maio a 14 de junho. Dinheiro: O rial. Atenção: o país não está no sistema bancário mundial, não dá para sacar dinheiro em caixas eletrônicos nem usar cartão de crédito. Língua: O persa moderno, ou farsi Fuso: +6h30 Documentos: Há três maneiras de tirar o visto iraniano, constantemente atualizadas no site da Embaixada da República Islâmica do Irã. A mais tradicional é pedir autorização de visto nas agências de turismo reconhecidas pelo Irã. Dá também para gerar visto eletrônico no site E-Visa da embaixada. Já o Visa on Arrival é tirado no aeroporto de lá. As três modalidades de visto têm duração de 30 dias. Comunicação: Facebook e Twitter são proibidos, mas Whatsapp e Telegram funcionam. A Irancell vende chips pré-pagos com internet 4G para turistas. Como chegar: Não há voos diretos do Brasil, mas brasileiros chegam lá com apenas uma conexão no Oriente Médio ou na Europa. Há rotas com paradas em Amsterdã, Frankfurt, Istambul e Paris. |
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Publicado na edição 265 da Revista Viagem e Turismo