Viver como a família Schürmann – conhecendo o mundo inteiro a bordo de um barco – pode não ser o seu sonho de consumo. Mas, e se desse para ter um pouco dessa experiência nas férias, apenas por dias ou semanas, sem precisar de nenhum conhecimento de navegação? Pois isso é possível na Europa. Basta alugar uma pénichette, o barquinho que funciona como uma casa flutuante, escolher o roteiro e embarcar nessa aventura literalmente. O aluguel de pénichettes é uma prática comum nos países europeus cortados por rios e canais, sobretudo na França, desde a década de 1970.
A paisagem bucólica do Canal de Houillères de la Sarre, na região da Alsácia-Lorena, na França – Foto: Locaboat/Palomba
A embarcação é uma versão míni dos péniches, os grandes barcos que existem desde 1803 e transportam mercadorias pelos canais europeus. Há passeios na Bélgica, Alemanha, Holanda e Suíça – eles geralmente começam em território francês –, e também na Itália, Irlanda, Inglaterra, Escócia e Polônia. Ao todo são cerca de 150 roteiros nesses países, e na maioria dos casos você define o trajeto: pode começar e terminar no mesmo ponto ou em outro completamente diferente (basta ter um posto da locadora no local escolhido).
Fim de tarde no deque do barquinho – Foto: Locaboat/Palomba
Mais de 70 mil turistas alugam a embarcação todos os anos numa das dezenas de empresas especializadas a preços desde € 439 por seis noites (para duas pessoas) – em geral muito mais barato do que ficar em um hotel razoável de alguma cidade turística europeia. E, apesar de ainda ser um programa pouco conhecido por aqui, alguns brasileiros já se aventuraram pelos canais europeus. Maior locadora de pénichettes da Europa, a Locaboat alugou suas embarcações para 250 brasileiros em 2011. Entre seus clientes está o engenheiro carioca Paulo Valença, que já embarcou três vezes numa pénichette com a família e os amigos, sempre na França. A última viagem foi em abril de 2012, no Canal du Midi, entre Négra e Argens, no sul do país. “Eu achava que a viagem seria chata, mas me enganei”, diz ele. “Conheci cidadezinhas o tempo todo. O dia passava sem me dar conta”, afirma.
Dia de navegação pelos canais – Foto: Locaboat/Palomba
Por dentro da França
Esse trecho do Canal du Midi, de 118 quilômetros (o canal inteiro tem 240), é o roteiro mais procurado para os passeios de pénichette (veja no quadro abaixo). Ele foi construído em 1681 com o objetivo de transportar mercadorias do Mediterrâneo ao Atlântico sem precisar contornar a Espanha pelo Estreito de Gibraltar, e hoje sua função é exclusivamente turística. Ao navegá-lo você passa por pontes, aquedutos, campos de girassóis, áreas dedicadas à vinicultura e mais de 60 eclusas (os elevadores aquáticos que fazem os barcos subir ou descer em trechos onde há desníveis). No itinerário estão vilarejos medievais como Négra, Castelnaudary, Bram, Carcassonne e Trébes. Há outros dois roteiros famosos no país. Um deles é o da Bretanha, no oeste da França, que vai do Canal de Nantes a Brest. São 142 quilômetros e 30 eclusas pelo caminho, passando por cidadezinhas como La Gacilly, cheia de construções medievais, e Josselin, cujo destaque é o Castelo de Josselin, na beira do canal. O outro trajeto é entre as cidades de Lutzelbourge Estrasburgo, na Alsácia-Lorena, região que é berço do foie gras e que concentra o maior número de restaurantes três estrelas do Guia Michelin no mundo. O trecho tem 114 quilômetros e 62 eclusas.
A vida é leve no Canal du Midi, roteiro preferencial dos marinheiros de primeira viagem – Foto: Locaboat/Palomba
Como não há agências especializadas no Brasil, é preciso entrar em contato com a empresa de locação – você pode fazer a reserva online. Nelas há barcos de vários tamanhos, geralmente entre 9 e14 metros de comprimento e entre 3 e 4 metros de largura. Os menores têm capacidade para um casal, os maiores acomodam até 15 pessoas. Os quartos podem ter cama de casal, camas de solteiro ou bicamas, e a embarcação conta ainda com minibanheiro com pia e chuveiro quente, cozinha acoplada à sala de jantar e uma cabine central com o manche e o painel de controle. Detalhe que pode fazer toda a diferença: não é preciso habilitação para pilotar o barco. Não é necessário, aliás, nem saber como manejá-lo; basta ter mais de 18 anos. Na hora de retirá-lo da locadora, um funcionário dá uma aulinha de 30 minutos: explica como programar o painel de controle, manejar o leme e proceder nas eclusas. Esse costuma ser o momento mais “tenso” da viagem porque é necessário estacionar o barquinho num compartimento fechado, mas na verdade não há muito com que se preocupar: no local existe sempre um funcionário à disposição, o éclusier, para acudir turistas em apuros. “Além de ajudar na manobra, o éclusier é um sujeito que costuma vender itens que produz em casa, como mel, verduras e guloseimas”, diz a empresária carioca Marta de Andrade Lima Valença, de 36 anos, que já viajou duas vezes de pénichette. “Um deles fez festa quando soube que eu era brasileira. Acho que eles são mais calorosos com a gente.”
A cabine com edredons fofinhos – Foto: Locaboat/Palomba
Dirigir o barquinho é muito fácil. Depois que o motor é ligado, ele navega praticamente sozinho; o piloto só precisa virar o leme para a direção desejada e dar ré, se necessário. Não há correnteza, e a velocidade é baixíssima: mantém-se entre 6 e 8 quilômetros por hora o tempo todo. Por isso, o piloto tem tempo suficiente para desviar de algum obstáculo pelo caminho se houver necessidade. A ocorrência de acidentes é tão rara que as empresas nem sequer têm registros ou estatísticas. De qualquer maneira, é necessário seguir algumas regras de segurança durante a navegação. Os barcos só podem trafegar à direita (se não houver nenhuma embarcação vindo em sentido contrário, pode-se ir pelo meio do canal). É proibido navegar à noite na maioria dos canais. Pare em alguma das marinas e retome a viagem na manhã seguinte.
O Canal du Midi é o preferido de ciclistas despreocupados – Foto: Locaboat/Palomba
Antes de partir, você recebe uma planta baixa do percurso com a localização das eclusas, pontes e marinas. Nesse momento é fundamental calcular quantos quilômetros precisam ser percorridos por dia a fim de chegar ao destino final na data marcada – no Canal de Midi, por exemplo, devem-se navegar cerca de 20 quilômetros por dia (4h30 de viagem) para completar o trajeto em uma semana. A maioria dos roteiros é sinalizada: placas indicam quanto falta para chegar até a próxima eclusa, por exemplo. Gasta-se meia hora para ultrapassar cada uma – se tiver fila, pode demorar mais.
A rotina de um dia de viagem é, digamos, slow. Logo cedo, ainda na marina, você vai com a bicicleta alugada até o mercadinho mais próximo e volta com pães quentinhos, croissants, queijos e frutas frescas para o café da manhã – e, quem sabe, aproveita para comprar uma garrafa de vinho para bebericar durante a navegação (custa em média € 5). Depois de algumas horas de viagem e várias eclusas pelo caminho, o barco chega a um vilarejo. Você ancora na marina, tranca tudo e sai para conhecer o lugar. Uma hora mais tarde retorna à embarcação, dessa vez com verduras e carnes para preparar o almoço a bordo. No fim do dia, “estaciona” em outra marina para pernoitar. Sai para jantar em um restaurante bacana do vilarejo e volta ao barco. Conversa vai, conversa vem, e todos dormem cedo para começar tudo de novo no dia seguinte. Superb.
Casa flutuante
Veja como é a pénichete 1107W, um dos modelos mais populares da embarcação
Ilustração: Martini
1 – O motor é a diesel, com potência de 37 cv, e a velocidade média é baixíssima: varia entre 6 e 8 km/h. Ele fica localizado na parte central do barco.
2 – A energia elétrica é fornecida por um alternador que é acionado pelo motor. As baterias podem ser recarregadas em qualquer um dos portos onde os barcos ficam atracados à noite.
3 – O painel de controle, localizado na cabine central do barco, é automático. Assim que o motor é ligado, a embarcação navega praticamente sozinha. Quem pilota precisa apenas manejar o leme – e, claro, ligar e desligar o motor.
4 – A água do chuveiro (que é aquecida pelo motor ou pela caldeira), pias e vaso sanitário também precisa ser reposta. Dá para abastecer o reservatório nas marinas por € 1 – há uma mangueira no local em que o barco fica atracado.
5 – Há cabines com uma cama de casal ou uma cama de casal e uma de solteiro. Em alguns casos há bicamas. Todas contam com roupa de cama, travesseiros e edredons. Em muitos barcos há TV.
6 – A cozinha é acoplada à sala de jantar. Tem fogão de duas ou três bocas com forno, pia e geladeira, além de mesa e cadeiras. Nos armários há pratos, talheres, copos, xícaras, panelas, abridor de latas e de vinho.
7 – A cabine central conta com portas de vidro e entrada nas duas laterais. E todas as cabines dispõem de janelões.
8 – Ninguém passa frio ali dentro: todos os barcos têm calefação.
9 – O convés tem um compartimento para acomodar bicicletas (até cinco, em média), que podem ser alugadas na maioria dos vilarejos ao redor do canal (cerca de € 40 por uma semana).
Via fácil
Atrações do Canal du Midi, no Sul da França, perfeito para as pénichettes
A França é o país com o maior número de canais utilizados pelas pénichettes. Ao todo são mais de 9 mil quilômetros de vias navegáveis em todo o país. E o Canal du Midi é o mais popular entre os turistas. O roteiro tem vilarejos charmosos, com difícil acesso por terra; é muito mais fácil fazer a visita de barco. De Paris, vá às cidades de Toulouse (40 km de Négra) ou Narbonne (30 km de Argens-Minervois) de trem TGV (eurail.com), ou de avião até Carcassonne.
Mapa do Canal du Midi – Mapa: Martini
1 – NÉGRA
O roteiro começa (ou termina) aqui. O trajeto é de 118 km. Para completá-lo em uma semana, é necessário navegar cerca de 4h30 por dia. Nesse vilarejo, os barcos são abastecidos com frutas frescas e garrafas de vinho regionais da Borgonha, que custam em média € 5.
2 – CASTELNAUDARY
Parada obrigatória para experimentar um dos cassoulets (prato com feijão-branco e vários tipos de carne) mais famosos da França. O do restaurante Le Cassoulet, no L´Hôtel de France (hdefrance.com), é conhecido há mais de um século e servido em potes de cerâmica por € 15.
Cassoulet do Le Cassoulet – Foto: Reprodução
3 – BRAM
A vila é circundada por campos verdes, ideais para passeios de bike. A creperia Le Flibuste (23 Place Carnot) serve vinhos da Bretanha e um famoso crepe de banana com sorvete artesanal.
4 – TRÉBES
A partir dessa cidade, os arredores são cheios de vinícolas, videiras e jardins de girassóis. Aqui, visite a igreja gótica de Saint-Étienne, do século 14.
5 – CARCASSONNE
Ponto alto do roteiro. A cidadezinha recebe mais de 3 milhões de visitantes por ano, que circulam ao redor de muralhas do século 11. Seu majestoso castelo medieval, o Château Comtal (1 Rue Viollet Le Duc), é cercado por 59 torres. Para jantar, a Brasserie du Donjon (4 Rue Porte d´Aude) serve pratos da culinária ancestral francesa, como foie gras grelhado.
O Château Comtal – Foto: Reprodução
6 – ARGENS-MINERVOIS
A comuna francesa faz parte de Languedoc-Roussillon e tem menos de 400 habitantes. O cenário não decepciona: há um castelo do século 19, vinícolas e jardins que reúnem muita gente fazendo piquenique.
++ O percurso tem 65 eclusas, os elevadores aquáticos que permitem aos barcos subir ou descer em trechos onde há diferença no nível do leito das águas. A maioria fica perto de Carcassonne. Nelas há um funcionário para ajudar a manejar o barco se necessário.
Eclusa no Canal du Midi, no Sul da França – Foto: Divulgação
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