Era uma vez na Sibéria
Na quarta etapa da Volta ao Mundo, nossa correspondente cruza a Rússia de trem e chega à Mongólia morrendo de amores pelas paisagens siberianas
Eu e meu namorado Danilo estávamos muito prosa por não precisarmos de visto para desembarcar em Moscou até que a funcionária da Iberia, no aeroporto de Barajas, em Madri, resolveu encasquetar. Faltavam duas horas para o voo quando a mocinha avisou que não embarcaríamos sem algo que comprovasse a nossa futura saída da Rússia. Alegou que era o “procedimento”, embora não existisse essa exigência para brasileiros no site da embaixada russa. Entramos em desespero, pois os tíquetes de trem que usaríamos para cortar o país, depois a Mongólia até chegar a Pequim, na China, só seriam comprados ao longo da viagem. Por sorte, lembramos da amiga Giorgia, agente de viagens em Valência. Deus mantenha os agentes de viagens! Ligamos, e ela na hora enviou para o meu celular a reserva de um bilhete de volta à Espanha, que foi cancelado horas depois.
Desembarcamos em Moscou com os termômetros na casa dos 20 graus e compramos por US$ 12 o tíquete do trem Aeroexpresso para chegar ao centro. Uma vez lá, desistimos de pegar o metrô. Se já não é mole entender o alfabeto cirílico, muito pior quando se está carregando 18 quilos de bagagem. Acabamos pagando US$ 23 por um táxi até o albergue.
Guiados pelo mapa da cidade no celular, nós nos jogamos nas ruas ainda um pouco atordoados pela dificuldade de comunicação. Fotografei feito doida a linda Catedral de São Basílio, a Praça Vermelha, os jardins e as igrejas de cúpulas incríveis do Kremlin. O dia seguinte foi mais tranquilo, e batemos continência para o camarada Lênin em seu mausoléu na Praça Vermelha. Dali mergulhamos no deslumbrante metrô de Moscou. As estações que você tem de ver, por sua beleza: Arbatskaya, Elektrovozadovskaya e Kievskaya.
No site russiantrains.com, compramos dois tíquetes para São Petersburgo por US$ 204. Embora incidam taxas, é mais conveniente comprar pela internet, já que são raras as atendentes que falam inglês nas estações. Nosso “norte” era Pequim, na China, que esperávamos alcançar depois de quase 8 mil quilômetros, 40 dias e pelo menos seis paradas ao longo da rota Transmongoliana (que tem trechos que coincidem com a Transiberiana). Mas começávamos indo para o outro lado, o oeste, noroeste, na verdade, para São Petersburgo. No trem, dividimos uma cabine com dois jovens do Cazaquistão. Um deles, Valery, falava inglês. As dez horas até a antiga capital imperial russa voaram graças ao bate-papo animado e ao Durak, jogo de cartas que eles nos ensinaram.
Tínhamos calculado dois dias para São Petersburgo, mas acabamos ficando um a mais. A antiga Leningrado, palco de uma das batalhas mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial, é maravilhosa. Capital do país até a Revolução, São Petersburgo vem sendo restaurada e hoje já tem quase todo o seu brilho recuperado. Cansamos as pernas caminhando pela Nevsky Prospekt, a grande avenida cheia de monumentos. São admiráveis a Igreja de São Salvador sobre o Sangue Derramado, o Rio Neva… Para o Museu Hermitage, dedicamos um dia, mas tivemos apenas um gostinho do imenso acervo. Imperdível também é o Parque Jardim de Verão, reaberto em maio deste ano após um primoroso restauro.
Paisagem muito além do cinza na Ilha Okhlon, na Sibéria
Tartaristão à vista
Acordamos cedo para encarar as 22 horas de trem até Kazan, na província do Tartaristão. Na nossa cabine havia dois beliches, mas curioso foi conhecer a terceira classe, a platzkart, sem divisórias, com um quê de dormitório de quartel.
Em Kazan, enfrentamos uma tempestade que nos segurou no albergue até o estômago tomar uma atitude. Então fomos provar um delicioso e barato tartar de cordeiro com alecrim, típico do lugar. Um dia é o suficiente para conhecer Kazan. Um curto passeio leva ao Rio Volga e seu agradável entorno.
Muito imponentes são o Kremlin branco, construído a mando do primeiro czar russo, Ivan (o Terrível!), e alguns modernos edifícios erguidos com o dinheiro do petróleo que jorra de seu solo. Deixamos Kazan recuperados e embarcamos para mais 14 horas de trem rumo à Sibéria.
Quando se fala em Sibéria logo se pensa numa região distante demais e fria demais, talvez por causa dos gulags, os campos de trabalhos forçados para onde eram mandados inimigos do regime. Mas a Sibéria é quase um estado de espírito. Geograficamente, é uma superposição de regiões e províncias a leste dos Montes Urais, e não apenas perto do fio insuportável do Ártico. Eu rumava para Ecaterimburgo, ao norte do Cazaquistão, e depois para Irkutsk, uma cidade de latitude mais baixa que a de Moscou. Antes de chegar a Ecaterimburgo começamos a notar mudanças na paisagem. Rios, florestas e casinhas de madeira despontaram aqui e acolá. As principais atrações da cidade são o memorial e a igreja construídos no mesmo terreno onde Nicolau Romanov 2o, a mulher e os cinco filhos – a última família real russa – foram executados pelos bolcheviques em 1918. Os corpos foram enterrados em uma mina a 20 quilômetros da cidade, local que hoje abriga um bonito mosteiro. Também fomos visitar Nizhnyaya Sinyachikha, uma típica vilinha russa. Ficamos três dias em Ecaterimburgo porque as passagens de trem para Irkutsk estavam concorridas, o que é comum nos meses de verão. A viagem de trem até essa cidade já nos limites da Mongólia levaria 52 horas, e decidimos desembolsar US$ 500 cada um por uma cabine na primeira classe.
Aproveitei a viagem para escrever um pedaço desta reportagem, e o tempo até que passou rápido. Nos intervalos, assistia a filmes (nossa cabine tinha TV), bebia conhaque com o vizinho, tomava banho de toalhinha. Algumas paradas chegavam a 40 minutos, tempo que usamos para comprar comida e interagir com uma família do Uzbequistão. Valendo-nos de muita mímica, claro.
Um vento cortante congelou nosso nariz quando descemos do trem em Irkutsk. Devia soprar lá do Polo Norte, embora isso significasse alguns milhares de quilômetros até Irkutsk. Não importa: eu estava na Sibéria. A principal atração da região é o Baikal, o terceiro maior lago do mundo. E dentro do Baikal há Olkhon, uma ilha deslumbrante por suas paisagens, praias, cores.
Digo e atesto, é um dos lugares mais bonitos em que estive até hoje. Mas é preciso ser russo ou, sei lá, patagão para aguentar bem os 15 graus de verão e não bater queixo. Na ilha, é possível alugar bicicletas, cavalos, participar de rituais xamânicos com os nativos ou só ficar quietinho contemplando os elementos naturais. Foi a primeira vez que presenciei um pôr do sol com tons alaranjados à minha esquerda enquanto a Lua cheia tingia o céu de lilás um pouquinho mais à direita. Foi uma bela despedida da Rússia, até então um país completamente cinza na minha imaginação.
Gandan Khiid, casa do líder espiritual Khamba Lamba, em Ulan Bator, na Mongólia
Buda e Gengis Khan
Ficamos duas horas trancados dentro de um vagão para passar pela imigração da última cidade russa, Naushki, depois outras duas na primeira cidade da Mongólia, Sükhbaatar, embora o largo sorriso no rosto dos oficiais no outro lado da fonteira já suavizasse os ânimos da turistada.
Às 6 da manhã, chegávamos à empoeirada e desordenada Ulan Bator, capital da Mongólia. O pó e o caos podem afetar o julgamento nos primeiros instantes, mas a simpatia do povo mongol é tanta que a cidade muda rápido de figura. Naquele dia, conhecemos a Praça Sükhbaatar, guardada por uma enorme estátua do herói Gengis Khan, e o mosteiro Gandan Khiid, casa do líder espiritual mongol Khamba Lama, que guarda uma estátua de Buda de 26 metros de altura. Passamos a semana seguinte rodando pelo inóspito interior do país na companhia de outros dois casais e um guia gente finíssima. Topamos com paisagens e animais inéditos no meu repertório. Mas isso fica para o próximo capítulo.
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