Edimburgo e Glasgow: a dobradinha imperdível da Escócia
Terra de brumas, saiotes e do scotch, Edimburgo e Glasgow misturam inventividade e arrojo às seculares tradições britânicas
Howie Nicholsby, dono da loja 21st Century Kilts, em Edimburgo, a capital da Escócia, faz parte da terceira geração de uma família que confecciona kilt – a famosa saia masculina escocesa. Até pouco tempo atrás, os kilts, usados desde o século 16, não variavam no tecido (sempre de lã) e na estampa (quadriculada), e eram usados majoritariamente em ocasiões especiais, como casamentos, e por artistas de rua atrás de uns trocados dos turistas. Mas Nicholsby, ícone da moda no país, resolveu inovar e lançou, em 1999, sua primeira coleção de kilts modernos na Fashion Week de Londres, em versões camufladas, de couro, com listras, feitos para o dia a dia – ainda que custem uma nota. “Hoje o kilt tem sido usado cada vez mais em ambientes de trabalho”, diz ele.
Essa tentativa bem-sucedida de modernizar a tradição – sem abdicar dela – representa bem a Escócia. A identidade nacional é forte, mas nada que seja capaz de fazer os inventivos escoceses abrirem mão de pertencer ao Reino Unido: em 2014, o maioria do país escolheu, em plebiscito, manter a ligação existente desde 1707 com a Inglaterra. Porque tradição, para os escoceses, inclui também os ônibus de dois andares, as cabines telefônicas vermelhas, o chá das 5, as farmácias Boots, o céu brumoso…
Escocês em trajes típicos (foto: Getty Images)
EDIMBURGO – Gótico e vintage
Ao mesmo tempo, tudo se apresenta diferente. Nas ruas da “Edimbra” (como se pronuncia no sotaque local), respira-se uma fusão interessante entre um vilarejo medieval em que caminham personagens do Harry Potter (afinal, o livro foi escrito aqui) e a vivacidade de uma metrópole moderna, cheia de opções gastronômicas e culturais, bebedora de uísque, gim, cerveja e o que mais encha o copo.
O coração da cidade ainda é a Old Town, a parte mais antiga, onde figura um novelo de ruelas e construções medievais crivadas de becos e escadarias que desembocam em pátios escondidos. O eixo do conjunto é a Royal Mile, uma via larga de 1,5 quilômetro que começa no icônico Castelo de Edimburgo, um forte com torres e muralhas no alto de uma colina, e termina no Palácio de Holyroodhouse, ex-mosteiro onde vossa majestade a rainha passa uma semana por ano. Varando a rua toda, veem-se a gótica Catedral de St. Giles, lojas de artigos de caxemira de qualidade duvidosa e o estranhamente arrojado Parlamento escocês, um complexo de edifícios em forma de folhas projetado pelo arquiteto espanhol Enric Miralles.
Um passeio curioso para entender a disposição da cidade é adentrar o Mary King’s Close, no meio da Royal Mile. Os tours são conduzidos por um guia teatral portando trajes de época, que conduz grupos por becos, vielas e antigas casas subterrâneas que foram encobertos por novas construções com o passar dos anos. Personagens caricatos contam como era a vida e o comércio em Edimburgo nos séculos 16 e 17, quando a Old Town se tornara um amontoado insalubre de casebres mal construídos, com gente jogando lixo pela janela e morrendo em meio a pragas.
Ruas simétricas
A necessidade de expandir levou, a partir de 1765, à construção da New Town, na qual os mais abastados passaram a habitar elegantes casas neoclássicas de arquitetura georgiana em ruas simétricas com praças jardinadas. Hoje, a Old Town e a New Town são separadas pelo Princess Gardens, onde está a torre pontuda do Scott Monument, erigido em homenagem ao escritor Walter Scott, celebridade local. Atravessando o conjunto, você dá de cara com o movimento da Princes Street, avenida com lojas de departamentos e as marcas de sempre. Paralela a ela corre a bela George Street, em que dá para imaginar famílias da nobreza oitocentista examinando vitrines entre os canteiros floridos. Ela termina numa fotogênica praça gramada chamada Charlotte Square, circundada por casas de 1 milhão de libras.
Quase irônico é sair do Charlotte Square e seguir colina abaixo até a Dean Villlage. Na beira do Water of Leith, um estreito canal em cujas margens os “edimburguenses” caminham com cachorros e andam de bicicleta aos domingos, está esse antigo vilarejo esquecido pelos guias turísticos. Lá costumavam viver padeiros e outros membros da classe trabalhadora que se abasteciam dos moinhos instalados próximos da água. Hoje pode-se caminhar ali para ver as casinhas, as pontes e os pequenos monumentos da época.
Falando em domingo, o bairro residencial da moda, Stockbridge, a pouco mais de 1 quilômetro dali, é o point nesse dia a partir da hora do almoço. São montadas banquinhas que formam um mercado de pães, queijos, geleias artesanais, azeites, trufas e refeições que incluem de saladas gregas a paellas fumegantes. Absolutamente delicioso. É um bom motivo para zanzar pelas ruas próximas, como a St. Stephen Street, e olhar lojas de discos e acessórios, brechós, livrarias, pubs e cafés.
Uísques sem fim no hotel The Balmoral, em Edimburgo (foto: Getty Images)
Cheers!
Irritantemente instável e imprevisível, o clima de Edimburgo tem neve, sol, chuva e vento no intervalo de algumas horas – a compensação são arcos-íris que surgem a todo instante. Por isso, é importante ter uma boa seleção de programas indoor na manga. E, nos dias de hoje, Edimburgo quase que implora para que você preencha o tempo comendo e bebendo muito bem.
Um dia totalmente glutão pode começar na Princess Street, a rua de compras supracitada, onde está a Jenners, de 1838, que costumava ser a loja de departamentos independente mais antiga da Escócia até ser comprada por um conglomerado local, a House of Fraser. Além da boa seleção de marcas de roupa e acessórios, o último andar do edifício tem um salão com restaurante e venda de produtos locais, como queijos, vinhos, massas, geleias, mel e até o prato típico escocês, o haggis, enlatado para levar para casa.
Siga então ao The Scotch Whisky Experience (na Old Town), onde você aprende sobre essa bebida orgulhosamente escocesa – o país tem mais de 100 destilarias. Quem for tão leigo quanto eu pode embarcar num trenzinho da alegria com telas e bonecos que contam o processo de produção da bebida a partir da cevada. Depois, o visitante é conduzido a degustações seguidas de uma espiada na maior coleção de uísque escocês do mundo. O acervo, com 3 500 garrafas, foi comprado integralmente – veja você – de um brasileiro, Claive Vidiz.
Chá da tarde
Para um brunch tardio, tome um táxi até Prestonfield, uma área residencial com cara de subúrbio a 4 quilômetros do Centro. Ali reina o belo hotel Prestonfield House, cujo chá da tarde é uma das experiências mais glamourosas, ainda que um glamour meio vintage, de Edimburgo. Trata-se de uma mansão barroca/georgiana do século 17 que ainda exibe toda a pompa que teve em seus tempos de propriedade rural de ricaços, com colunas gregas, bustos, quadros enormes, tapeçarias, papéis de parede e lustres opulentos em tetos entalhados. Conjunto que poderia ser cafona em outras circunstâncias – mas ali é lindo. O chá da tarde, com docinhos, sanduíches e outras delicinhas, me foi servido numa sala de estar, com flocos de neve manchando o céu lá fora. No verão, ele acontece no belo jardim do lugar.
No outro extremo da linha do tempo está o jantar no restaurante The Gardeners Cottage: o salão é uma antiga cabana de jardineiro com banho de loja hipster, com paredes brancas e decoração minimalista, garçons barbudos, mesas grandes (que por vezes implica se sentar com gente que você não conhece), música pop tocando. Da cozinha, toda aberta, saem pratos do menu degustação feitos com ingredientes sazonais vindos de pequenos produtores do país – uma tendência mundial, vale dizer, que Edimburgo acompanha. O cardápio muda diariamente, mas pode ter certeza de que vai ter frutos do mar e ruibarbo, um vegetal rosado azedinho.
Para fechar a noite, sugiro o Heads and Tales, um pub subterrâneo onde durante o dia funciona uma destilaria de gim. Há pequenas salas reclusas, uma delas com piano, e outro ambiente com poltronas, sofás e bar e paredes de tijolos. A boa da casa, como dá para imaginar, é pedir drinques com gim, hoje alcançando o uísque nos níveis de popularidade. Faz parte da diversão puxar papo com algum escocês, que compete pelo posto de povo mais bem-humorado do mundo. Aliás, lá o cumprimento de praxe para desligar o telefone ou se despedir de alguém é sempre o mesmo: “Cheers!”
Catedral de Glasgow (foto: Getty Images)
GLASGOW – Música e arte
Terça-feira, por volta do meio-dia, pequenos grupos adentram uma antiga igreja vitoriana com o exterior intacto que abriga o Òran Mór, um espaço multifuncional, com pub, restaurante, balada, um salão para casamentos e um teatro no subsolo. Poucos ocupam as mesas em volta do bar; a maioria segue direito aos fundos do lugar e desce dois lances de escada. É que ali, de segunda a sábado, às 13 horas, acontece o evento A Play, a Pie and a Pint: por £ 12,50, você adquire um pint de cerveja, uma fatia de torta salgada e um lugar em mesinhas enfileiradas de frente para um palco. As peças apresentadas, que mudam toda semana, de diretores renomados e principiantes, têm cerca de 50 minutos de duração, cabíveis na hora do almoço de quem trabalha por ali.
O local e a natureza do evento dão uma boa ideia do que é Glasgow, a maior cidade da Escócia, que, curiosamente, ainda costuma ficar de fora dos roteiros dos brasileiros pelo país. Enquanto a capital Edimburgo, a apenas 75 quilômetros de distância, é sofisticada, classuda e, segundo os “glaswegians” (eu sei, é difícil pronunciar), meio esnobe, Glasgow é uma espécie de irmão mais novo rebelde, irreverente, ousado; uma cidade antes puramente industrial que floresceu em um polo cosmopolita cultural e interessante. E é bonita também, viu?
Cidade da música
Um bom exemplo disso é que Glasgow é uma das poucas “cidades da música” – seleção que leva em conta a tradição e sua influência na cena musical global, entre outros aspectos – , pela Unesco. Em Glasgow, há cerca de 130 eventos musicais rolando toda semana, com desde música celta (povo que deixou herança forte no país) até bandas indie, como Belle e Sebastian e Franz Ferdinand, que começaram ali. Um dos locais clássicos para uma degustação musical é o King Tut’s Wah Wah Hut, casa de shows em que bandas como Oasis, Radiohead e The Killers tocaram no início da carreira. Todas as noites um pessoal, que inclui jovens de coturno e tiozões acima dos 50, se junta para tomar umas e assistir à programação de bandas-que-ainda-vão-fazer-sucesso.
Também em Glasgow está o mais importante museu escocês, o Kelvingrove Art Gallery and Museum, num imponente prédio de paredes em terracota de 1901. A maior parte das galerias é focada em arte e história escocesa, e, nos últimos cinco anos, a obra que mais aparece nos Instagrams por aí é a Floating Heads: a artista escocesa Sophie Cave pendurou no teto, com fios transparentes, 50 cabeças carecas e brancas, cada uma com uma expressão facial diferente, em alturas e posições distintas. Saem bem na foto, contrastando com o visual clássico do museu, e lembram mais uma vez de que você está em Glasgow.
Pelas lanes
O Centro de Glasgow, com prédios vitorianos elegantes, guarda resquícios de um passado medieval, com uma catedral gótica grandiosa do século 12 e, assomando atrás dela, The Necropolis, um gigantesco cemitério de nome macabro, com monumentos ostentosos àqueles que se foram. É um bom ponto para observar a cidade do alto. Dali, dá pra seguir até a Buchanan Street, uma longa rua com trechos fechados para pedestres onde há lojas de marcas internacionais, “glaswegians” apressados indo e vindo e artistas de rua aos montes – em frente ao Glasgow Concert Hall, cheguei a ver um sujeito entoando uma ópera.
Explorando os arredores, chega-se à Glasgow School of Art, instituição de ensino que orgulha a cidade. Entre os quatro finalistas do Turner de 2014 – o mais importante reconhecimento artístico do mundo -, três estudaram lá, inclusive o vencedor, o irlandês Duncan Campbell. Visitantes podem conhecer a lojinha com produtos feitos pelos alunos, uma galeria de arte e um pequeno museu que conta a história do Charles Rennie Mackintosh, o Gaudí de Glasgow. O designer, arquiteto e artista modernista projetou o prédio da escola e uma série de outras construções pela metrópole. Para entender um pouco o seu estilo e escapar da garoa que invariavelmente vai cair em alguma parte do dia, faça um lanche no Willow Tea Rooms, desenhado por ele – há um na Sauchiehall Street e outro na própria Buchanan Street. Repare nas cadeiras de encosto fino e comprido.
Discos e roupas
Meu segundo lugar favorito para bater perna foi a Byres Road, a rua do pub Òran Mór, de que falo no início desta reportagem. É gostoso ir descendo por ela, entrando em lojas de discos, roupas e acessório, floriculturas, cafés, e ir virando nas lanes (ruas estreitas) para ver os brechós e os pequenos restaurantes que elas escondem. A mais famosa é a Ashton Lane, uma pequena via coberta com luzinhas de Natal o ano todo que concentra bares e pubs com música ao vivo à noite.
Seguindo pela Byres Road chega-se eventualmente à Argyle Street, na qual é imprescindível uma parada num dos muitos restaurantes. O Mother India e outros locais étnicos representam os 8% da população da cidade de origem asiática, principalmente indiana e paquistanesa. Mas o lugar da moda é o Crabshakk, um restaurante de dois andares e poucas mesas que serve frutos do mar fresquíssimos (o menu muda de acordo com a diponibilidade de bichos). Mandei uma pratada de ostras (que tinham vindo de algum lago próximo), bolinhos de siri com salada e tentáculos de lula com molho picante. Pra que não fique dúvidas de que Glasgow alimenta o estômago tão bem quanto alimenta a mente.
Loch Lomond e seu entorno verdejante (foto: Divulgação)
Loch Lomond
A 35 quilômetros de Glasgow, o Loch Lomond é um bom passeio para ter um gostinho da natureza especial do país. Nos tours de barco do Sweeney’s de uma ou duas horas, você navega pela água azulzinha do lago, pontuada por ilhotas e cercadas de montanhas verdes. Depois, é a chance de provar a cozinha de um dos mais proeminentes chefs escoceses no restaurante Martin Wishart at Loch Lomond, com uma estrela no Guia Michelin. O menu do almoço sai a £ 32, com entrada, prato principal, sobremesa e cafezinho. Se estiver de carro, passe também na centenária destilaria Glengoyne (glengoyne.com). No tour guiado, você vê como a cevada vira cerveja e, por fim, o uísque, e como ele deve ser armazenado para ser considerado “scotch”. No final, dá para fazer sua própria mistura de barris e levar um uísque personalizado para casa numa garrafinha simpática.
Stirling
Formando um triângulo com Glasgow (a 42 quilômetros) e Edimburgo (a 59), Stirling tem o centro histórico mais adorável do país, e por isso vale um bate e volta só para vê-lo. Seu castelo é mais bacana que o de Edimburgo, com mais torres e algumas salas internas, como as do dormitório da rainha, recriadas com móveis de época e belas tapeçarias. Saindo dele, pode-se caminhar por outras construções medievais, como a Igreja Holy Rude e o John Cowanes Hospital.
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